Saiba como a Invasão das Malvinas se tornou o Bairro da Paz

CORREIO faz retrospectiva especial em comemoração aos 40 anos do jornal

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  • Hilza Cordeiro

Publicado em 14 de novembro de 2019 às 05:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva/CORREIO
. por Marina Silva/CORREIO

O CORREIO tinha só três anos e funcionava em um prédio na Avenida Paralela quando assistia o nascimento de seu vizinho mais corajoso, o Bairro da Paz. Era 1982 quando cerca de mil famílias, quase todas do interior do estado, ocupavam um terreno público. Ao final do ano seguinte, o movimento destes moradores resultaria em 20 notícias neste veículo e se arrastaria ainda por muito mais tempo. Com apenas sete anos na época, o professor Mem Costa não tem como esquecer as dificuldades que passou ao lado da mãe nos primeiros anos da ocupação.“A comida tinha que ser feita na lenha, a água era de fonte e o telefone mais próximo era um orelhão num posto de gasolina na Paralela. Não tinha absolutamente nada aqui, nem água encanada e nem energia elétrica e ainda demorou muito tempo para que chegasse”, recorda. Realidade da comunidade em 1987 (Foto: Fernando Amorim/ARQUIVO CORREIO) Além da falta de recursos, os moradores da região viviam sob o medo de ter seus barracos de taipa demolidos pela polícia, já que a moradia naquele espaço era tida como “invasão”. Com o objetivo de conter a expansão, o poder público fez um acordo com os moradores, oferecendo um terreno na Fazenda Coutos.

Confira especial completo do CORREIO 40 anos

Nesse processo, a família de Mem ficou dividida. Alguns dos seus irmãos foram para Coutos, enquanto ele ficou no Bairro da Paz junto com a mãe. “Rolava uns mutirões da prefeitura com caçambas e caminhões e aí, quando chegavam nos barracos e não encontravam ninguém, destruíam e levavam tudo”, lembra. Mem Costa, líder comunitário e professor (Foto: Marina Silva/CORREIO) Por causa dessas ações, era arriscado sair para trabalhar ou mesmo ir no mercado. Então, na ausência de adultos em casa, Mem tinha o papel de cuidar do espaço para que os agentes não derrubassem. Estes conflitos fizeram o local ser conhecido como “Invasão das Malvinas”, em referência à Guerra das Malvinas, deflagrada no mesmo ano do surgimento do assentamento.

Comemorando 40 anos este ano, o CORREIO resolveu homenagear a localidade soteropolitana, que é fonte não só de inspiração, mas de reportagens. Imagem publicada em abril de 1987 (Foto: ARQUIVO CORREIO) Enxergando a organização do bairro hoje, o professor tem certeza de que as aflições daqueles dias ajudaram a construir a união entre os moradores. “Nós cuidávamos um do outro porque tinha o enfrentamento com o poder público, que não queria deixar que as pessoas morassem ali”, explica. A organização deles terminou por oficializar a área como uma Zona Especial de Interesse Social (Zeiss), que atualmente conta com pelo menos oito Organizações Não-Governamentais (ONGs) atuando lá.

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De acordo com líderes comunitários, o Bairro da Paz tem hoje dez creches, três escolas públicas, um posto médico, uma estação de metrô, linhas de ônibus, uma rádio comunitária, cinco empresas que distribuem internet, uma Base Comunitária de Segurança da Polícia Militar (BCS) e diversos outros serviços.  Formado geograficamente por cinco morros e dois rios, moradores lembram que há 12 anos as ruas eram quase todas de barro e agora boa parte são asfaltadas ou calçadas.

