Salvador, cidade das pestes: capital foi afetada por várias epidemias ao longo dos anos

Pelo porto, movimentado por conta do perfil econômico da cidade, entrava todo tipo de doenças, principalmente epidêmicas

Publicado em 6 de dezembro de 2020 às 16:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

O segundo armazém das docas do Porto de Salvador era daqueles lugares onde ninguém gostaria de estar em setembro de 1914. Nenhum dos funcionários da alfândega, responsáveis pela conferência das mercadorias, queria trabalhar por lá. Chegar perto dos sacos de farinha de trigo trazidos em navios, nem pensar. Salvador via crescer o número de casos de peste bubônica e era nas docas onde mais apareciam doentes. Lá e na Rua Carlos Gomes, segundo noticiavam jornais da época. 

É que o porto servia de porta de entrada para mercadorias, mas também para doenças trazidas em navios: febre amarela, gripe espanhola, cólera, varíola. No caso da peste, era transmitida por ratos das embarcações. Em outros casos, os navios acabavam trazendo pessoas contaminadas. Não é por acaso que Salvador conviveu durante séculos com todo tipo de doenças – nem que a cidade tenha um padroeiro, São Francisco Xavier, celebrado em 3 de dezembro, alçado ao posto durante uma epidemia de febre amarela em 1686 (leia mais ao lado). 

As pestes atuaram ao mesmo tempo no ataque aos baianos, mas algumas chamaram mais atenção em alguns períodos. A cólera teve uma grande epidemia entre 1855 e 1856. A febre amarela aparece em diversos momentos – 1666, 1686, 1849, 1913 e 1919, quando foi tratada como endêmica; a varíola matou muita gente em 1919; e, em 1926, o que mais matava era a disenteria. Um relatório entregue pelo governador Góes Calmon à Assembleia Legislativa mostrou que de 218 pessoas com a doença, 197 morreram – 90%. 

Enquanto, entre 1914 e 1915, os jornais e os funcionários do porto se preocupavam com a peste bubônica, essas outras doenças seguiam agindo: a tuberculose matava em torno de mil pessoas por ano, e junto com ela havia varíola, febre amarela, malária, disenteria, tifo e difteria, lista a historiadora Christiane Maria Cruz de Souza, doutora em História das Ciências pela Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). 

“O porto de Salvador era considerado pelos médicos como a porta de entrada das mais exóticas doenças, principalmente as doenças epidêmicas”, explica a pesquisadora, que é autora do livro A gripe espanhola na Bahia: saúde, política e medicina em tempos de epidemias (Edufba e Fiocruz, 372 p, R$ 48). Segundo armazém das docas reunia casos de peste bubônica; nas semanas seguinte, teria vítimas fatais (Imagem: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional) Em Salvador, o perfil econômico colocava o porto em evidência. “A base da economia baiana era o comércio de importação e exportação e o porto de Salvador tinha conexão com vários países e cidades do Brasil. A circulação de pessoas, mercadorias e embarcações de origens diversas, certamente, contribuía para a circulação de doenças e doentes”, completa a historiadora, lembrando que a gripe espanhola desembarcou aqui em 11 de setembro de 1918 com passageiros do navio inglês Demerara.

Afetados  Os bairros mais pobres e mais populosos eram os que mais sofriam. Em Salvador, grande parte das mortes aconteceu no distrito de Santo Antônio. A falta de boas condições de higiene piorava a situação da peste. O jornal A notícia falava de ratos na alfândega até do Quartel dos Aflitos. A falta de saneamento era o que tornava a Carlos Gomes um lugar perigoso.  

“Nessa época, a Carlos Gomes não tinha passado ainda pelo processo de urbanização. Era uma rua estreita com vários problemas sanitários, com muitos casebres e cortiços”, explica o historiador Rafael Dantas, que estuda a iconografia da cidade nos séculos XIX e XX. Talvez por isso muitos casos tenham surgido ali.  Moradores das imediações da Carlos Gomes, como a Praça da Piedade, também eram vítimas da doença (Imagem: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional) Entre as vítimas, um caixeiro da Drogaria América, na Piedade; um ganhador chamado Affonso, que trabalhava no Trapiche Porto; uma moradora de um cortiço no Pelourinho chamada Maria Constância. E os casos fatais: um estivador do Cais Dourado, um funcionário das docas e um menino de seis anos, morador do quarto 28 da Pensão Brazil, na Sé. 

Não há, em Salvador, um local dedicado à memória dessas doenças. O Museu da Misericórdia possui uma sala com objetos da farmácia do Hospital de Caridade e, no Pelourinho, há também o Museu Nacional de Enfermagem.

Passado e presente No século XX, reformas urbanas começaram a transformar o contexto do centro de Salvador. Mas, no período destas epidemias, a situação ainda era precária. “Na época, ainda vigorava a ausência de um sistema de esgoto e em diversos lugares o clima de insalubridade estava presente”, explica Rafael.

Em 1918 e 1919, a gripe espanhola ganhava destaque nos jornais diários, em revistas e até em colunas que moldavam a comportamento feminino: “O beijo é uma das causas mais espalhadas do contágio de certas molestias, principalmente da gripe, uma das enfermidades mais infecciosas que se conhecem”, dizia a Página Feminina da Bahia Ilustrada em 1918 (português da época).     Página Feminina da Revista Bahia Ilustrada alertava para contágio da gripe espanhola pelo beijo (Imagem: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional) As histórias contadas até agora aconteceram há cerca de 100 anos. Mas, há situações semelhantes às que acontecem hoje, durante a pandemia da covid-19, embora o contexto seja diferente. 

