Quanto vale o risco? Enfermeiros lutam para ter adicional por trabalho em UTIs

'Não ganho o suficiente', reflete enfermeira da linha de frente contra a covid sobre disputa para receber adicional de insalubridade máximo; valor de R$ 418 é 40% do salário mínimo

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  • Fernanda Santana

Publicado em 20 de fevereiro de 2021 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Shutterstock

Jamile vive três dias da sua semana dentro de um hospital. Quando está lá, só vai ao banheiro a cada cinco horas, o que já lhe causou infecções urinárias e uso de fralda durante expediente, e sente o medo pesar no estômago. Quando não, mora em uma casa que alugou para se isolar de familiares. “Não ganho o suficiente pelo risco. Eu e muita gente”, desabafa, no descanso de um plantão.

A enfermeira, chamada por um nome fictício, trabalha em uma unidade de saúde privada de Feira de Santana, a 100 quilômetros de Salvador, mas a reclamação dela é a mesma da quase totalidade dos 139.434 mil profissionais de Enfermagem da Bahia, que incluem enfermeiros, técnicos e auxiliares de Enfermagem.

Eles pedem o aumento do adicional de insalubridade, direito previsto àqueles que correm riscos no exercício da função, para 40%. O Sindicato de Enfermagem calcula que dez enfermeiros entraram com ações judiciais para pedir a remuneração do risco em hospitais privados e estuda um processo coletivo. A reclamação ganha força, num momento em que a Bahia está em alerta pelo risco de colpaso no sistema de saúde. "Estamos com os leitos lotados, cansados", desabafa Jamile. Na última semana, nove hospitais - sete com leitos públicos e dois privados - ficaram com 100% de ocupação das Unidades de Terapia Intensivas (UTI). “Quem trabalha numa UTI de Covid-19 não está exposto ao máximo de risco?”, questiona Jamile.A pergunta ecoa num cenário de diferentes interpretações sobre o que é estar no limite do risco.

O adicional de insalubridade é dividido em gradações, conforme o perigo ao empregado: 10%, 20%, 30% e, o máximo percentual para o máximo de exposição, 40%. Essas taxas são calculadas sobre o salário-mínimo, o que significa que a briga atual é por um acréscimo de R$ 418 na remuneração.

Hoje, a maioria dos que, como Jamile, trabalham em UTIs para pacientes com coronavírus, tem ganho o adicional médio de 20%. Numa das normas do extinto Ministério do Trabalho, o grau de insalubridade de 40% aparece como o adicional a ser pago, no campo da saúde, a profissionais em permanente contato com pacientes isolados, com doenças infectocontagiosas - caso da covid-19, segundo o Ministério da Saúde.

E é nesse ponto que a fissura se abre. O que é permanente contato? Quem são os pacientes isolados? A procuradora Séfora Char, do Ministério Público do Trabalho (MPT), responde que é necessário ver caso a caso, hospital a hospital. A remuneração do grau máximo de insalubridade é paga a diferentes profissionais. Um auxiliar de limpeza, por exemplo, pode receber tanto o mínimo, se lida com resíduos comuns, ou o máximo, se maneja resíduos hospitalares.

Dos estados brasileiros, a Bahia tem o segundo maior número de casos de coronavírus entre profissionais de Enfermagem do país, com 18.711 infectados - 17 morreram, calcula o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen). O Brasil é o lugar no mundo com mais casos e mortes de profissionais de Enfermagem. A primeira pessoa oficialmente vacinada, no Brasil, foi uma enfermeira, no último dia 17 de janeiro. Em Salvador, o mesmo ocorreu, dois dias depois.

A Associação de Hospitais e Serviços de Saúde do Estado (Ahseb) é contrária ao pagamento dos 40%, sob justificativa da “redução das receitas dos hospitais”. A Superintendência de Estudos Econômicos estima que a saúde privada movimenta R$ 5 bilhões por ano, equivalente a 2% do Produto Interno Bruto baiano.

