Quando o caminho se faz entre o alvo e a seta

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  • Paulo Sales

Publicado em 1 de julho de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Numa de suas canções mais inspiradas, o compositor português Pedro Abrunhosa se questiona: “De que serve ter o mapa se o fim está traçado? De que serve a terra à vista se o barco está parado?”. E continua: “Quem me leva os meus fantasmas? Quem me salva desta espada? Quem me diz onde é a estrada?”. É uma canção que denota profundo sentimento de dor e vulnerabilidade. Talvez por isso eu tenha lembrado dela quando me deparei com a foto do pai salvadorenho que morreu afogado junto com a filha de dois anos, na semana passada, ao atravessar o Rio Grande para tentar ingressar no eldorado norte-americano. 

A foto me fez recordar também de outro registro terrível: aquele do menino sírio Ayslan repousando morto à beira do mar. Em ambos os casos, para voltar aos versos de Abrunhosa, o caminho se fez entre o alvo e a seta. Eles expõem a ferida das migrações forçadas, um flagelo contemporâneo devastador, com raízes históricas muito profundas e diversas, marcado por fugas em desespero onde a própria travessia é uma armadilha letal. Seja na tentativa de chegar à Europa pelo Mediterrâneo, atravessar o Saara ou mesmo cruzar um rio. 

A uma distância confortável, pode até parecer que estamos falando de outra espécie, neandertais tardios que inventaram de encher o saco. Mas são feitos da mesma matéria que nós, com o acréscimo de doses cavalares de desespero e desesperança, espremidos entre o desastre de onde vieram e a incerteza hostil do lugar para onde vão. Nos EUA, o presidente Donald Trump os definiu como criminosos. Na Europa, uma extrema-direita que ousa dizer o nome os compara a uma epidemia que precisa ser extirpada, como uma peste negra do século 21. Quando discursos como esses são levados a sério, chegamos à conclusão de que a epidemia é outra.

Involuímos como civilização ou é uma forma inusitada de avançar rumo ao futuro? Talvez sejam as duas coisas, convivendo em total desarmonia. Mas o buraco é mais embaixo: as migrações nada mais são do que os sintomas mais graves de uma enfermidade sem cura: o abismo que separa os 99% mais pobres do 1% mais rico. Ele está em todo canto do globo: na prosperidade de Israel e na miséria da Faixa de Gaza. Na opulência dos EUA e na brutalidade dos cartéis mexicanos. Na faixa invisível que cinde os casebres da Rocinha dos arranha-céus de São Conrado, no Rio de Janeiro. 

Esse recorte geopolítico meio aleatório deixa claro o quanto a concentração de renda e a desigualdade social são os principais entraves para o desenvolvimento perene e inclusivo do mundo, como atesta o economista francês Thomas Piketty. Elas explicam tudo. Da trajetória errática das civilizações à ascensão da barbárie fundamentalista, passando pela guerra do tráfico que dizima negros e pobres e, claro, pela hecatombe silenciosa dos êxodos atuais. Nossa vergonha, tristeza e perplexidade deveriam, portanto, vir acompanhadas de um farto punhado de culpa.