Quarentena – dia 154: o abraço roubado

Senta que lá vem...

  • D
  • Da Redação

Publicado em 17 de agosto de 2020 às 09:48

- Atualizado há um ano

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Dia desses, eu caminhava pela rua numa rara saída para ir ao mercado. Vislumbrei amiga querida, que não encontrava há muito tempo. Ela andou até onde eu estava, sorriso largo. Acenei e sorri, também, mas eu não estava preparado para o que viria a seguir. Nós dois usávamos máscaras e eu mal senti sua respiração quando ela me abraçou. Um abraço longo e apertado. Eu fiquei perdido, paralisado. Não sabia como proceder.

Nos últimos cinco meses, eu abracei e fui abraçado apenas pela minha companheira e pelo meu filho. Cinco meses. Nem um aperto de mão em amigos.

Eu olhei para os lados e algumas pessoas nos olhavam, na rua. Uma situação estranha, sem dúvida. Longe do que se espera no “novo normal”.

Como era antes da pandemia, mesmo? Dois beijos na bochecha e um abraço. Suei só de lembrar quanto de contato tínhamos com outros seres humanos.

Tive alguns pensamentos longínquos e desconexos em meio ao abraço. Não sei por que, exatamente, mas eu me lembrei de quando, lá no início da pandemia, alguns deputados europeus sugeriram que as novas vacinas fossem testadas em países de África. Teve muito protesto, indignação. Passados cinco meses, nós nos tornamos as cobaias perfeitas para as tais vacinas. E estamos imensamente agradecidos por essa benção. Em pesquisa realizada há pouco, cerca de 90% da população afirmaram que tomam com gosto a tal vacina, mesmo que não devidamente testada. 

O Brasil se tornou terra fértil para testes das três vacinas em estágio adiantado. E a vacina de Putin, Sptunik V, será comprada pela República de Curitiba. Quatro vacinas, no pior cenário possível da pandemia no mundo todo.

No início da pandemia, países como o Paquistão e o Vietnã eram fortes candidatos a uma situação catastrófica, diante da pobreza e pelas estruturas de saúde precárias.

Mas, tanto um quanto outro se saíram muito bem. Controlaram a pandemia. Com 212 milhões de habitantes, Paquistão possui, hoje, pouco mais de 6.000 mortos. O Vietnã, com cerca de 100 milhões de habitantes, possui apenas 24 mortes em cinco meses de pandemia.

Muito comentam que os hábitos mais conservadores da população nesses países ajudaram. Menos festa, menos álcool, menos contato humano, mais disciplina…. enfim!

Fato é que nós falhamos em não alcançar os 70% de isolamento e ao minimizar a força do vírus. Auxiliados pelos governadores e prefeitos, que mantiveram as obras públicas com vistas às eleições desse ano, o discurso bolsonarista foi o vencedor.

E mesmo sem controle do vírus estamos voltando à “vida normal”, com a abertura da economia. Muita gente tentou, mas o cansaço e a falta de dinheiro nos impelem à roleta-russa que se tornou uma simples saída ao mercado.

Estamos quebrados, internamente e como país. Há muita raiva no ar. No que vai dar tudo isso?

O abraço não levou mais que alguns segundos, mas o inusitado o fazia parecer eterno.

Lembrei, ainda, quando Mandetta, ainda Ministro da Saúde, dizia que o pico da pandemia seria atingido em abril. Dezenas de gráficos mundo afora previam uma pandemia dura no país, com término estimado para julho, talvez agosto. Estamos em agosto. Estamos nas mãos do vírus.

Agora, bares e restaurantes estão abertos. Pessoas sem máscara caminham pela rua. Ou máscaras no queixo, no ouvido. Ando a escutar que o vírus é fraco, morre quem tem que morrer. Não há empatia pela dor alheia. Bolsonaro venceu. Com sua liderança, foi estabelecido o “novo anormal”.

Finalmente, minha amiga me “desabraça”. Ela fica sem jeito e me pede desculpas. Eu fico sem jeito e me culpo por não ter retribuído ao abraço.

A conversa surge, trôpega. Ela conta as novidades. Casal de amigos se separou. Amiga saiu do armário. Outro amigo voltou a morar com a mãe. Tio e tia de um e outro, que morreram de Covid.

Tudo é dito em segundos. Mal a compreendo. Muitas novidades, muita coisa acontecendo enquanto eu estava fechado em meu casulo. Vida viva, que segue! Vou ter muita coisa a reaprender quando tudo isso passar…. vai passar?

Depois, silêncio. Eu não sei bem o que falar. Pergunto se ela e companheiro estão bem. “Sim, sim! Estamos levando, seguindo!”

“Que bom!”, digo eu. 

Já estávamos nos despedindo quando resolvi abraçá-la. Ela ficou sem jeito e não retribuiu. O abraço roubado, agora, era meu.

O texto foi originalmente publicado no blog Cau Marques