Rivalidade entre Elis Regina e Nara Leão acabou sumindo pelos ares, diz biógrafo

Biografia 'Ninguém pode com Nara Leão', de Tom Cardoso, chega às livrarias trazendo revelações inéditas sobre a musa da Bossa Nova

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  • Ronaldo Jacobina

Publicado em 9 de maio de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Divulgação

"Quando Elis Regina me apresentou em seu programa como “uma moça que está prometendo muito”, achei que estava sendo agredida", disse à imprensa a cantora Nara Leão, àquela época, lá nos idos dos anos 1960, já conhecida e respeitada nacionalmente como musa da Bossa Nova. 

A declaração de Nara - artista que lançou para o Brasil nomes como Chico Buarque e Maria Bethânia, e jogou luz no morro carioca trazendo para os encontros musicais que costumava promover na disputada sala de estar do apartamento dos pais, em Copacabana, compositores como Nelson Cavaquinho, Cartola e Zé Ketti - era uma resposta a uma das muitas provocações da Pimentinha, um dos seus maiores desafetos. 

Durante muito tempo as duas estrelas não pararam de se alfinetar em entrevistas para jornais, revistas e programas de rádio e TV. "Eu não tinha nada contra a moça Nara Leão. Hoje eu tenho, porque me irrita a sua falta de posição, dentro e fora da música brasileira”, espinafrou Elis que num outro momento de ira disparou: "A verdade é que Nara Leão canta muito mal”. (Divulgação) Nara Leão na Praia do Arpoador, no Rio, em 1963 A carioca, embora tivesse um temperamento mais doce que o da cantora gaúcha, era firme nos seus posicionamentos e contra-atacava. "Toda essa confusão começou quando apareci com o sucesso de “A banda”, de Chico Buarque".  Elis rebatia: “Nara foi a musa, durante muito tempo, mas começou gradativamente a trair cada movimento do qual participava”. 

Assim, entre uma pedrada e outra, as duas viveram e protagonizaram inúmeras brigas durante longos anos, até o acaso coloca-las num voo doméstico onde enfim selaram a paz, pouco tempo antes da cantora gaúcha morrer.

A rivalidade era muitas vezes alimentada pelas gravadoras de ambas e pela TV Record, emissora a qual eram contratadas, com o objetivo de fazer barulho na mídia. Cada embate rendia lucros tanto para a indústria fonográfica quanto para a audiência.

Esta e muitas outras histórias que envolvem importantes nomes da cena cultural carioca entre os anos 1950 e 1980 estão no livro Ninguém Pode com Nara Leão, escrito pelo jornalista e escritor Tom Cardoso que acaba de chegar às livrarias pela Editora Planeta.  (Divulgação) Chico Buarque compôs várias canções para a amiga Nara Leão Para o autor, a rivalidade entre as duas artistas pode sim ter sido incentivada por outros para fins comerciais, mas a antipatia mútua era real.

Com prefácio de Tárik de Souza, um dos mais respeitados críticos da MPB, a biografia é resultado de mais de dois anos de pesquisa e, embora não seja a primeira da artista já publicada, traz um retrato muito mais completo da trajetória pessoal e artística da carioca.

Nara foi peça fundamental no surgimento de importantes movimentos musicais da época, como a Bossa Nova, bem como incentivadora de outros tantos pelos quais passeou, sem que a história tivesse lhe dado o devido reconhecimento. 

O título, pinçado de uma carta do cineasta Glauber Rocha dirigida ao colega e então marido da biografada Cacá Diegues, quando o casal cumpria exilio em Paris, diz muito sobre o conteúdo da obra.  (Divulgação) Nara com Nelson Cavaquinho: com ela o morro tinha vez Nesta nova biografia da artista Tom Cardoso vai além do que já foi dito e traz revelações como a descoberta de uma ficha da artista no DOPS – Nara bateu de frente com a Ditadura Militar, o que lhe gerou muita perseguição do regime.

Na ficha consta um depoimento do músico Roberto Menescal, amigo que ela fez nos tempos da Bossa Nova e que manteve por toda a vida. No texto Menescal se queixa das músicas subversivas que Nara e outros artistas cantavam.

A descoberta foi uma surpresa para o autor que imediatamente procurou o músico que, claro, negou tudo. “Imagina eu fazer isso com Nara, minha grande amiga desde os 11 anos de idade! Fiquei junto dela até sua última entrada no hospital. Podiam ter feito isso com meu nome em relação a qualquer um, menos Nara”, declarou Menescal ao biografo. (Divulgação) Nara e Menescal com a turma da Bossa Nova em Copacabana (1960) Na conversa entre os dois, Menescal contou que ele próprio só tomou conhecimento do seu depoimento na ficha de Nara há pouco tempo atrás. Para o autor, é possível sim que o depoimento de Menescal tenha sido forjado pelos militares. “Eles podem sim ter feito isso para causar algum tipo de intriga”, diz. (Divulgação) Nara com os filhos Francisco e Isabel Vanguarda De temperamento discreto, embora de posições firmes, Nara Leão, é descrita pelo autor como vanguardista. Cantou e gravou o que quis, passeou por movimentos pelos quais se encantou, como o Cinema Novo, por exemplo, sem se preocupar com rótulos. Nunca baixou a cabeça para gravadora ou produtores, jamais foi submissa a homem e defendeu a liberdade numa época em que as mulheres eram recatadas e dedicadas ao lar. Tudo sempre com naturalidade e sem levantar bandeiras.  “A importância de Nara Leão na cultura brasileira não se restringe à música popular, muito menos ao específico da bossa nova, do samba de morro, do tropicalismo. Ela ajudou decisivamente a mudar o jeito da mulher brasileira, a libertá-la de preconceitos antigos, a dar-lhe um novo sentido e um novo modo de estar no mundo”. Cacá Diegues, cineasta, ex-marido e pai dos dois filhos da cantoraEmbora não fosse exatamente namoradeira, teve uma vida amorosa movimentada. Antes de casar com Cacá Diegues, com quem teve um casal de filhos, viveu alguns romances agitados, como com o compositor Ronaldo Bóscoli (que mais tarde se tornou um dos maridos da rival Elis Regina), e teve flertes rápidos com o cantor da Jovem Guarda, Jerry Adriani e com o poeta Ferreira Gullar, na época casado e pai de três filhos.

Apaixonada por música, Nara Leão não tolerava as obrigações do show bizz como fazer shows, dar autógrafos ou entrevistas. Era tímida demais pra isso. Não fazia concessões ao mainstream. Gravou o que queria e deixou uma discografia com 25 álbuns. (Divulgação) Capa do álbum feito com a obra de Roberto e Erasmo Carlos Gostava de descobrir e promover novos artistas. Foi para Nara que Chico Buarque compôs Com açúcar e com afeto, a primeira de muitas canções do artista em que a mulher assume a narrativa em primeira pessoa. 

Chegou a largar a carreira para casar e ter filhos. Fez curso supletivo para concluir o ensino médio, quando já era famosa, com o objetivo de cursar psicologia na universidade, para onde ia de transporte coletivo, mas não chegou a concluir. 

Nara Leão morreu em 1989, aos 47 anos, vítima de um tumor no cérebro. (Divulgação) Nara teve os joelhos mais elogiados que seu canto (1956) Quem foi Nara?

