São Roque, a cura e o novo normal: igreja celebra missas a cada duas horas

Restrição é de até 50 pessoas dentro da igreja, a cada celebração

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  • Vinicius Nascimento

Publicado em 4 de agosto de 2020 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Arisson Marinho/CORREIO
'Novo normal' obriga Igreja de São Lázaro e São Roque receber até 50 pessoas no máximo por Foto: Arisson Marinho/CORREIO

Na Idade Média, um rapaz de família abastada ficou órfão dos pais logo no início de sua juventude. Cristão convicto como sua falecida mãe, chamada Libéria, ele abriu mão de sua herança e saiu caminhando de sua região, onde hoje está a cidade de Montpellier, na França, com destino à cidade de Roma - onde vivia o papa.

Em seu caminho, o garoto ajudou muitos enfermos já que, naquela época, uma grande peste assolava a Europa. A epidemia chamada peste bubônica deixou mais de 75 milhões de mortos no continente europeu. Roque, o rapaz de nossa história, quase foi uma dessas vítimas - mas, segundo a tradição católica, se curou pela graça divina. E também recebeu o dom de cura, que usou para salvar vidas. Morreu no dia 16 de agosto de 1327 após passar cinco anos preso em sua terra natal. Logo após a morte, curou o carcereiro, que era manco de nascimento. Estamos falando de São Roque, um santo francês que também tem muitos fiéis na Bahia.

Cura, pandemia, busca por milagres. A história de São Roque conversa muito com o que vivemos hoje, garante o padre Cristóvão Przychocki. Polonês, ele está no Brasil há 15 anos e, há nove, à frente da Igreja de São Lázaro e São Roque. Pela primeira vez desde então, não verá a festa ocupar todo o largo de São Lázaro, na rua Aristides Novis."São Roque é o nosso segundo padroeiro. Desde 1992 a imagem e a devoção dele estão aqui. A gente até brinca que ele passou na frente de São Lázaro. A festa de São Roque é muito mais movimentada do que a de São Lázaro", diz o padre.Durante quase quatro meses, nenhuma missa foi celebrada na Igreja. O padre conta que os devotos sentiram muita falta: ligações eram feitas pedindo orações e misericórdia ao santo que tem o dom da cura e dedicou a sua vida aos enfermos. Devotos fazem pedidos na porta da Igreja de São Lázaro e São Roque (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Essa missão é o que dá confiança ao devoto Francisco Silva, 53, de que dias melhores virão e que "com toda certeza depois de agosto tudo isso vai melhorar e muito. São Roque é um santo forte".

A relação de Francisco com o santo vem de berço, já que sua mãe, dona Francisca, falecida há cinco anos, era uma grande devota de São Roque. Quando não podia ir à Igreja, fazia as festejos ao santo em sua terra natal - São Francisco do Conde, na Região Metropolitana de Salvador.

No entanto, o carinho de Francisco por São Roque aumentou há 20 anos. Após sofrer um acidente que quase lhe custou a perna, fez fisioterapia e todos os tratamentos que estavam ao seu alcance, mas não conseguia se recuperar plenamente e jovem, aos 33 anos, dependia de um par de muletas para se locomover. Dona Francisca deu a ideia de ir até a Igreja de São Lázaro e São Roque para fazer uma oração, tomar um banho de pipoca e tentar uma intervenção do santo."Funcionou. Pouco tempo depois eu estava andando normalmente, sabe? Depois disso eu passei a ir à Igreja toda segunda-feira sem falta. Hoje [ontem] eu estava lá. Não fiquei pra missa, mas estava lá", conta.Ele lamenta que a festa tradicional no dia 16 de agosto não será como de costume. Mas tem paciência para aguardar o próximo ano e se virar da melhor forma possível neste novo normal.

O padre Cristóvão, por sua vez, explica que a Igreja está tomando todas as medidas possíveis. O templo é pequeno e, por isso, há um limite rígido de apenas 50 pessoas em suas dependências por missa, que durante a semana se inicia às 10h. Aos domingos, o padre faz um esforço para começar as celebrações mais cedo, às 5h, e com intervalos de 2h, até as 15h, para que a maior quantidade de fiéis possa comparecer.

"A nossa Igreja já é pequena e não podemos colocar muita gente dentro. Só entram até 50 pessoas. Os bancos estão marcados e precisamos seguir o decreto que é para o bem de todos. Gostaríamos de acolher todos e, por isso, podemos aumentar o número de missas."

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Sincretismo Um tapete branco passa pela rua Aristides Novis em dia de festa de São Roque. Não é à toa, tampouco se trata de um desfile dos Filhos de Gandhy fora de época. Se dentro da Igreja se cumpre o ritual cristão em homenagem ao padroeiro dos enfernos, do lado de fora, os babalorixás dão o tom da festa com banho de pipoca para mandar pra longe as energias negativas de quem chega ao santuário.

Na tradição afro-brasileira, o mês de agosto é dedicado a Omolu. Advinha qual o poder dessa divindade? Isso mesmo: dominar os territórios da cura e enfermidade. No carnaval de 2020, a roupa do Gandhy fez referência aos orixás Omolu-Obaluaê, deuses da doença e da cura. A escolha foi parte do entendimento do afoxé sobre as enfermidades que estão atingindo o mundo. Profético, não? A festa de Omolu é comemorada no dia 26 de agosto. Homem recebe banho de pipoca na escadaria da Igreja de São Lázaro (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) O artista plástico Saulo Evangelista, 45, diz que sentirá falta especialmente do clima de sincretismo. Ver pessoas de várias religiões ocupando o largo seja para praticar sua fé ou apenas para observar tomando uma cervejinha gelada e batendo um rango leve tipo mocotó e feijoada.

Mesmo com a saudade, acredita que a dobradinha entre as duas entidades religiosas será fundamental para que, em breve, a pandemia acabe de vez e o novo normal seja repleto de cura. Especialidade da casa.