Relato: 'A vida na Austrália parece um sonho e, ao mesmo tempo, uma prisão'

Baiana, Monica Garrety mora na Austrália há sete anos; país fez lockdown severo e hoje vive realidade bem diferente do Brasil, com pessoas sequer obrigadas a continuar usando máscara

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  • Vinicius Nascimento

Publicado em 4 de abril de 2021 às 09:18

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Acervo Pessoal

Contra a pandemia, tudo. Tudo mesmo. Há muitas preocupações decorrentes do coronavírus, mas, do outro lado do oceano, o país que certamente vem à mente quando se fala em Oceania priorizou salvar vidas - tendo em mente as consequências econômicas e sociais. Foi pioneiro em fazer lockdown total e hoje convive com uma realidade em que só quem usa máscara nas ruas é quem quer. Ainda há muita atenção: três casos numa cidade são motivo para fechamento de fronteiras e do comércio por sete a dez dias e todo o mundo sabe por onde cada infectado passou, para incentivar aqueles que estiveram no mesmo lugar fazerem isolamento. Uma vida de vigilância, mas segura e bem próxima do normal.

Quem conta tudo isso é Monica Garrety, baiana que mora na Austrália há 7 anos. Desde o início da pandemia, passou por várias barras: engravidou e teve sua primeira filha, a pequena Eloisa Garrety, que ainda não conheceu os avós nem qualquer familiar brasileiro por conta do fechamento das fronteiras. Em um relato pessoal, contou como é a sua rotina e a vida num país que topou fazer restrições mais severas e hoje colhe os prazeres e dissabores dessa decisão difícil.

Leia a reportagem principal em: Quando reabrir vale a pena? Entenda como outros países têm saído de confinamentos Mônica posa para foto com o marido Chris e a filha Eloisa na pequena cidade de Gerringong. Apesar da vida mais segura em relação à pandemia, ela vive alguns dramas, como o de não poder apresentar a filha primogênita aos pais quase um ano após o seu nascimento (Foto: Acervo Pessoal) "Eu moro aqui há quase 7 anos. Foi algo que sempre quis fazer porque fiz intercâmbio pra cá quando tinha 16 anos, fiz o segundo ano colegial aqui, me apaixonei, quis voltar. Mas fiz faculdade no Brasil. Acabei fazendo mestrado aqui, consegui emprego e fui ficando. Conheci meu marido, começamos a morar juntos e esse sempre foi meu plano. Quando vim fazer o mestrado foi querendo ficar e deu tudo certo.

Quanto aos desafios, o maior deles é estar longe da família, amigos, mas a Austrália tem muitas semelhanças com o Brasil. É um lugar muito amigável, de clima parecido. Vim para Sydney e depois de começar a namorar com Chris nos mudamos para o interior, na costa, a 2h pro Sul. Gerringong é uma cidade pequena do estado de New South Whales, mas é maravilhosa. Parece Praia do Forte, digamos assim.

Quando aconteceu a pandemia, já morava no interior. Uma vida normal. Não tínhamos filho. Eu fiquei grávida e o corona aconteceu. Quando explodiu no mundo entre janeiro e fevereiro, estava grávida de 4 a 5 meses. Foi bem difícil porque a gente não tinha muita informação sobre nada. Era novidade pro mundo tudo, tudo muito rápido. Tinha tudo programado pra meus pais virem pro parto.

Alugamos uma casa pelo Airbnb na mesma rua e tudo aconteceu tão rápido que no final de março a Austrália fechou a fronteira internacional. Foi um dos primeiros a se fechar drasticamente e foi péssimo pra mim porque meus pais ainda não conhecem minha filha, que vai fazer um aninho em junho. Só a viram pelo Facetime. Foi super difícil tudo isso: estar grávida, sem poder sair de casa porque morria de medo. Eram poucos artigos sobre o coronavírus na gravidez e tinham casos de pessoas que, ao contrair coronavírus na gravidez, abortavam ou da criança nascia prematura. Então trabalhei totalmente em home office, briguei no meu trabalho para conseguir. Pedia delivery de mercado e tudo. Só saia de casa uma vez por dia no final da tarde para caminhar até o final da rua e voltar, mas naquela coisa que muita gente no Brasil ainda faz até hoje.

