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Paulo Sales
Publicado em 22 de agosto de 2022 às 05:05
- Atualizado há 2 anos
Demorou décadas, mas aconteceu. Salman Rushdie foi enfim atacado. O escritor anglo-indiano felizmente se recupera bem das facadas desferidas por um maníaco fundamentalista de nome Hadi Matar (mais do que um nome, soa como uma profecia). É um desfecho tardio, extemporâneo e trágico da Fatwa, maldição fatal lançada contra Rushdie em 1989 pelo Aiatolá Khomeini, líder religioso iraniano, por conta do livro Os Versos Satânicos. Motivo: a obra conteria supostas ofensas a símbolos sagrados do islamismo.>
Salman Rushdie passou grande parte da vida escondido, protegido pela polícia inglesa de tipos como Hadi Matar. Sua via-crúcis é relatada com riqueza de detalhes no livro de memórias Joseph Anton (pseudônimo usado pelo autor para não ser descoberto). É uma obra instigante, igualmente crua e irônica. Rushdie é um homem do seu tempo, um intelectual cosmopolita que cultiva e preza os melhores valores ocidentais, amigo de gente do quilate de Ian McEwan, Martin Amis e Julian Barnes.>
Mas, por expressar livremente a sua forma de pensar sobre as próprias origens indianas, acabou se vendo às voltas com uma turba de fundamentalistas. Resgato esse trecho do Joseph Anton: “A intolerância, o preconceito e a violência ou a ameaça de violência não são ‘valores’ humanos. São a prova da ausência de tais valores. Não são as manifestações da ‘cultura’ de uma pessoa. São mostras da incultura de uma pessoa.”>
A reflexão de Rushdie é precisa. E o que ele descreve encerra a face mais dolorosa de um mal que, passado tanto tempo, permanece sólido como os pilares de uma igreja medieval: a influência nefasta de certas religiões sobre uma enorme parcela, inculta e miserável, da humanidade. Tão trágico quanto fazer o mal conscientemente é fazer o mal acreditando que ele é parte integrante de uma estratégia do bem.>
É evidente que nem todas as crenças se comparam aos extremos do fundamentalismo islâmico. Impossível não se indignar com as mazelas causadas por grupos radicais – no poder ou fora dele – em várias partes do mundo (particularmente no Oriente Médio e alguns países muçulmanos da Ásia e África). A leitura obtusa e distorcida do Alcorão é uma praga que voltou a assolar a civilização numa era em que, eliminado o nazismo, tinha-se a impressão de que estaríamos livres da idiotia coletiva. Nem mesmo o nazismo foi eliminado de todo, vale ressaltar.>
Gostaria de entender o fanatismo. Justificar de alguma forma a força irremovível exercida sobre os rebeldes violentíssimos do Boko Haram, na Nigéria, ou os tipos demenciais do Talibã, no Afeganistão. Ou até, agora entrando em outra seara, compreender a sina trágica das pessoas sem vivência ou educação formal que são ludibriadas diariamente por vigaristas travestidos de pastores nesses simulacros de igrejas neopentecostais que proliferam Brasil adentro.>
Para um ateu humanista que cultiva o epicurismo, essa é uma tarefa quase impossível. Mesmo pondo na balança os valores morais positivos propagados pelas diversas religiões, qual o efeito prático delas para a humanidade? Dostoiévski já disse, através das palavras de Ivan Karamazov, que se Deus não existe tudo é permitido. Mas tudo já não é mesmo permitido, de uma forma ou de outra? Os genocídios, a desigualdade extrema, as legiões de famintos e expatriados não são exemplos dessa permissividade?>
Invertendo a lógica do gênio russo, cometo a heresia de fazer uma pequena provocação: se Deus existe, que função ele desempenha na engrenagem do mundo? Seria uma figura decorativa, uma rainha da Inglaterra na monarquia celestial? Ou apenas dá gargalhadas dos nossos planos, anseios e aspirações? Volto a dizer, antes que me trucidem: essa é apenas uma provocação, e guardo profundo respeito pelas manifestações do sagrado, desde que autênticas e pacíficas.>
Penso que acreditar em Deus representa uma tentativa de nos elevar a um patamar superior à insignificância a que estamos relegados. O que não é necessariamente ruim, diga-se. O papel das religiões – e nisso elas ainda são imprescindíveis – é mitigar a dor primordial que move a existência humana desde que éramos sapiens nômades colhendo frutas e temendo o breu: o fato de que todos nós – eu, você, Salman Rushdie, os moribundos nos hospitais e os bebês recém-nascidos – estamos condenados a não ultrapassar o limite de nossas próprias vidas. Aquelas três letrinhas que, quando reunidas, nos enchem de perplexidade, horror e um tanto de resignação: F, I, M.>