Escola Um dos maiores orgulhos da comunidade, o Colégio Estadual Mestre Paulo dos Anjos, foi conquistado em 2012 e atende cerca de 1.400 estudantes do fundamental II, ensino de jovens e adultos (EJA) e ensino médio profissionalizante. Antes da escola ganhar sede, Carlos Santos, uma das lideranças do bairro, conta que muitas famílias não tinham condições de pagar o transporte para que os filhos frequentassem escolas de localidades vizinhas. Imagem publicada em maio de 1987 (Foto: Silfredo Freitas/ARQUIVO CORREIO) “Tinha mãe que chegava a fazer sorteio para ver qual filho ia estudar naquele ano. Nós começamos a chamar os jovens, envolvemos toda a comunidade e, em 2004, decidimos fazer um protesto caminhando do bairro até a Secretaria de Educação do Estado (SEC) para ocupá-la até ter uma posição quanto à construção de uma escola para a gente”, orgulha-se Santos.Depois de quase 11 horas de ocupação, os moradores saíram de lá com a resposta de que a implantação provisória aconteceria no ano letivo seguinte, já com dez salas de aula. “Uma parte dos nossos envolvidos não queria aceitar que não tivéssemos um espaço permanente porque isso poderia durar a vida toda. Por outro lado, pensamos: Se tivermos dez salas, funcionando em três turnos, teremos pelo menos mil jovens do bairro juntos para mobilizar para as próximas batalhas’. Assim teríamos num espaço só todos os estudantes que estavam espalhados em colégios de outros bairros”, lembra Santos. Carlos Santos (Foto: Marina Silva/CORREIO) No mesmo ano em que ganharam a sede definitiva, o caráter reivindicatório dos alunos do Mestre Paulo dos Anjos voltou a ser destaque, inclusive no CORREIO. Sem aulas há 52 dias em decorrência de uma greve  de professores, os estudantes tiveram uma ideia criativa para chamar a atenção da mídia e atrair o apoio da opinião pública.

Em vez de manifestações queimando pneus e fechando as vias, 80 alunos de três escolas da região decidiram ter uma aula a céu aberto no meio do canteiro central da agitada Av. Paralela. Usando narizes de palhaço e cartazes com a frase “Buzine para a Educação”, eles mostraram que tinham sede em aprender.

Diretor do colégio Paulo dos Anjos, Fernando Lima, conta que com os anos de mobilização a população aprendeu formas melhores de fazer suas reivindicações.“As estratégias foram crescendo e não parávamos mais a Av. Paralela toda, já não colocavam bomba e nem gasolina”, comenta. Segundo ele, a experiência em manifestações amadureceu a partir dos ensinamentos do Centro de Estudos de Ação Social (Ceas), da Universidade Federal da Bahia (Ufba), que os ajudou a criar o Conselho de Moradores.

Morador do Bairro da Paz há 25 anos, o jornalista Paulo de Almeida Filho, lembra que, como na localidade  não tinha colégio, ele precisava ir para o bairro de Mussurunga para estudar. “No ensino médio, já em outro colégio, algumas vezes fui à pé para o Imbuí porque não tinha dinheiro”, conta.

Atualmente editor da Agência Nacional das Favelas (ANF) e do jornal A Voz da Favela, o jornalista recorda que sua carreira começou na rádio comunitária do bairro, que até hoje funciona com auto-falantes em postes da Rua da Resistência, a principal da localidade. Coincidentemente, o A Voz da Favela é impresso na mesma gráfica do CORREIO, onde rodam 50 mil exemplares.

Cria da casa, Paulo afirma que sempre tenta colocar pautas positivas no jornal para o qual escreve com o objetivo de recuperar a autoestima dos moradores. E aumentar o orgulho de pertencimento ao bairro passa pela superação do estigma do antigo nome. Paulo conta que a consolidação da comunidade aconteceu em 1992, quando junto com a criação do Conselho de Moradores, houve também um plebiscito para a alteração do nome do bairro, de Invasão das Malvinas para Bairro da Paz.“Invasor é alguém que está infringindo uma regra, enquanto ocupação são pessoas buscando o seu direito de moradia num espaço ocioso. As pessoas quando chegaram tinham necessidade de um lugar para morar, elas queriam que o espaço tivesse vida, que produzisse e buscaram a regularização disso”, defende.  As condições de vida eram bastante precárias em 1988 e o cenário foi mudando a partir de reivindicações do povo (Foto: Francisco Galvão/ARQUIVO CORREIO) Segurança Há sete anos, chegava no bairro uma Base Comunitária de Segurança da Polícia Militar (BCS). A base  oferece  uma diversidade de capacitações para os moradores. Conforme o comando local, no ano passado mais de 10 alunos da comunidade foram aprovadas no Ifba. O ingresso destes estudantes foi possível graças a aulas gratuitas do Pré-Ifba, uma parceria entre professores do instituto e a BCS.