Essa era a minha situação. Por estar grávida, fiquei ainda mais preocupada. Tiveram alguns casos na minha cidade, mas nas principais capitais foi onde bombou. A Austrália teve um dos maiores picos do mundo em Abril. Fecharam as fronteiras internacionais e nacionais. Eu acho que a Austrália teve um dos regimes mais restritos e por isso hoje está basicamente de volta ao normal. Os casos são quase 0, quando acontece controlam muito bem. Na semana passada teve em Brisbane e eles fecham tudo, divulgam na mídia, falam a rotina das pessoas e encorajam que as pessoas que foram nesses lugares para se testar e também saber. Eles abafam de forma dramática e é por isso que dá certo.

Na época que estava bombando, em abril, maio, na época do Natal, eles pediram que as pessoas usassem máscara mas são fases. Em março e abril (do ano passado) fecharam tudo e com o tempo foi reabrindo com restrições de pessoas, respeitando distância, abrindo comércio, shopping. Hoje aqui se vive super normal, ninguém usa máscara, é opcional. Todos os lugares têm álcool gel, todo lugar pede para fazer check-in para que, caso tenha algum caso de contaminação de alguém que foi ao lugar, sabem onde estavam e podem contactar as pessoas para ficar em quarentena. Mas assim como no mundo todo fecharam as escolas, fecharam tudo e foi abrindo aos poucos.

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Aqui na Austrália cada estado fez suas escolhas. Um abriu fronteiras, outro não... é um problema isso mas até para fazer a abertura foi doideira. Quem quer viajar na Austrália tem chance de ter a viagem cancelada. É bem complicada a viagem entre estados aqui.

Mas é uma realidade que pode parecer sonho para vocês que estão no Barsil. Ninguém usa máscara, é possível ter contato com as pessoas, mas todo mundo aprendeu muito que nem a pandemia. Também ajuda que ninguém é como no Brasil de tocar as pessoas, ficar próximo. Aqui as pessoas são mais frias nessa questão de cumprimento. Quase ninguém se fala com aperto de mão, mas já está tudo normal.

As pessoas vão para academia, aulas, bares, restaurantes. Não existe nenhuma restrição do número de pessoas num lugar. A única coisa que não reabriu foram festas grandes, boates, justamente por isso que fecham tudo com poucos casos. As pessoas têm medo de planejar viagens e festas de grande porte porque tem o risco de não acontecer.

A Austrália é um país com muitos imigrantes e a falta de mobilidade é algo que dói. Há pessoas querendo ir para outros países, querem receber familiares e as restrições em relação às fronteiras internacionais são muito fortes. No momento, só quem pode sair ou entrar na Austrália são cidadãos australianos com residência permanente, oferta de trabalho fora ou aqui e quem é família imediata. Mas meus pais não são considerados família imediata. Somente filhos, mulher, marido o são. Mesmo assim, tem que pedir autorização para eles aprovarem ou negar. Os vôos são muito complicados, vários são cancelados faltando um ou dois dias.

A Austrália é uma ilha. Tem o privilégio de não ter fronteira com outros países então está tudo muito controlado, porém é uma prisão. Estamos vivendo numa prisão. Ninguém sai ou entra a nao ser situações específicas. Também dá para pedir exceção: se você tem familiar doente precisando de apoio financeiro, mental, se eu tiver com um câncer meus pais podem vir ajudar mas mesmo assim tem que provar tudo não bastar solicitar. Tem que mostrar cartas dos médicos, relatórios de hospital, comprovar tudo.

Já apliquei duas isenções para meus pais me ajudarem com o parto, depois com minha filha porque meu marido trabalha full time e somos só nós dois e, mesmo assim, as cartas que coloquei foram negadas. Tenho laudos médicos alegando que estava com depressão pós-parto, que minha filha tinha distúrbio de sono e não foi suficiente para deixarem meus pais virem. São poucos os casos de aprovação. Normalmente é quem tem algo a mais. 

