Quem tem pena de André Gonçalves?

Nenhuma história se sustenta com uma narrativa que repete chavões e obviedades

Publicado em 18 de dezembro de 2021 às 11:00

- Atualizado há 10 meses

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Eu nem lembro o nome dela, mas era brasileira, estava passando um ano em Paris e me contou - enquanto o metrô nos levava ao Marais - que o namorado não chegaria a tempo de irem juntos ao Roland Garros. Ele havia ficado no Brasil e teve algum problema. Enfim, não ia conseguir cumprir o combinado e eu soltei um "tadinho" ou algo assim. Ela riu e disse: "minha mãe sempre me falou que perdoa qualquer erro das filhas, menos ter pena de homem". Gargalhamos e eu mandei um beijo para a mãe dela, quando nos despedimos. Sábia.Ter pena de homem é mesmo um erro grave, negócio que atrapalha a vida e, mais cedo ou mais tarde, dá ressaca moral.

(Em respeito à sua inteligência, não vou gastar um parágrafo explicando que o sentido da palavra "homem" aqui se refere ao "parceiro" ou "ex-parceiro" no exercício da masculinidade padrão, em vários momentos das relações heteroafetivas. Muito menos que "nem todo homem". Precisa não, né? Obrigada.) 

Tenho lembrado muito dessa regra nos últimos dias, enquanto acompanho a história do ator que deve milhares de reais em pensão alimentícia às duas filhas agora adultas. Nem sei se hoje já foi preso ou já instalaram a tornozeleira eletrônica, mas tô achando interessante acompanhar o que ele diz. Repare: aparentemente, a questão com a qual todos/as devemos nos preocupar é que ele vai até "encerrar a carreira de ator" (não já tava encerrada não?) de tanto abalo emocional. 

Tem também o negócio de que as filhas só estão cobrando a dívida porque querem atingir a mulher com quem ele atualmente está casado. Tudo muito "injusto", ele é um pai massa que fazia chamada de vídeo, dava carinho e tal. Eu não sei que profissão esse moço vai escolher se "encerrar a carreira de ator", mas desaconselho que vire roteirista. É que nenhuma história se sustenta com uma narrativa que repete chavões e obviedades. Nem na ficção nem nos tribunais.

Quem tem pena de André Gonçalves? Pelo jeito, só mesmo Myrian Rios que acha ótimo o fato de André (que também é pai do filho dela) substituir o valor de pensão devido por presentes caros eventuais. Mas Myrian Rios, né gente? Enfim, deixa lá. Porém as outras duas ex - e respectivas filhas - parecem entender conceitos como abandono, violência patrimonial, violência psicológica, reparação e outros mais. De forma que não vai dar certo, presumo, o chamamento de atenção para o próprio drama que o devedor faz. Mesmo que essas mulheres não tenham escutado o conselho da mãe daquela moça do metrô, a vida ensina exatamente essa mesma lição. 

Precisamente quando aqueles caras cheios de "amor" se transformam em estranhos sem pena alguma de usar toda a profundidade das relações entre mães e filhos/as como arma para se eximir de obrigações. Que eles sabem: muitas vezes, preferimos perder qualquer coisa do que expor crianças aos enredos de vingança que eles fazem. Mesmo que esse dinheiro seja um direito dos/as filhos/as. Então, enquanto advogadas nos aconselham a "executar a dívida", a gente pensa no que a informação "minha mãe mandou prender meu pai" pode causar de impacto emocional. Porque é assim que eles vão contar essa história. Se houver qualquer possibilidade de seguir sem eles, seguimos, mesmo que as tripas tenham que virar coração.

Fazer das tripas coração é também se endividar, por exemplo. Em pesquisa recente da Acordo Certo, 67% das mães entrevistadas afirmaram já ter deixado de comprar algo necessário para atender a um pedido do/a filho/a. Às vezes, esse pedido é uma comida que 57% compraram, mesmo sem ter dinheiro suficiente. Isso tudo enquanto, muitas vezes, os genitores viajam, se esbaldam em festinhas, seguem fazendo outros/as filhos/as (já que é tão fácil) e trocando de carro. 

Nem sempre evitar embates jurídicos, silenciar diante da violência, significa passividade ou, muito menos, saúde financeira. É que além da amamentação, da introdução alimentar, do lazer, da escola, da sociabilidade, da higiene, da saúde física e de tantas outras demandas, também somos responsáveis pelo equilíbrio mental das pessoas que colocamos no mundo. Para garantir esse equilíbrio, muitas vezes abrimos mão de direitos, cobranças e litígios. Justamente porque sabemos que ele, a "outra  parte", não terá a menor pena de nos roubar a paz. 

As vezes, a mulher está informadíssima e tem consciência de que essa briga é boa e justa. Só que desiste porque uma mulher com filhos/as no colo é mais fácil de abater e eles sabem. É como se a gente carregasse um grande alvo e justamente ali eles metem bala, provando justamente a tradicional fragilidade do vínculo de paternidade. Esse medo é o nosso drama, sob o qual se escondem inclusive encerramentos de carreiras, dívidas e lágrimas, essas coisas que o devedor André expõe como grande novidade. 

(Ô, querido, grandes merdas, tá?) 

Só que crianças crescem, descem dos colos, entendem os cenários, assumem processos e dívida de pensão só prescreve dois anos depois da maioridade dos/as filhos/as. Aí, é que tá. Quando os/as credores/as vão cobrar os dois anos anteriores (infelizmente, não se consegue mais do que isso) o devedor gosta bem de dizer que as crianças não são mais crianças, que não precisam, que ele é que tá sofrendo injustiça. O devedor André mesmo diz que é "perseguição e que está "devastado" com toda essa situação que vive. Ou seja, no papo dele, numa perversa inversão de papéis, algozes são as mães e as filhas.

(Não tô dizendo que ele não presta pra roteirista? Óbvio demais.) 

Nem todo mundo se emociona com draminha de sessão da tarde nem com performance de qualquer atorzinho amador ou profissional. Em mim, pelo menos, dá é raiva. Quanto mais vejo a cara dele na imprensa, quanto mais leio a "defesa", mais penso no tamanho do estômago que as mães das filhas tiveram que ter por décadas, pra lidar com aquilo, enquanto davam conta, sozinhas, da infância das filhas. Também fico besta - porém não surpresa - que ainda exista quem defenda o não pagamento da dívida. Assim, como se fosse a conta de um boteco, como se essa ausência não significasse violência contínua e explícita. Essas coisas, tempo pode passar à vontade, mas não apaga. 

Comemoro a firmeza das mães e das filhas. Chamada de vídeo e "carinho" não pagam boletos. Não me importa que elas "não precisem" agora desse dinheiro. Certamente, já precisaram por anos. Que chegue para a cereja do bolo, então. Para vinhos, prazeres, viagens que tudo isso é reparação. Que também sirva como lição e recado. Tempo de justiça sempre chega. Quem tem suas dívidas que bote as barbas de molho ou prepare o tornozelo que. Às vezes, pessoas calam quando necessário, mas isso não significa que você é o único esperto nem que todo mundo é otário. 

(Se você é mãe e vive essa violência, busque se informar com calma. Lembre de deixar as suas dívidas, a espera, a condescendência, tudo bem registrado. Assim, fazendo do jeito certo, depois dos dias de luta, os de glória também podem chegar.) 

(Só lembre de nunca ter pena que a mãe daquela moça não vai lhe perdoar.) 

(Pra escrever esse artigo, bati um papo com a genial advogada baiana Mariana Regis que sempre ilumina nas questões de gênero presentes nesse tipo de embate.)

Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo