Salvador Memória Viva: programa incentiva a preservação do patrimônio cultural da cidade

Fundação Gregório de Matos desperta a conscientização da população com calendário de ações

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  • Do Estúdio

Publicado em 19 de maio de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Divulgação/SECOM

Quando, em janeiro de 2014, foi sancionada a primeira lei municipal que institui normas de proteção e estímulo à preservação do patrimônio cultural de Salvador - a 8550/2014 - essa passou a ser uma nova ferramenta para fortalecer o que, à época, já estava se tornando uma marca da nova gestão da Fundação Gregório de Matos (FGM).

A atenção especial com o patrimônio cultural do município e a necessidade de despertar uma consciência coletiva sobre a preservação de espaços, monumentos e manifestações culturais da capital baiana vêm de um entendimento comum: eles ajudam a nos contar a história da cidade e do seu povo. A criação da lei se torna mais um mecanismo de preservação do patrimônio - agora no âmbito municipal - tornando possível o atendimento de pedidos de tombamento e registros que não poderiam ser atendidos no âmbito federal e estadual.

A necessidade de pensar a preservação do patrimônio público como protagonista do trabalho da Fundação nasce a partir de uma análise curiosa: presidente da FGM, Fernando Guerreiro, percebeu que monumentos históricos importantíssimos para Salvador não tinham a atenção necessária da população, estavam inseridos em um processo de invisibilidade.

Outras questões identificadas pela Fundação aumentaram o desafio no que diz respeito à preservação do patrimônio histórico de Salvador. “Logo que eu chego na Fundação percebo que existe uma demanda muito grande na cidade pela atenção do município em relação ao patrimônio. Se falava pouco, não tínhamos uma lei sobre o tema, e percebíamos que havia uma desinformação enorme em relação ao que é patrimônio, por vezes o termo era confundido. E então notamos também a invisibilidade de monumentos históricos, que as pessoas não conheciam. Começamos aí o processo de informação”. Escolas municipais de Salvador participam do Circuito Reconectar no Pelourinho (Foto: Jefferson Peixoto / SECOM) Esse processo desencadeou a criação do programa Salvador Memória Viva, uma série de ações que preveem a preservação dos bens materiais e imateriais de Salvador. As decisões referentes aos projetos e ações, como quais equipamentos necessitam de reparo ou quais vão passar por um processo de tombamento, são tomadas por um Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, formado por onze membros oriundos da administração pública nas esferas municipal, estadual e federal, além da sociedade civil organizada.

Para além dos esforços de preservação dos bens culturais públicos, a FGM passou a pensar também na conscientização da população sobre a importância do tema e incluiu no seu calendário ações como “Patrimônio é…”, “#Reconectar” e “Circuito #Reconectar”. O primeiro trata-se de uma roda de conversa mensal, no Espaço Cultural da Barroquinha, sobre educação patrimonial com transmissão ao vivo pelo Facebook e programação definida até novembro deste ano. Foram 21 encontros realizados entre abril de 2017 e a última edição, na semana passada, com o tema “Avenida 7 de setembro: vetor da modernidade”.

Através do “#Reconectar”, a Fundação Gregório de Matos instalou 55 placas nos monumentos, com QR Codes que possibilitam o acesso à ficha técnica daquela obra em três idiomas: português, espanhol e inglês. Já o “Circuito #Reconectar” promove passeios com estudantes de escolas municipais de Salvador, em três roteiros histórico-culturais, contando a história da cidade a partir dos monumentos também com QR Code. “Enquanto a população não se conscientizar da importância do patrimônio, ele não vai ser preservado. Nossos grandes fiscais são as pessoas. Quando você dá visibilidade e leva a nova geração, você forma um novo grupo que começa a entender e preservar”, defende Guerreiro.  A escultura de Mãe Stella de Oxossi, na avenida que leva o nome da ialorixá em Salvador, é uma dos novos monumentos que a cidade ganhou (Foto: Valter Pontes/SECOM) Dificuldades A cena do patrimônio cultural soteropolitano parece caminhar para um lugar de maior conscientização da população sobre o tema, mas ainda há pedras no caminho. Ações de vandalismo e roubo de materiais preciosos utilizados na confecção ou restauração de monumentos levaram a Fundação a escolher substituir materiais nobres por outros mais simples, como a substituição de bronze por fibra de vidro.

Já foram alvos de ataques o Monumento ao 2 de Julho, no Campo Grande, Estátua de Zumbi dos Palmares, além do Marco de Fundação da Cidade, onde é notável que homens utilizam o local para urinar. Por lá, a FMG encontrou inscrições e desenhos inadequados no painel do azulejo. O Marco está no processo para ser tombado. Já o Busto de José da Silveira, na Centenário, foi roubado.

O vandalismo não é o único problema. Ações de intolerância religiosa em patrimônios tombados que tenham relação com religiões de matriz africana também chamam a atenção da administração da FGM. A Pedra de Xangô, em Cajazeiras, foi tombada em maio de 2017 com a Área Considerada Sítio Histórico do Antigo Quilombo Buraco do Tatu, e sofreu ataques no começo do ano. Monumento em homenagem ao escritor Castro Alves, no logradouro homônimo (Foto: Tonny Bittencourt / FGM) Além da Guarda Municipal, a população também é uma aliada à luta. Isso é percebido, por exemplo, no imediatismo das denúncias recebidas pela FGM quando acontecem atos de vandalismo. “Quando inauguramos um monumento em um bairro, vamos lá e conversamos com a população, que entende a necessidade de cuidar do patrimônio”, explica Fernando Guerreiro.