Nascida no Espírito Santo, a filha do advogado capixaba Jairo e dona Tinoca, irmã da modelo e personagem da cena carioca Danuza Leão, mudou para o Rio Janeiro quando tinha um ano de idade. Tímida e cheia de neuroses, foi uma das mais produtivas intérpretes da MPB dos agitados anos 1960 aos 1980 e ficou conhecida também por definir os costumes e a expressão política da época. “Foi símbolo da reação à ditadura de 1964, sem nunca pretender ser coisa alguma”, conforme escreveu Paulo Francis após a morte da cantora. Mãe de Francisco e Isabel, fruto do casamento com Cacá Diegues, Nara Leão, conforme definiu a sambista Teresa Cristina, que assina a orelha do livro, “foi uma artista mulher livre e independente que serve de exemplo para todas nós”.  Capa do livro Serviço: Título: Ninguém pode com Nara Leão – uma biografia Autor: Tom Cardoso 240 páginas Livro físico: R$ 49,90 E-book: R$ 30,90 Editora Planeta (Divulgação) Nara Leão passeou pelos diversos movimentos musicais de seu tempo POR QUE NINGUÉM PODIA COM NARA LEÃOEclética - Nara participou ativamente dos mais importantes movimentos musicais surgidos a partir da década de 1960 – e saiu de todos eles sem se despedir.

Livre - Filha de um advogado excêntrico fez tudo que uma pré-adolescente de classe média alta carioca nos anos 1950 jamais sonhou fazer: como ter aulas de violão com um professor negro.

Independente - Tratada como bibelô pelos machos alfas da bossa nova, deixou o movimento para se juntar à turma politizada do CPC e do Cinema Novo.

Pioneira - No disco de estreia, recusou-se a pegar carona no sucesso da bossa nova e gravou um disco com sambistas do morro como Cartola, Zé Kéti e Nelson Cavaquinho.

Feminista- Apesar da decisão de dar um caráter mais político ao disco de estreia, tendo como fio condutor um gênero que estava associado diretamente às massas, ela se recusou a gravar uma letra machista de Cartola.

Revolucionária - O demolidor segundo disco serviu de inspiração para um dos mais revolucionários espetáculos musicais da história do país: o “Opinião”.

Generosa - Foi Nara quem abriu as portas do Sudeste para os talentos do Teatro Vila Velha, Caetano, Gil, Gal e Bethânia - essa última, com 17 anos, foi indicada por ela para substituí-la no show “Opinião”.

Combativa - Foi a primeira estrela da MPB a falar abertamente e de forma mais contundente contra a ditadura militar, ao afirmar, em 1966, que o “Exército não servia para nada”.

Provocadora - Ao ouvir a expressão “Esquerda Narista”, ela, que sempre rejeitou ser porta-voz de qualquer coisa, decidiu gravar, só por provocação, uma singela marchinha de um compositor iniciante, que mal abria a boca: Chico Buarque.

Dona de si - Cansada de tudo e de todos, decidiu dar um tempo, no auge da carreira: “Uma hora eu sou a musa da bossa nova, outra a cantora de protesto e ainda tem essa coisa ridícula do joelho. Então me recuso a virar um sabonete e vou dar uma parada”.

Corajosa  -Depois de uma parada para estudar e cuidar dos filhos volta aos estúdios, decidiu gravar um disco inteiramente dedicado ao cancioneiro de Roberto e Erasmo, ainda vistos como artistas menores por alguns medalhões da MPB.

Desbravadora - No fim da década de 1970, rodou o país numa perua, descobrindo novos talentos e fazendo shows nos rincões do Brasil, ao lado d o violonista Raphael Rabello, então com 15 anos.

Dura na queda - Diagnosticada com um tumor no cérebro, que lhe impôs uma série de complicações, nunca deixou de produzir compulsivamente, gravando praticamente um disco autoral por ano. (Divulgação) Tom Cardoso é autor da biografia de Sergio Cabral SOBRE O AUTOR Tom Cardoso, nascido no Rio de Janeiro, é jornalista, filho do também jornalista baiano Jary Cardoso. Com vasta passagem pela imprensa brasileira, é autor, entre outras obras, das biografias do jornalista Tarso de Castro, do jogador Sócrates e do político Sérgio Cabral. Foi um dos vencedores do Prêmio Jabuti 2012 com o livroreportagem O cofre do Dr. Rui, que narra o assalto ao cofre de Adhemar de Barros, em 1969, comandado pela VAR-Palmares.