“Quando a imprensa registrou os primeiros casos da doença, denunciando a probabilidade de haver uma epidemia de gripe em curso, as autoridades se apressaram em negar os fatos. Médicos e autoridades políticas e sanitárias argumentavam que se tratava da gripe sazonal, benigna”, aponta Christiane Cruz. 

Com o aumento de mortes e uma investigação, o diretor geral da Saúde Pública da Bahia agiu: dividiu a cidade em zonas, com visitas domiciliares, cadastro de farmácias, desinfecção de ruas e interdição de eventos com aglomeração.

Casal vítima de gripe espanhola teve suas fotografias publicadas em meia página de uma edição da Revista Bahia Ilustrada (Imagem: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional) Também houve uso político da epidemia de gripe espanhola, conta Christiane Cruz. A oposição desacreditava os que estavam no poder, enquanto estes tentavam mostrar competência e evitar que a economia fosse afetada.

Por falar em economia, ela também foi impactada na grande epidemia de cólera de 1855 e 1856. “O flagelo desorganizou a economia, alterou as relações afetivas e modificou comportamentos seculares, a exemplo do abandono do tradicional costume de enterros nas igrejas”, detalha o historiador Onildo Reis em sua dissertação de mestrado.

Mortes de médicos Há mais semelhanças entre a gripe espanhola e a covid-19: as mortes de médicos durante o trabalho é uma delas: “A cruel epidemia, que andou devastando o Brasil, de norte a sul, não poupou os medicos. Muitos delles caíram, victimas desta ainda mysteriosa influenza espanhola. Um dos medicos mortos por ella foi o nosso patrício Dr. Eduardo Martinelli”, diz uma nota publicada na seção Nossos mortos da revista Bahia Ilustrada. 

As comorbidades também estavam presentes há 100 anos. “Muitas doenças preexistentes foram agravadas e contribuíram para a morte de pessoas durante a epidemia: doenças cardíacas, renais, diabetes, tuberculose”, afirma Christiane Cruz. 

Médico Eduardo Martinelli foi uma das vítimas fatais da gripe espanhola; baiano, morreu em São Paulo, trabalhando (Imagem: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional) São Francisco Xavier: o padroeiro de Salvador e o mal da bicha de 1686

A calamidade que se abateu sobre Salvador em 1686 também veio de navio. Pernambuco, local de partida de uma embarcação que aportou por aqui com passageiros doentes, via crescer o número de casos de uma peste que ficou conhecida, na época, como mal da bicha. Tratava-se da febre amarela.

A história dessa epidemia se cruza, poucos anos depois, em 1688, com a do santo jesuíta que ainda hoje é o padroeiro de Salvador - São Francisco Xavier, o apóstolo do Oriente.“Ele era daquele grupo que iniciou a Companhia de Jesus, junto com Santo Inácio de Loiola. Então, os jesuítas daqui recorreram a intercessão dele e, milagrosamente, a peste foi banida da cidade”, explica o padre Ângelo Magno, responsável pela Devoção a São Francisco Xavier em Salvador.O jesuíta era um santo taumaturgo, explica o padre, ou seja, era um santo conhecido por uma grande capacidade de realizar milagres. O livramento do mal da bicha em Salvador em 1686, incluisve, não seria o único. “No século XIX voltou acontecer outra peste e ele milagrosamente obteve essa graça mais uma vez”, afirma.

Pedir que um santo acabasse com a peste casava perfeitamente com os costumes da época.“O desespero marcou presença na cidade, o que levou muitos habitante a recorrerem aos jesuítas que, por sua vez, pediram a São Francisco Xavier para livrar a cidade da peste”, explica o historiador Rafael Dantas.Era maio de 1686 quando a Câmara Municipal indicou o santo para ser padroeiro da cidade, embora no mês de junho s mortes continuassem a acontecer, apesar das muits procissões. Mesmo assim, a Câmara fez o pedido à Coroa e a confirmação do santo como padroeiro pela Santa Sé veio em 1688. São Francisco Xavier é celebrado em Salvador no dia 3 de dezembro, seu dia litúrgico, e em 10 de maio, data em que a Câmara pediu que fosse padroeiro (Foto: Nara Gentil/Arquivo CORREIO) O historiador Evergton Sales Souza afirma, em artigo sobre a construção da memória do padroeiro, que em 1689 não se falava ainda, claramente, numa relação entre o santo e o milagre de acabar com a peste: “Ainda em 1689, a escolha do padroeiro reportava-se à confiança da comunidade em futuras intercessões do santo, mas não à eficácia do recurso ao mesmo por ocasião do mal da bicha que, em 1686, ceifou tantas vidas”.

Quando São Francisco Xavier escolhido padroeiro de Salvador, os jesuítas tinham grande relevância em Salvador. Mas, para o padre Ângelo Magno, há uma lacuna provocada pela expulsão dos religiosos desta ordem em 1759 pelo Marquês de Pombal.“Houve uma interrupção de vida cristã dos jesuítas, tanto é que, no nosso universo, ele talvez seja o padroeiro menos conhecido, menos amado, menos invocado. A maioria das pessoas não o conhecem”, afirma o padre de 68 anos, que é devoto do santo desde os 15 e fez uma promessa de construir uma igreja para o padroeiro assim que se tornou padre, em 1985.Nos últimos anos, é na Igreja de Santana do Rio Vermelho - onde celebra missas - que, no dia 3 de dezembro, padre Ângelo realiza um tríduo e uma festa solene ao padroeiro. Na Igreja de Santana há, também, uma imagem de São Francisco Xavier, réplica da que fica na Catedral Basílica. Na cidade onde é padoeiro, São Francisco Xavier tem apenas uma capela em sua homenagem, na Mata Escura, mas desconhecida, lamenta padre Ângelo.