Pelo trabalho numa UTI que atende pacientes com coronavírus, Jamile recebe, mensalmente, R$ 2,3 mil – com um adicional de 20%. “Não me sinto recompensada”, ela repete. Os profissionais de Enfermagem não têm piso salarial. Por mês, ganham em torno de R$ 1,2 mil, se técnicos e auxiliares, e R$ 2,5 mil, se enfermeiros. Por plantão de 24 horas numa UTI Covid, médicos recebem de R$ 3,5 a R$ 4 mil. Eles também não têm o máximo do adicional de insalubridade, respondeu o Sindicato de Médicos da Bahia - e não há ação para tentar reverter isso.

Entre a coragem e o medo Uma vez no espaço destinado a pacientes graves com covid-19, a enfermeira Luise* não sai dali, exceto para ir embora, 12 horas depois. “Eu não circulo em outras áreas, nem outras pessoas circulam aqui”, relata. O cotidiano dela é de apreensões. Tem medo de contrair a doença, de sequelas, de morrer. “É inadmissível que não estejamos ganhando o que  deveríamos. Todo mundo demonstra insatisfação, mas ninguém  tem coragem de fazer algo”, conta. Há, claro, o medo da demissão.

No fim de novembro do ano passado, o Sindicato dos Enfermeiros da Bahia chegou a receber denúncias de que, num hospital filantrópico de Salvador, nenhum adicional de insalubridade era pago. O problema foi resolvido nesse caso, mas o medo, às vezes, cala outras denúncias. “É preciso muita coragem para denunciar um erro”, conta a presidente do Sindicato, Alessandra Gadelha.   Profissionais de Enfermagem enquadram Enfermeiros, Técnicos e Auxiliares de Enfermagem no combate à pandemia (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Uma das questões colocadas é se os hospitais oferecem  o bastante de equipamentos de proteção aos profissionais. A Ahseb garante que sim. Já o presidente do Conselho Regional de Enfermagem (Coren) da Bahia, Jimi Hendrix, acredita que não, e acrescenta o tempo de permanência dos profissionais nos hospitais como um possível problema.  

O Hospital Salvador foi notificado pelo Coren, na última quarta-feira (17), por sobrecarga dos profissionais de Enfermagem e irregularidades no equipamento de proteção. A administração da unidade, privada, não respondeu à reportagem. Ela terá 90 dias para reparar os erros. Se não o fizer, o caso vira ação judicial no MPT. A quantidade de ações existentes não foi divulgada pelo órgão. 

Desde novembro passado, 109 denúncias de carga horária excessiva, com dobras de plantão anunciadas de última hora, chegaram ao Coren. Mais tempo de trabalho, mais tempo de exposição ao vírus. 

Luise tem pensado até em deixar de ser enfermeira."As coisas estão ainda mais complicadas. Meu caminho será sair da Enfermagem", conta. Numa mesma semana, neste mês, ela dobrou o plantão duas vezes. Trabalhou 24 horas seguidas, por duas ocasiões. Cada vez mais colegas de trabalho, ela diz, ficam doentes, e precisam ser substituídos às pressas.“A pandemia revelou condições péssimas de trabalho e levantou esse debate sobre o pagamento da insalubridade do trabalho", reflete Hendrix, do Coren.  Em abril, um deputado carioca propôs, em projeto de lei, o pagamento de insalubridade de 40% sobre o salário bruto – não sobre o salário-mínimo – para todos os profissionais de Enfermagem, pelo “alto risco de contaminação”. O texto aguarda votação.

O projeto, opina Mauro Adan, presidente da Ahseb, é “uma loucura". “Reconheço que esses profissionais são fundamentais. Mas, é um projeto sem uma preocupação com o sistema de saúde como um todo”, avalia.

Em Salvador, por deliberação própria, hospitais também têm pagado o percentual. No Hospital Municipal de Salvador, os profissionais que atuam em UTI com pacientes com covid recebem os 40%. No Couto Maia e no Ernesto Simões Filho, do Estado, idem – as outras unidades  têm gestão terceirizada privada.“Os profissionais têm uma exposição muito grande, é bom ter isso reconhecido”, diz Luciana Leal, técnica de Enfermagem que trabalhava na linha de frente contra a covid no Hospital Municipal.O Sindisaude Privado, que representa técnicos e auxiliares, acredita que a falta de pagamento "é um prejuízo para a profissão", nas palavras de Adauto Silva, o presidente.  