Além deste projeto, a base oferta ainda cursos preparatórios para a Uneb  e para concursos da Polícia Militar. A população de lá tem ainda opções como escolinha de futebol, musicalização, dança, aulas de cidadania, educação ambiental, jiu jitsu e educação de base.“É nítida a mudança que a base comunitária trouxe para o bairro. O comércio se expandiu muito, a comunidade se desenvolveu, entidades se sentiram seguras em entrar no bairro para fazer outras atividades porque a sensação de segurança aumentou no local”, comenta a tenente Letícia Mercês, comandante da BCS do Bairro da Paz. Após a chegada da base, Letícia também observa que os jovem que estavam ociosos no contraturno do colégio encontraram oportunidades de atividades para se dedicar. “Tudo isso é oportunidade de capacitação deles e de mudança da realidade local através da prevenção do crime. É uma comunidade muito politizada, eles têm consciência do espaço e dos direitos deles”, conclui Mercês.

Luta continua

Essa chegada de projetos sociais no bairro coincide com a ida de Wilson Prazeres, 40, para a comunidade. Antes morador do Centro, ele tinha acesso a inúmeros serviços urbanos, educação e opções culturais, enquanto o Bairro da Paz ainda lutava para se ajustar. “Então o meu olhar é de quem chegou e viu. Naquela época, eu nem ouvia falar do Bairro da Paz, e quando vim morar, fiquei deslocado”, lembra.

A mudança para a comunidade, em verdade, foi uma conquista para a família de Wilson, que vivia de favor na casa de uma prima. Vindos de Ilhéus, no interior baiano, eles conseguiram comprar um terreno e se estabeleceram na localidade.“Quando eu cheguei, já tinha muitas coisas, mas os Correios, por exemplo, não entregavam correspondências. Tudo ia para o endereço do Conselho de Moradores”, recorda. Obrigado a buscar suas cartas na associação, Wilson ajudava pessoas analfabetas a identificar suas correspondências. Ambientando-se no novo local, ele conseguiu vaga em um dos vestibulares sociais e, aprovado numa faculdade, formou-se em pedagogia. Daquela sensação de desorientação que sentiu no início, hoje o pedagogo não tem dúvidas em afirmar que o Bairro da Paz é um dos melhores lugares para se morar. “Quando você cria um vínculo, um conhecimento com a vizinhança e uma identidade, sentindo-se seguro no próprio bairro, isso não se paga”, encerra. 

Chegue Junto Comunidade levará serviços para o Alto do Abaeté

Como parte das ações de comemoração dos 40 anos do CORREIO, o jornal criou o projeto Chegue Junto Comunidade, que levará serviços de saúde, educação, cidadania e lazer para cerca de 500 pessoas da localidade do Alto do Abaeté. O evento acontecerá no dia 23, das 8h às 16h, na Creche e Pré-Escola Primeiro Passo Itapuã.

Serão oferecidos atendimentos gratuitos de Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida até o meio dia; testes rápidos de HIV, Sífilis e Hepatite; serviços de saúde bucal; vacinação antirrábica de animais; aferição de pressão e glicemia; massagem relaxante; aula de capoeira e outros. A distribuição de senhas iniciará às 8h e os atendimentos começarão a partir das 9h.

O agito musical ficará por conta do projeto Malêzinho, ala infantil do Bloco Afro Malê Debalê, que funciona na região. Viabilizado em parceria com a sub-prefeitura de Itapuã, o evento deixará um legado de cidadania para o bairro, conforme afirma o sub-prefeito Marco Elpídio.“Essa iniciativa é muito importante porque tira os serviços do eixo do centro da cidade e passa para as localidades, sobretudo no caso específico do Abaeté, que é um local mais afastado e que tem um índice de muito morador de rua, que não tem acesso às coisas e que moram no próprio parque”, comentou Elpídio.O projeto Correio 40 Anos tem oferecimento do Bradesco, patrocínio do Hapvida e Sotero Ambiental, apoio institucional da Prefeitura de Salvador, e apoio de Vince Airports, Sesi, Salvador Shopping, Unijorge, Claro, Itaipava Arena Fonte Nova, Sebrae e Santa Casa da Bahia.