Roça-office: dobra procura por imóveis no interior baiano durante pandemia

Reflexão sobre vivência urbana tem causado um novo êxodo urbano; conheça histórias e veja quando vale a pena se mudar

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  • Fernanda Santana

Publicado em 5 de setembro de 2020 às 07:00

- Atualizado há um ano

A Rua Nova, na localidade de Catu, município de Vera Cruz, é daquelas onde até os cachorros são conhecidos pelos nomes. A menos de 100 quilômetros de Salvador, o tempo não parece urgente e quase tudo é silêncio. Ao fim do dia, Lívia Anunciação, 33 anos, senta-se na varanda de casa. “Fico vendo a vida passar”, diz. Ela trocou a capital, em abril, por uma rotina em que seja possível trabalhar e enxergar o acontecimento da vida – nas plantas, no céu, no mar. “Percebi que meu cotidiano de antes não estava dando certo”, completa.

O interesse por moradias no interior, onde se busca um ambiente menos aglomerado, mais livre e longe da agitação dos centros urbanos, começou a ganhar sentido para um grupo que, com possibilidades financeiras, passou a refletir sobre a vivência urbana. A Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário da Bahia (Ademi) identificou, de março a julho deste ano, em comparação a 2019, o dobro da busca por moradias nos interiores. As regiões preferidas são Sul da Bahia, Litoral Norte e Chapada Diamantina, segundo a Ademi.

A OLX, uma das maiores plataformas online especializadas em venda e aluguel, calculou, a pedido do CORREIO, um aumento de 32% na busca por imóveis no interior. Em Salvador, o aumento foi de 21%. A Ademi não informou dados por município. “Foi uma possibilidade que o home-office trouxe. Há uma busca por morar num imóvel maior, com uma qualidade de vida maior, e sem aquela agitação das cidades grandes”, diz Cláudio Cunha, presidente da Ademi.

A Mercer - que presta consultoria em carreira, saúde, previdência e investimento - fez um levantamento que aponta interesse de oito em cada dez negócios em praticar o home-office. Não há estimativa para a Bahia. Mas, a possibilidade de realizar tarefas remotas realmente fez a diferença nas escolhas de mudança.

Quando Lívia chegou em Vera Cruz, onde já tinha uma casa, pensava numa espécie de retiro. Trabalharia durante o dia e descansaria à noite. Queria ver a vida passar, não ser engolida por ela. No bairro da Ribeira, onde morava, se incomodava com o desrespeito às recomendações de isolamento social, o que a fez decidir pela mudança, naquele mês de abril.  Lívia e sua cachorrinha, Luz, no jardim de casa, em Vera Cruz (Foto: Acervo Pessoal) A casa já tinha rede de internet e não foram necessárias adaptações. “Acho que essa forma de vida é o futuro. Não se resume a trabalho, você percebe coisas que sempre via, mas não enxergava”, diz ela, que não se vê mais integrada à rotina do outro lado da Baía de Todos-os-Santos. Até então, a contadora se dividia entre o trabalho em casa e as visitas a clientes. Os engarrafamentos, a rotina, tudo a estressava. “Se não fosse a pandemia, eu continuaria daquela forma de viver. Eu ficava tão ansiosa que muitas vezes dormia a base de tarja-preta. Hoje, 19h para mim já é madrugada”, conta. Ela trabalha na sala de casa, atende os clientes por vídeo e só em extrema necessidade embarca num ferry-boat para Salvador. 

Tanto faz São Paulo ou Ubatã Ao deixar Ubatã, no Baixo-Sul da Bahia, aos 16 anos, para viver em Salvador, a atriz Analu Tavares - não revela a idade, mas diz já ter passado dos 40 - também deixou para trás a vivência interiorana e adotou um estilo de vida urbano. Tornou-se atriz e produtora, frequentava cinemas, ia a bares, shows, “não parava”, ela define.

