Relato: 'A intubação mexe com seu corpo todo. O tempo que passei na UTI foi como se eu não existisse'

Conheça a história da professora Miriam Rocha, que passou 15 dias intubada devido à covid-19

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  • Thais Borges

Publicado em 27 de março de 2021 às 06:59

- Atualizado há 10 meses

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A professora Miriam Rocha, 59 anos, sente que nasceu de novo. É assim que ela descreve a sensação de ter sobrevivido a 20 dias internada na UTI por covid-19, entre julho e agosto do ano passado. Nesse período, ela ficou 15 dias intubada, depois de ter tido 75% dos pulmões comprometidos.  Miriam ficou 15 dias intubada depois de ser infectada pelo coronavírus (Foto: Acervo pessoal) Leia a reportagem principal: O terror que pode ser a única saída: entenda como acontece a intubação na covid-19 

Confira o relato dela na íntegra

“Eu sou cardíaca, eu tenho estenose mitral. Meu cardiologista suspendeu a cirurgia quando surgiu esse vírus maldito, em março, porque ninguém sabia como ia ser. 

Quando foi no mês de julho (do ano passado), no dia 26, eu conversei com ele e falei que estava um pouco chata, que o corpo estava chato. Mas não tinha febre, nada na garganta. Ele disse que devia ser a estenose, que se continuasse sentido, devia avisar. 

De terça pra quarta daquela semana eu tossi um pouco, mas eu sempre tossia por causa do coração. No final da tarde, liguei para ele novamente e ele disse que era para ir para o (Hospital) Aliança. Lá, contei à médica o que estava sentindo e ela já disse que eu estava com covid. Mas eu tinha feito o exame, a sorologia, dois dias antes, e tinha dado negativo. Ela bateu o pé que era covid. Disse que ia colher o exame e no final da tarde eu ia saber. Nesse intervalo, já comecei a passar mal. Minha respiração já estava muito fraca. Ela me chamou para conversar, porque minha saturação estava caindo demais. E me disse que eu ia direto pra UTI. Meu marido entrou em pânico, porque eu tinha ido com ele e minha irmã. Ele dizia que eu não estava de covid, mas a médica insistia. Quando o exame saiu, eu já estava na UTI e deu positivo.

Eu entrei no dia 29, uma quarta-feira e eles me intubaram dois após. Antes, o médico chegou pra conversar e disse que a saturação estava caindo muito, que eu estava ficando muito fraca. Mas eu já estava de um jeito que você fala as coisas comigo e eu ouvia por ouvir. Não conseguia mais entender. Estava ficando fora de mim. 

Mas o médico disse que precisava me intubar porque o meu caso era muito sério. Meus pulmões já estavam com 75% de comprometimento. Minha saturação só caindo, chegou a 59. Ele perguntou se eu queria falar com alguém da família, mas eu já não lembrava o número de meus filhos. Deu branco. Meu marido atendeu e a única coisa que lembro foi que eu disse que ia ser intubada. Ele disse que já estava sabendo, mas que era uma coisa rapidinha, de três dias. Eu disse: ‘tá certo’. 

O médico me levou pra uma sala, a moça me levou pra conversa e pronto, acabou. Às vezes, de noite, eu acho que eu ficava vendo as pessoas, via meu filho ir pra festa e falava ‘Danilo, Danilo, olha eu aqui. Você não está me vendo, Danilo?’ A maioria do tempo era como coma, mas era como se eu tivesse sonhos. Passei 25 dias no hospital e 20 dias na UTI, sendo 15 dias intubada. Não senti nada de dor, mas sonhava muito com meus filhos. Teve um dia que eu via todo mundo vestido de astronauta na UTI. Depois, vinha a alucinação novamente, em que eu via muita zoada, como se fosse um pagode. Eu não recrimino, mas não gosto muito de zoada. Era o tempo todo com essas visões, mas o que mais me deixou emocionada mesmo foi o dia que eu acordei. Foi uma coisa linda, porque sou muito católica. Eu acordei de domingo para segunda. Eles tiraram o tubo na na sexta-feira para eu desmamar, mas só vim acordar de domingo para segunda. 

