Que fim levou Capelinha? Fábrica de picolés fechou as portas, mas quer reabrir mais forte

Em meio a rumores de queda de qualidade, proprietários garantem que deram um tempo para se modernizar, mas marca também pode ser vendida

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 23 de janeiro de 2021 às 10:59

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Tiago Caldas
Seu Antonio fundou a fábrica em 1972 por Foto: Divulgação

Carregar nos ombros um patrimônio cultural e gastronômico da Bahia deve pesar bastante. Que o diga Orlando Melo da Rocha, 71 anos. Ninguém levou nas costas por tanto tempo a caixa de isopor contendo a mais famosa sobremesa das nossas ruas e praias, um monumento em forma de picolé. De tanto vender Capelinha, seu Orlando desenvolveu uma deficiência física e passou a colocar o isopor no carrinho. Nem assim largou o ofício. Muito menos a marca. “Sempre Capelinha”. 

Há uns três meses, porém, Orlando foi obrigado a mudar de fornecedor pela primeira vez em mais de 40 anos. Chegou o dia em que bateu à porta da fábrica da Capelinha, na Capelinha de São Caetano, e estava tudo fechado. “Disseram que faliu, mas não sei dizer o por quê”. Como a única coisa que fez nas últimas quatro décadas foi vender picolé, recorreu a outra marca: Campina, que fica em Campina de Pirajá. “É de qualidade também”, garantiu. 

Mas, que fim levou a Capelinha? Depois de certa insistência, o CORREIO conseguiu entrar em contato com a representante legal da fábrica, a bacharel em turismo Rosilene de Andrade Santos de Almeida, filha do dono e fundador da Capelinha, Antonio Mota dos Santos, hoje com 84 anos. Por vídeo conferência, acompanhada da advogada da empresa, Rosilene informou que a Capelinha não fechou as portas. Ao menos não definitivamente. 

O objetivo da família foi “dar um tempo” para modernizar a empresa, se aperfeiçoar e retornar com uma capacidade ainda maior de concorrer no mercado difícil que se tornou o mercado de picolés na cidade. “A Capelinha não fechou. Nesse período de pandemia, nós paramos para reavaliar algumas demandas, para refletir como poderíamos modernizar, inclusive a questão do maquinário e do atendimento ao público. Nós demos um tempinho, né”, explicou. 

Acontece que o burburinho com a notícia de que a Capelinha havia fechado se espalhou mais rápido que os picolés de amendoim e coco se esgotam nas praias. E isso atraiu, confirmou a filha de seu Antonio, propostas de compra da marca. No intervalo para reestruturação e levantamento de capital, surgiram as ofertas de compra da marca por “grupos importantes”. 

“Aí a coisa começou a brilhar de outra forma. A gente está estudando isso. Hoje, estamos com essa possibilidade. A venda da marca é algo iminente, mas ao mesmo tempo pensamos em reabrir”, confirmou a advogada da empresa, Tatiana Aragão. Ela disse que a Capelinha também fechou temporariamente para rever os registros que lhes dão o direito de atuar em outros nichos, como eventos, por exemplo. “Estávamos sendo muito demandados para eventos. Precisávamos reorganizar”. 

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Capelinha é uma empresa familiar. A produção vinha sendo feita como na época de seu Antônio. A ideia agora é colocá-la em outro patamar. “Queremos conservar o sabor, só que mais atrativo para outros mercados. Até para receber o empresário que queria levar a Capelinha para um evento importante, a gente não tinha nem esse escritório para acomodar a pessoa. Aí veio a pandemia. Pensamos: ‘a hora é agora’”.

A fábrica fez entregas de picolés até novembro. Mas, a plena atividade seguiu somente até o início do inverno. A previsão de retorno era março. No entanto, essa data está suspensa por conta da iminência de venda da marca. “Haviamos colocado como data março de 2021. Mas, agora, está em aberto”, revelou a advogada. A empresa não divulgou valores ou possíveis compradores da marca. 

Clássico Enquanto isso, picoleteiros como Orlando recorrem a outras marcas. Porém, seguem anunciando por Capelinha. Praticamente viu a fábrica ser criada, quase 49 anos atrás. Coloca sua caixa de isopor em um carrinho e sai pelas ruas Marques de Leão e Afonso Celso, na Barra. “Se eu não gritar ‘capelinha’, não vendo”. Valdir Santos, 55 anos, antigo picoleteiro do Porto da Barra, prefere não “enganar ninguém”. 

Até camisa com o nome ‘Capelinha’ Valdir mandou fazer. “Mas, agora guardei as camisas. Só uso se a fábrica voltar. Não gosto de mentira”, disse ele, que agora tem como fornecedor a empresa Realeza e convoca os clientes com outro clássico: “olha o picolé da fruta”. Marcos Henrique Assunção da Cruz, 55 anos, também é das antigas. Vendeu Capelinha por mais de 30 anos,só que há dois preferiu mudar de fornecedor porque “a qualidade caiu muito”. 

Marcos vende picolé da Sorveteria Real, que hoje é líder de mercado e ajudou a enfraquecer a concorrente. O picoleteiro é um crítico da Capelinha. Porém, ao anunciar seu produto, solta o gogó que pode ser ouvido a uns 400 metros de distância: “Capeliiiiiiiiiiiiinha”. “Faço isso porque meus clientes só me conhecem assim. Se eu chamar outra marca, ninguém vai me reconhecer. A verdade é que a qualidade do picolé da Capelinha já tinha caído há muito tempo”, opinou Marcos, que circula pela Graça e Barra.  

A filha de seu Antonio contestou Marcos. Disse que a fórmula dos picolés Capelinha nunca foi alterada e a qualidade é a mesma. O picolé também nunca diminuiu de tamanho, como se chegou a cogitar. Sempre foi o mesmo modelo de forma. A quadradinha. A única mudança foi recomendada pela Anvisa a partir de 2012. Todas as sorveterias passaram a colocar os picolés em embalagens. “Além de mais higiênico, ganha mais tempo de conservação, não pega sabor de outros alimentos”, concordou Rosilene.    

Santo Antônio A fábrica da Capelinha foi fundada em 1972. Começou no Alto do Peru, em uma mercearia que seu Antonio tinha. No início, chamava-se Picolé Santo Antônio. Mas, foi quando se mudou para a Capelinha de São Caetano que a coisa começou a se desenvolver. Os picolés começaram a ganhar notoriedade. Os sabores coco e amendoim abriram caminho, mas logo vieram milho verde e jaca, além de manga, goiaba e umbu.

Os maiores responsáveis pela Capelinha ter ganhado fama foram os picolés de milho verde e jaca, que eram incomuns na época, uma invenção de seu Antônio. As pessoas perguntavam de onde eram esses picolés diferentes. Os vendedores respondiam que a fábrica era na Capelinha de São Caetano. Foi aí que o nome pegou. O povo na rua chamava de “picolé da Capelinha” e o dono mudou a marca. “Com o tempo ele patenteou”, lembrou a filha.

Antes de fechar “pra balanço”, a fábrica produzia 18 sabores de picolés. Coco e amendoim nunca deixaram de ser os mais vendidos. “Meu pai chama coco e amendoim de Bahia e Vitória”. A Capelinha já chegou a contar com centenas de vendedores nas ruas e praias de Salvador. “Fazia fila aqui na porta com os meninos”, recordou o aposentado Isaías Nascimento, 64 anos, morador do bairro. 

Capelinha não tem selo do Iphan, mas como bem escreveu o perfil Soteropobretano no Instagram, é patrimônio da Bahia. No dia 9 de janeiro, o perfil fez uma publicação perguntando sobre o sumiço dos picolés das ruas. Um seguidor havia lhe dado a notícia de que a Capelinha fechou. Até a atriz Regina Casé usou emoticons para comentar e lamentar a postagem. Mas, “olha o Capelinha aí”. Segundo a família, ainda que a marca seja vendida, não vai ser dessa vez que os verões da Bahia vão se livrar do seu monumento em forma de picolé.

História da Capelinha em 10 atos

1 - Há quase  meio século, desde 1972, Antônio Mota dos Santos, hoje com 84 anos, deu início ao que seria uma revolução no mercado de  picolés de Salvador. 

2- Logo que abriu,  a fábrica não tinha nada a ver com o bairro de Capelinha de São Caetano, que lhe rendeu o nome mais tarde. Os picolés eram produzidos em uma mercearia no Alto do Peru e conhecidos como picolés Santo Antônio. No início, eram apenas quatro sabores: côco, amendoim,  milho verde e jaca.

3 - Os picolés começaram a ganhar notoriedade. Os responsáveis pela fama foram os picolés de milho verde e jaca, que eram incomuns na época, uma invenção de Seu Antônio. As pessoas perguntavam de onde eram esses picolés diferentes. Os vendedores respondiam que a fábrica era na Capelinha de São Caetano. Foi aí que o nome pegou. O povo chamava de “picolé da Capelinha”  e o dono mudou a marca. 

4 - Muitos tentaram copiar a Capelinha, principalmente no formato. Os picolés quadrados e o palito como o nome registrado eram suas principais marcas. Mas durante muito tempo ninguém conseguia superar seu sabor. 

5 - Até porque a maioria dos concorrentes  era feito de água e essência, os chamados bomba d’água. Já os picolés Capelinha eram feitos da poupa da fruta ou da pasta de ingredientes como amendoim e doce de leite. 

6 - Houve períodos  que os clientes reclamaram da queda de qualidade do picolé da Capelinha. Chegaram a espalhar a lenda de que a água utilizada para fazer o picolé vinha do Dique do Tororó. A fábrica diz que nunca mudou a fórmula e a água é filtrada. 