Estigma do "cuidado" do "amor" dificultam avanços, reflete pesquisadora Os anos 90 foram um divisor de águas na organização da Enfermagem, diante dos problemas que despontavam. Surgem as propostas de organizações sociais, com entidades privadas assumindo parte da gestão de serviços públicos, por exemplo. “Paradoxalmente, o mercado foi sendo esvaziado e as condições, pioradas”, opina Maria Luísa de Castro Almeida, conselheira do Cofen, na Bahia.

O embate pelo ganho do adicional de 40% entra numa lista de lutas ainda mais antigas: a da regulamentação de uma jornada de 30 horas semanais, iniciada há 64 anos, e pela fixação de um salário base, pois as remunerações dependem do local de trabalho. E remonta à história e ao perfil socioeconômico dos profissionais de Enfermagem no país.

As primeiras  chegaram ao Brasil por decisão do governo. Em 1920, o país vivia o resultado de uma sucessão de epidemias, como a da varíola. Com o prejuízo às negociações econômicas, era preciso tomar uma medida sanitária. Os dois elos da corda, como se viu no nascer daquela década, não encontravam caminho, quando separados.

Surgiu, então, a ideia de formalizar a figura da enfermeira, aos moldes da Inglaterra, onde a Enfermagem moderna despontou. As enfermeiras, mulheres, em sua maioria, se ocupariam do controle de higiene da população, dos números de doentes, ações de vigilância e educação, explica Tatiane Araújo dos Santos, doutora em Enfermagem e professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba).“A partir disso, a enfermagem como um campo de trabalho só faz crescer. Nenhuma grande política de saúde se fez sem profissionais de Enfermagem”, acrescenta.Os auxiliares e técnicos de Enfermagem ganham força profissional em 1966, com a abertura dos dois primeiros cursos técnicos do país, no Rio de Janeiro. Antes, no entanto, pessoas já exerciam atividades semelhantes, sem ter formação. Respectivamente, técnicos de enfermagem e auxiliares apoiam as atividades da enfermeira, a quem caberia diretamente as funções de planejamento, assistência direta dos pacientes e supervisão desses profissionais, segundo a Lei do Exercício Profissional de 1986.“E mesmo com todas as mudanças, pouco se avançou em relação a conquistas. Não tem como problematizar isso, sem olhar para o perfil dessas profissionais”, avalia Tatiane, também diretora no Sindicato de Enfermeiros da Bahia.Na Bahia, os profissionais de Enfermagem têm gênero e cor. São 85% de mulheres e 47,9% pretas e pardas – também as mais afetadas pelo coronavírus, não por acaso. Isso, somado ao entendimento da Enfermagem como uma profissão do amor e do cuidado, contribui para a falta de avanços nas políticas, acredita Tatiane.

Para ela, é necessário evitar um conceito tão antigo quanto a própria Enfermagem. “Combato muito a ideia de herói e anjo. Herói tem superpoder e anjo vive no paraíso”. Na prática, dois predicados alheios às pessoas reais.

O que é e o que fazem os  profissionais de enfermagem?Quem é o enfermeiro? O enfermeiro precisa de uma graduação, que dura de quatro a cinco anos, para trabalhar. Entre suas atribuições estão a gestão de equipes de saúde, organização e direção dos serviços de enfermagem, cuidados diretos a pacientes graves com risco de vida e de maior complexidade técnica, planejamento, execução e avaliação da programação de saúde; prescrição de medicamentos estabelecidos em programas de saúde pública e em rotina aprovada pela instituição de saúde; e acompanhamento da evolução e do trabalho de parto, por exemplo.  acompanha o trabalho do técnico e auxiliar.Quem é o técnico? O técnico de Enfermagem recebe certificado depois de curso feito em escola ESPECIALIZADA ou curso - com duração de dois anos- e pode, depois da formação, participar da programação da assistência de enfermagem; executar ações assistenciais de enfermagem; e participar da orientação e supervisão do trabalho do trabalho do auxiliar.Quem é o auxiliar? O auxiliar de enfermagem é certificado por instituição de ensino, nas modalidades de uma escola ou curso técnico que dura um ano. São funções do auxiliar de enfermagem observar, reconhecer e descrever sinais e sintomas; executar ações de tratamento simples; e prestar cuidados de higiene e conforto ao paciente.