Por isso tudo, enxergo que viver assim seja uma via de mão dupla. Por um lado é maravilhoso estar aqui, protegido, vivendo normalmente, podendo ir pra praia, 'aglomerar', mas você não pode estar com quem gostaria de estar e isso é muito doloroso. Talvez seja mais tranquilo para quem é nativo e tem toda uma rede de apoio aqui.

Meus pais, meu irmão, toda a família mora no Brasil e é muito difícil. Fazemos Facetime todos os dias, meus pais mantém informados da situação daí e é assustador. A família toda é muito responsável mas você fica indignado de ver a falta de responsabilidade de algumas outras pessoas. Falta de informação, educação. A política no Brasil é complicada, muito complicada. 

Eu nunca tive vontade de voltar para o Brasil, minha intenção foi sempre de ficar aqui. Minha vida é aqui, meu marido é australiano, tenho uma filha hoje. Minha intenção nunca foi voltar, mas do jeito que está tenho ainda mais certeza que não quero voltar e graças a Deus tenho essa opção. Só que mesmo assim é muito difícil. Eu queria visitar, quero que minha família conheça minha filha e até agora ainda não tenho nem previsão de quando isso poderá acontecer. O sorriso banguelo de Eloisa Garrety e seus 10 meses de vida vai salvar o seu dia (Foto: Acervo Pessoal) Vacinação Eles fizeram um plano de vacinação semelhante ao Brasil. Começa com mais idosos, pessoas com comorbidades, até chegar aos mais jovens. O plano era de vacinar até outubro deste ano e a população daqui e pequena. Era algo que tava todo mundo muito animado, mas parece que não vão conseguir porque a Austrália tem um problema de logística para a vacina chegar aqui. Refrigeradores e tal. 

Mas está tudo muito restrito. Não tem voo, tem restrição via navio e está havendo esse problema logístico para a Austrália receber a vacina. Estão aplicando a vacina de Oxford e uma outra que a produção é aqui, mas está atrasada. O pessoal está revoltado. Se falava em outubro retomar viagem internacional, mas a Austrália é muito conservadora. Até para começar a vacinação, esperaram a Europa para ver como seria, se teria reação.

Agora a Europa está pensando em fazer passaporte internacional e aqui se fala também mas quando vai acontecer já é outra conversa. Já se fala em 2022, mas não sabemos, então continuamos aqui esperando.

É difícil falar qual a grande lição. A Austrália fez prevenção e regras fortes, restritas em relação à pandemia. Muito restritas. Corta o mal pela raiz: aparecem dois casos, fecha tudo, ninguém sai ninguém entra, mas gera outros problemas como estar longe da família. Mas pensando de uma forma maior, de uma forma geral, o trabalho é maravilhoso. Só o fato de viver normal é a prova disso, mas somos prisioneiros desta situação, pelo menos por enquanto.

É bom sempre lembrar que o fechamento também teve seus problemas. Foi uma decisão difícil. Aqui teve um tempo que papel higiênico era ouro, cada pessoa só podia comprar um pacote por vez. Fralda também ficou muito difícil. Foram vários problemas de abastecimento.

De fato, parece um sonho. Mas há problemas de ter restrições tão fortes. A indústria de turismo, que era muito forte, está a 5% do que costumava ser. Pessoas foram demitidas, empresas quebraram.

Houve incentivos para manter as pessoas com dinheiro, ainda existem incentivos mas cada dia reduzindo mais. Eu acho que a partir do próximo mês acaba o incentivo e todo mundo fica preocupado. Aqui, são dois incentivos. Um chama ‘job keeper’ que o governo pagava para as empresas que estavam sofrendo com a pandemia para que as empresas conseguissem manter os empregados ou parte deles.

O outro chama ‘job seeker’ para os australianos que perderam o emprego que estavam procurando um emprego. Pagam algo em torno de $700 por semana (salario mínimo aqui).

A Austrália está oficialmente em recessão porque o coronavírus quebrou muitas empresas. Muitas demissões, reinvenções profissionais. Tem sido muito difícil nesse aspecto também.

Sinceramente, não vejo como o Brasil conseguiria fazer o mesmo que a Austrália. O Brasil tem problemas que afastam essa estratégia: fronteiras com outros países, corrupção absurda e a falta de educação. É complicado. Eu só torço para que acabe logo".