Naquela noite, eu estava brigando com um homem no meu sonho. Ele dizia: ‘por que você está tão nervosa, tão agressiva?’. Eu dizia: 'você não vê? Olha onde eu estou. Olhe o meu corpo onde está’. Eu não estava no corpo. Era incrível, porque meu corpo estava deitado num pano branco e o homem de branco estava com uma túnica linda. Ele perguntava o motivo para eu chorar tanto, até que eu disse: ‘moço, eu não quero que o senhor me pergunte nada’. Ele respondeu: ‘mas eu vou insistir, porque você me chama muito’. Eu falei: ‘meu Deus do céu’ e ele: ‘Tá vendo?’. Eu disse que só queria acordar. Ele respondeu: ‘então, acorde’. Foi como se eu tivesse em outro mundo 

Foi um tormento para minha família. Enquanto eu estava intubada, faziam chamada de vídeo para o meu marido. Não vou dizer que foram de sofrimento para mim porque eu não sentia nada, não via nada, só sonhava algumas coisas. Mas foi um sofrimento para meu marido, meus filhos e minha irmã. 

Quando acordei e eles me botaram na semi-intensiva, eu tive arritmia, de tão grande que foi minha alegria por sair da UTI. Tive que tomar aqueles choques com desfibrilador, porque meu coração disparou. Me levaram pro apartamento, fiquei com minha irmã e marido, mas ainda super perdida, muito inchada mesmo 

A médica conversou com meu filho e disse que tudo que estava passando era normal, que eu ia ver coisas, que ia falar coisas. Tem muitos que veem as coisas e não falam pra ninguém. É ruim porque a pessoa não pode ajudar porque não sabe o que está se passando. Ela disse que tudo que eu visse era para falar. No início, eu não movia os braços, não andava. Só sentia meu corpo sem os braços e as pernas, e a cabeça. A psicóloga conversava muito comigo, dizia que tudo que eu sentia devia falar. Minha nutricionista na paciência de Jó comigo. 

Meu RNI no sangue até hoje não está estacionado. Ou fica baixo ou fica alto. Mas com ele baixo, o sangue fica grosso e posso ter trombose. Com ele alto, fica ralo e posso ter sangramento. Até hoje faço exames de sangue duas vezes na semana porque tem que acompanhar. Tive que fazer sessões de fonoaudiologia, fisioterapia e psicologia. Terminei minha fisioterapia no dia 30 de janeiro. No início, fazia todo dia, depois toda semana. Comecei a andar no dia 23 de setembro, ou seja, fiquei de 29 de julho a 23 de setembro sem andar, mesmo tendo saído do hospital no dia 22 de agosto. 

Queria engolir as coisas e tinha dificuldade. Fiquei um tempo só tomando líquido. Depois, podia comer algo pastoso, mas não podia comer nem farinha. Perdi 9,4 quilos. 

Aqui em casa todo mundo tem que seguir um ritmo só com essa pandemia. Todo mundo quando chega do trabalho é direto pro banho, ninguém entra calçado. Penso que, por ter passado por essa, tenho muito que agradecer a Deus. Explico sempre às pessoas que o caso é muito feio, é muito feio. E você deixa toda a família em pânico. 

Aos jovens, que agora a covid está atacando mais a eles, eu diria que parem de ficar na rua, nesses paredões. Eles ainda vão ter muita vida pra viver, mas o pai, a mãe, o avô, a família… Esses estão acima de tudo. 

Meu marido acha que contraí essa covid num laboratório onde tive que ir fazer um exame, mas eu tenho certeza de que não foi lá. Nós temos um comércio de embalagem de bomboniere e eu fico muito no caixa. Apesar de ter proteção de vidro, mas você pega em dinheiro, tem contato com pessoas. Pense num ser humano chato: essa pessoa sou eu. 

Meu marido falava o tempo todo que eu que não podia ter pegado essa doença, porque eu fui quem mais me cuidou. Mas é uma roleta russa com certeza. Muitos não saem da intubação. Mesmo depois que acordei, tinha que ficar com o catéter para respirar, porque a falta de ar voltava. E ainda tem gente que diz que isso não existe. Essa doença veio para mostrar que não dá pra viver no mundo só e que você não tem direito de botar a vida dos outros em risco por causa da sua ignorância. A intubação mexe com seu corpo todo. Não tenha dúvida de que é nascer de novo. Esse tempo todo que fiquei na UTI foi como se eu não existisse. Eu estava do lado de lá e vim pro lado de cá no dia 17.