Quase três décadas depois da partida, retornou ao interior, há seis meses, para viver o isolamento mais confortavelmente na casa dos pais. “Eu estava trancada sozinha em Salvador, aqui é muito mais confortável, tenho o privilégio de acompanhar meus pais, de cuidar deles, e de experimentar coisas que eu não fazia”, conta. Passou a cozinhar, a andar de bicicleta, aproveitar o tempo com os pais e participar de projetos mesmo à distância, como peças de teatro online, produção de minissérie online.“Sinto saudade de Salvador, mas não vou dizer que foi difícil me adaptar. Se eu tivesse vindo morar aqui com tudo acontecendo, talvez, mas não foi o caso”, comenta.A cidade surge, há aproximadamente três mil anos antes de Cristo, como um local de convivência. O que ocorre, agora, é uma ressignificação. Durante uma pandemia que requer distanciamento, a vivência em espaço público  se transformou em algo a evitar, pelo perigo de contágio.

Agora pouco importa, na prática, estar em Ubatã, onde moram 27  mil pessoas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou em São Paulo, a maior metrópole brasileira.

O IBGE entende metrópole como grandes centros urbanos com presença massiva de empresas e órgãos públicos, que tem elevado poder de atratividade sobre populações de outras cidades para aquisição de bens e serviços - Salvador é uma das 15 metrópoles brasileiras. Quando têm até 20 mil habitantes, as cidades são consideradas de pequeno porte; entre 20 e 150 mil, são de médio. Ultrapassados os 150 mil, são chamadas de cidades grandes - na Bahia, só 13 dos 417 municípios podem ser assim denominados. “Desde que se tenham boa conexão de internet, as pessoas terão acesso aos mesmos equipamentos, independentemente de onde estiverem, em São Paulo, ou Chorrochó”, diz o arquiteto e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Nivaldo Andrade. É a sensação da produtora Ana Dumas, 57, que da casa onde mora desde março, na cidade do Prado, Extremo Sul da Bahia, acessa o mundo pelo computador. O escritório de Ana fica num anexo separado à casa, construída num terreno próprio, em 2015. Os equipamentos de trabalho foram quase todos levados. “Com bom wi-fi a gente está  em qualquer lugar. Não só trabalho, como falo com  amigos, do interior, de Brasília, Amsterdã, França”, diz. 

Depois de sair do Prado, aos 17 anos, para morar em Salvador, Ana voltava só para visitas. Viveu uma rotina tipicamente urbana. “Quando eu morava aqui em Prado, queria ser urbana. Sabe aquela coisa de odiar manteiga e gostar de margarina, porque é urbano?”, brinca. A produtora pensa, quando houver vacina contra a covid-19, dividir seu tempo entre Salvador e Prado.  Ana: de Salvador para o Prado (Foto: Adriana Dumas) O estigma do interior O êxodo rural, movimento de migração de pessoas do interior para as cidades ganha força em 1950, explica o professor Nivaldo Andrade, pela falta de serviços prestados - como faculdades e escolas de qualidade. Por isso, voltar ou morar no interior foi, e ainda é, em certa medida, socialmente associado a uma ideia de inferioridade e fracasso. “Mas, o que atrai, na cidade, deixou de fazer diferença, uma vez que os acessos estão negados”, pontua Nivaldo.O plano de se abrigar no interior, no entanto, costumava ser relegado ao futuro, onde muitos vislumbravam viver a aposentadoria. Só que o futuro chegou, sem esperar.

As malas de José Domingos, 57, estão prontas para seguir viagem até Morro do Chapéu, na Chapada Diamantina.  Ele pretendia fazer a mudança quando se aposentasse, mas viu que era hora de arriscar. A casa onde morará foi comprada há 20 anos. “Sou daqui de Salvador, e não tenho um problema com a cidade. Mas eu sempre fui ligado à terra”, relata. “Economizarei R$ 2,5 mil mensais”, calcula, embora a economia não tenha entrado no cálculo ao pensar na mudança.  

O geólogo vai com tudo preparado para fazer da sua casa, margeada por chapadões, um lugar para trabalhar e viver. Levará computador, mesa e cadeira para a estação de trabalho.“Quero construir uma vida satisfatória. Viver no interior não é algo menor, pobre, como se acredita no senso comum”, diz.  A empresa onde Domingos trabalha optou pelo home-office até dezembro. Ainda segundo a Mercer, 13% das empresas pretendem adotar o trabalho remoto definitivamente e 48% pensam na possibilidade. “Quem sabe depois eu não encontre um meio de ficar”, conta Domingos.