7 - Em 2012,   por exigência da Anvisa, os Picolés Capelinha (e os outros) foram obrigados a usar uma embalagem externa para proteger o produto.   

8 - Nos últimos anos, a concorrência veio pesada. Outros picolés de qualidade chegaram no mercado. Hoje, a liderança é da Sorvetes  Real, que chega a produzir mais de 30 mil picolés por dia. 

9 - O Capelinha já superou inúmeras crises, mas agora, com a pandemia, resolveu parar a produção temporariamente. 

10 - A filha de seu Antônio garante que o objetivo da empresa é se modernizar para voltar mais forte, mas existe a possibilidade de a marca ser vendida. Salvador e o próximo verão esperam ansiosamente.

Entrevista: Rosilene Santos

A Bahia queria saber e o CORREIO foi atrás. Que história é essa que Capelinha fechou? Conversamos com a filha de seu Antonio, Rosilene Santos, que além de matar nossa curiosidade sobre o futuro da empresa também negou queda de qualidade do produto e nos contou algumas curiosidades sobre a história de seu pai e a relação de amor com os picolés Capelinha.  

CORREIO: Capelinha fechou?

Rosilene: Não! Demos um tempo para se capitalizar e se modernizar para voltar com tudo. 

CORREIO: Capelinha sempre foi muito copiado. Isso atrapalhou vocês? 

R: A gente sempre teve um público muito fiel, mas essa pirataria atrapalhou porque a gente poderia ter crescido mais. Sempre atrapalha. A forma de combater isso é muito difícil. Como é que corre atrás dos picoleteiros? Já pensamos em entrar com algumas ações contra empresas que cresceram com o nosso nome, mas meu pai nunca quis essas demandas judiciais. Ele só não quer que mexa no que ele construiu. Mas tem pessoas que vendem picolés com outra marca dizendo que é Capelinha. Você compra e vê que não é.

CORREIO: Algumas pessoas e alguns picoleteiros dizem que caiu a qualidade. Vocês estavam colocando mais água?

R: A fórmula nunca foi alterada. Meu pai sempre foi muito fiel à qualidade do produtor. A fruta a gente só usa da estação. A gente usa a fruta da safra e nunca da entressafra. O picolé de mangaba mesmo é uma produção difícil. Uma mangaba pode estragar a produção toda. Nunca modificamos a fórmula. O primor de meu pai é pela qualidade e produção artesanal.

CORREIO: Disseram também que o tamanho diminuiu. É verdade?

R: Sempre foi o mesmo modelo de forma. A quadradinha. A maioria das empresas não utiliza esse formato, prefere da ponta arredondada. Meu pai nunca quis mudar esse formato porque o picolé quadrado é uma marca registrada da capelinha. O Inmetro teve lá e pegou 20 unidades de cada sabor. Não teve nenhum abaixo do peso.

CORREIO: Capelinha ganhou fama por causa dos sabores inovadores criados por seu Antônio? Como surgiam essas ideias?

R: Meu pai sempre foi muito de desafio. Meu pai começou a fazer picolé de jaca e foi criticado, mas hoje é um sabor consagrado. Ele gostava de desafio. Se as pessoas desafiassem ele a fazer picolé de tomate ele fazia. 

CORREIO: Quantos picolés Capelinha chegou a vender em um verão:

R: A máquina fabricadora de picolé da Capelinha foi construída por meu pai. Capelinha já chegou a produzir 15 mil picolés por dia. Mas ele não é de revelar números, seja de faturamento ou quantidade de vendas no verão ou inverno. Claro, no verão vende mais e o faturamento é maior. Mas Capelinha vende o ano inteiro.

CORREIO: O isopor dos picoleteiros também é uma marca. Algumas empresas preferem apostar mais nos freezers das lojas.  Como começou essa história do isopor?

R: Isso foi algo espontâneo, algo natural, nunca foi planejado. Hoje a gente trabalha muito com eventos, casamentos e etc. Mas tem o picoleteiro que não abre mão de ter o picolé de qualidade. Meu pai acredita que o isopor aproxima as pessoas. O carrinho não chega com a mesma precisão. O freezer na loja também não. O isopor vai até você. O picoleteiro tem identidade com o cliente. A coisa do isopor foi espontânea. Meu pai não criou isso, mas cultivou. Você chama o picoleteiro pelo nome.  

CORREIO: Como seu Antonio reagiu a esse momento e a possibilidade de venda?

R: Meu pai tá em isolamento, tá tranquilo. Trabalhou bastante, tá na época de aproveitar. A vida dele foi toda ali na sorveteria. Acordava cedo, ia para a sorveteria tentar desenvolver os sabores. É algo que ele fez com prazer. Mas agora ele tá tranquilo.