Combater os casos de vandalismo e intolerância passa a ser também um foco do trabalho da Fundação, que não se inibe diante das ações e mantém o incentivo à preservação. Entre 2013 e 2019, 79 monumentos ganharam a atenção do poder público municipal - entre restaurações e confecção de novos equipamentos. Na lista de monumentos restaurados estão a estátua de Vinícius de Morais, em Itapuã, a Fonte do Tororó, no Dique do Tororó, o painel de Carybé, na Rua Chile.

Especializado em preservação pela Universidade Internacional da Arte de Florença (Itália) e responsável pela restauração de monumentos como o Dois de Julho, no Campo Grande, José Dirson defende a importância do engajamento da população na preservação: “As pessoas precisam conhecer a história e o valor que esses monumentos representam para a cidade. O Gregório de Mattos é um órgão muito importante na defesa e preservação do nosso patrimônio. Eu vejo que a Fundação tem muito interesse em manter viva a memória da cidade através dessas ações”. Para a restauração e limpeza dos monumentos, ele utiliza técnicas que não agridem os materiais originais usados na confecção, como o Microjateamento com Micro Esfera de Vidro, técnica trazida da sua experiência na Itália, durante um estágio no Oppisicio Delle Pietre Dure (órgão da Superintendência dos Bens Históricos e Artísticos de Florença). 

Entre os novos monumentos que a cidade ganhou, estão a Estátua do escritor João Ubaldo Ribeiro, feita pela artista Márcia Magno e que fica Praça Nossa Senhora Da Luz, na Pituba, e as obras do escultor Tatti Moreno: a Estátua de Gregório de Mattos – ao lado do antigo Cine Glauber Rocha, Estátua de Caymmi, em Itapuã,  e a recente escultura de Mãe Stella de Oxossi, na avenida que leva o nome da ialorixá em Salvador. Entre os novos monumentos que a cidade ganhou, está a Estátua de Gregório de Mattos, que fica ao lado do antigo Cine Glauber Rocha (Foto: Valter Pontes / SECOM) Para 2019, a previsão é de tombamento do Marco da Fundação da Cidade do Salvador, no Porto da Barra, e a Igreja dos Aflitos. Guerreiro vê a preservação e tombamento desses espaços como uma influência direta na autoestima da população. “Muitas vezes esses bairros passam a contar pela primeira vez com um ponto identitário na área, como ocorreu com o tombamento da Pedra de Xangô em Cajazeiras. Hoje, o bairro, que é um bairro novo na capital, tem um ponto como a Pedra que é tombado e importantíssimo para a cidade”, conta.

Leonel Monteiro é presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro-Ameríndia e defende que o tombamento ainda se constitui como principal instrumento de preservação desses espaços. “Nesses pequenos territórios existe todo um legado de saberes e fazeres ancestrais únicos, que só existem ali. Se esse espaço não existir, isso desaparece também. Ali se encontram as condições necessárias para perpetuar essa herança ancestral”, destaca. Também para Monteiro o tombamento desses espaços levanta a auto-estima, não apenas da comunidade inserida naquele contexto, mas de todo a região - que passar a ver aquela ação como uma forma de valorizar o espaço que está inserido na comunidade há séculos.

Expansão do trabalho Editais de Salvaguarda fazem parte do programa, com o objetivo de dar visibilidade, através de políticas públicas, a projetos que acontecem em áreas que não estão presentes no roteiro central de cultura da cidade. É o caso do “Samba Junino”, que nasce nos terreiros de candomblé celebrando as festas juninas. “Desse samba junino nascem grandes artistas da Bahia, como Ninha, Léo Santana, Márcio Victor, em áreas diversas da cidade, como no Engenho Velho de Brotas, Garcia. É algo essencialmente soteropolitano e esse edital resguarda projetos como esse”, declara Guerreiro, que realiza o edital pelo segundo ano consecutivo, impactando mais de 8 mil pessoas em 2018 através do financiamento de seis propostas.

O Prêmio Capoeira Viva Salvador, lançado em 2017, também integra os Editais de Salvaguarda e no ano passado financiou nove projetos. Outras nove propostas devem ser financiadas neste ano, com previsão de lançamento do edital do prêmio em julho. O “Samba Junino” nasce nos terreiros de candomblé celebrando as festas juninas (Foto: Gilucci Augusto / SECOM) O incentivo à leitura não fica de fora. Salvador conta com duas bibliotecas públicas administradas pela FGM: Edgard Santos (Ribeira), reinaugurada em outubro de 2017, e Denise Tavares (Liberdade), que segue em reforma e será reaberta neste ano. O número baixo de leitores incentivou a criação de projetos que estimulam o hábito da leitura, como o “Leitura na Praça”, que instala um contêiner em praças públicas com uma média de 600 livros.

A atual gestão municipal tem papel determinante no cenário atual. Guerreiro destaca ainda a importância do trabalho da equipe da FGM, como o da diretora de Patrimônio e Humanidades, Milena Tavares, e da gerente de Bibliotecas e Promoção do Livro e Leitura, Jane Palma.  “Quando você vai entregando de novo a cidade à população, as pessoas se sentem pertencendo a ela e se preocupam. Tudo acontece de uma forma casada”, ressalta Guerreiro. Ele avalia as ações sobre o assunto nos últimos anos como determinantes para a mudança no cenário, e arrisca projetos para o futuro, como o desejo de que Educação Patrimonial se torne matéria nas escolas, a fim de conscientizar a população ainda na infância sobre a importância dos monumentos. E arrisca o que é, talvez, o desafio a ser cumprido: “quero deixar viva na cidade a consciência de que precisa pensar e cuidar do nosso patrimônio” 

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