A doutora em Economia e professora da Ufba Diana Gonzaga acredita que o que tem ocorrido é um novo cálculo entre os feitos positivos atribuídos a grandes metrópoles e os custos. “Os custos, em alguns casos, podem ser maiores que os benefícios que a cidade oferece, já que não se está tendo acesso a eles”, opina a pesquisadora em economia do Trabalho e Urbana.

Não há nenhum levantamento realizado sobre índice de deslocamento das metrópoles para o interior.

Êxodo contribuiu para proliferação da covid-19 no interior O desembarque de Igor Villas Boas, 23, em Itabuna, sul da Bahia, aconteceu em junho. Desde 2016, ele morava no Rio de Janeiro, onde estudava Relações Internacionais. Foi demitido no trabalho e terminou de favor, na casa de um amigo. Entendeu que precisava voltar. É um outro lado do recente êxodo urbano, quando a necessidade impõe a migração.  Igor decidiu voltar para Itabuna, depois de quatro anos no Rio de Janeiro (Foto: Arquivo Pessoal)  Diariamente, Igor se alterna entre os estudos pela manhã e o trabalho na empresa da mãe à tarde. O terraço da casa, onde pintou o trecho “O melhor lugar do mundo é aqui e agora”, música de Gilberto Gil, foi transformado em ambiente de trabalho.“Há situações em que não precisamos nos colocar simplesmente por causa desse projeto comercial que a cidade tem. Não temos que aguentar mais sofrimento, mais precarização, em nome de fortalecer uma estrutura que não nos faz bem”, opina.A migração para o interior também repercutiu na própria proliferação da covid-19. Desde abril, centenas de ônibus – legalizados e clandestino – chegaram aos interiores amontoados de nativos que, desempregados nos centros urbanos, retornaram. É o que explica o coordenador do Comitê Científico de Combate ao Coronavírus do Consórcio Nordeste, Sérgio Rezende.“Tanto que, primeiro o vírus se espalhou nas capitais, por pessoas mais ricas. Depois, foi escapando para o interior, com as pessoas chegando. Agora, os casos vão diminuindo na capital e persistindo nos interiores”, afirma. Segundo a Secretaria da Saúde da Bahia, até a última sexta-feira (4), 71% dos 265.739 casos de covid-19 na Bahia estavam no interior. A mudança para o interior, indica Sérgio, deve ser seguida de um intervalo de duas semanas, considerado o tempo de incubação do vírus, e manutenção das medidas de isolamento e distanciamento.

A economista Diana Gonzaga sugere pensar que não é porque as grandes cidades se tornaram menos atrativas, agora, que os valores agregados - como variedade de serviços - deixarão de existir. Na verdade, apenas no futuro será possível avaliar o quanto o entendimento sobre a vida em metrópoles mudou - para o bem e para o mal - e em que medida permaneceu o mesmo.Quando vale a pena morar no interior? A economista Diana Gonzaga dá dicas:1) Caso você esteja pensando em se mudar para economizar, antes faça os cálculos para saber se, de fato, a mudança será econômica. Na maioria dos casos é mais barato viver no interior, mas é preciso balancear, principalmente, os custos de moradia, alimentação, educação e transporte.2) Busque saber se o interior para onde você pretende se mudar tem boas estruturas de rede e sinal. Mesmo trabalhando de casa, é preciso ter acesso a uma conectividade eficiente para exercer o teletrabalho. 3) Avalie sua área de trabalho e estude se há mercado para você se manter, caso você esteja migrando sem estar numa esquema de trabalho remoto, mas em busca de emprego. Em alguns casos, a mudança para o interior pode também ser uma oportunidade para investir em algum segmento.4) Antes de se mudar, procure entender como será o esquema de trabalho na empresa onde você trabalha. Se houver necessidade, por exemplo, de comparecer para reuniões ou tarefas presenciais, não só o custo financeiro deve entrar na balança, como o pessoal. Longas viagens semanais podem ser cansativas e talvez seja melhor pensar num interior mais próximo.5) Migrar para o interior requer, ainda, entender quais são suas necessidades pessoais. Se você é uma pessoa com algum problema crônico de saúde, sobretudo numa pandemia, é preciso conhecer a estrutura do local para onde você se mudará. Além disso, pense a longo prazo para saber se vale mais a pena comprar ou alugar um imóvel.