Segunda 'cidade' mais importante da Bahia, Brotas é ilha cercada por Salvador

Bairro com ares de metrópole é sinônimo de diversidade econômica, étnica e cultural

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  • Gabriel Moura

Publicado em 25 de setembro de 2021 às 16:00

- Atualizado há 10 meses

. Crédito: Marina Silva/CORREIO

“Feira de Santana tira onda, mas quem é mesmo a segunda mais importante cidade da Bahia é Brotas”. Este veredito carregado de bairrismo, feito pelo designer brotense Gabriel Bernabó, irritaria qualquer igualmente patriota feirense, mas, hipérboles à parte, carrega um fundo e um meio de verdade. O maior bairro de Salvador (ainda) não se emancipou, mas carrega em suas ladeiras e ruas estreitas costumes próprios, diversidade e influência cultural que faria inveja à briosa Princesinha do Sertão.

Numa hipotética comparação, as avenidas de vale são mais charmosas que o Anel Rodoviário, enquanto a variedade de lojas de rua em nada deixa a desejar para o Feiraguay. “Mas Brotas nem é cidade”, pode dizer o cidadão do outro lado da 324. Não é, mas poderia e deveria ser. E quem diz isso é a lei.

O primeiro requisito para se formar um município é ter pelo menos 10 mil habitantes. Só Brotas tem 70 mil, revela um estudo da Prefeitura de Salvador. Se considerar a ‘Região Metropolitana Brotense’ - somando bairros como Cosme de Farias, Engenho Velho, Vila Laura e Acupe, que oficialmente se emanciparam -, 182 mil cabeças trasformariam Brotas na oitava maior cidade da Bahia, à frente de Porto Seguro e Ilhéus.

Superado este obstáculo, faltariam principalmente dois: a consulta popular através de um plebiscito e certeza de que ali reside uma cultura própria, o que seria fácil de provar.

“Brotas é um subúrbio no centro da cidade”, teoriza o poeta brotense Nilson Galvão, que esclarece: “Aqui é uma cacofonia formada pelo trânsito se misturando com o comércio de rua, os ambulantes gritando, as pessoas passeando. Um som e uma cultura que geralmente só existe nos subúrbios pelo mundo. Só que Brotas está no coração de Salvador”.

Nilson, que escreveu um livro chamado “Ni Brotas”, com poesias sobre a cultura e os causos dos ‘alpes brotenses’, destaca as duas principais diferenças do bairro para com os demais de Salvador: o forte comércio de rua e a diversidade cultural e financeira de seus residentes.

“Os bairros de Salvador têm estereótipos muito claros, como o Rio Vermelho sendo da boemia e o Corredor da Vitória, do luxo. Também uma divisão do que seriam bairros nobres e os periféricos. Brotas não. É uma grande mistura, onde se encontra desde prédios milionários a favelas. Além de ser uma região completamente autossuficiente”, diz o escritor.

'Brota de onde, rapá? 'A autossuficiência do bairro, onde tudo pode ser feito por lá mesmo e a pé, é explicada pela formação do local. Até o século XVIII, as montanhas reuniam apenas algumas fazendas e engenhos. Só os escravizados saíam do centro de Salvador para irem até lá buscar água em rios como o Lucaia.

O bairro começou a se formar a partir de 1718, quando foi construída a Igreja de Nossa Senhora das Grotas - que pela dificuldade da pronúncia acabou virando Brotas. Pessoas vindas do interior e também imigrantes começaram a formar um pequeno povoado em torno da igreja, que nos anos 1800 já formava um importante centro urbano na antiga Salvador.

No entanto, se ainda hoje é difícil subir ladeiras como a do Pepino de carro, imagina fazer isso a pé ou de burro em estradas de terra. Com isso, Brotas era praticamente um território isolado de Salvador e foi obrigado a tornar-se autossustentável, com comércio e serviços para atender os já milhares que ali habitavam.

“Como lá tinham muitas fazendas, os produtos já eram produzidos ali nas redondezas mesmo e ninguém precisava ir até o centro para fazer compras. O isolamento também propiciou a formação de uma identidade própria. Em resumo: uma pessoa poderia viver tranquilamente em Brotas sem precisar atravessar o matagal cercado por terreiros que existia onde hoje é a Bonocô”, conta o historiador Rafael Dantas, especialista na história dos bairros da capital. Ruas de Brotas na década de 1930 (Foto: Reprodução) Esse isolamento permaneceu até boa parte do século XX. O bairro só começou a se ligar efetivamente às outras regiões da cidade quando o então prefeito Antonio Carlos Magalhães construiu as avenidas de vale, como Bonocô e Vasco da Gama, que circundam Brotas.

“Antes disso até existiam algumas ruas, mas eram ruins, de terra ou paralelepípedo, e poucas pessoas tinham carros. Os bondes até tinham linhas que chegavam até lá, mas o principal meio de transporte seguia sendo os burros. Salvador, como um todo, até os anos 50 era completamente focada no que hoje chamamos de Centro Histórico. Rio Vermelho já era considerado longe e Pituba era praia de veraneio. Imagina Brotas, que ainda por cima é num morro”, esclarece Rafael. Região do Solar Boa Vista no início do século XX (Foto: Reprodução) Apesar da distância, Brotas seguiu se adensando. O bairro original, antes da emancipação do Engenho Velho e Matatu, por exemplo, já tinha 50 mil pessoas em 1950. Com a construção das avenidas, a chegada de novos moradores se intensificou nos anos 60. Entre os novos brotenses estava o ítalo-argentino-brasileiro Hector Julio Páride Bernabó, mais conhecido como Carybé.

Berço cultural Naquela época, o pintor já tinha rodado o mundo, passando por Argentina (onde nasceu), Itália (onde cresceu), Rio de Janeiro e Estados Unidos, mas escolheu o Engenho Velho de Brotas para fincar raízes quando já tinha 50 anos. Lá, comprou dois lotes onde construiu uma casa e o atelier onde hoje funciona o Instituto Carybé - que não é aberto ao público.

“Foi aqui que ele criou boa parte de suas obras e viveu com a esposa, filhos e netos. Também recebia visitas ilustres, como de Jorge Amado, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Gabriel Garcia Márquez e autoridades, políticos e diplomatas”, conta Gabriel Bernabó, brotense autor da frase que abriu este texto e também neto do artista. Hoje ele mora na casa construída pelo avô.

Além de Carybé, outros artistas nasceram ou moraram no bairro, como o fotógrafo francês Pierre Verger e, da safra contemporânea, o cantor e percussionista Márcio Victor. Entre esses herdeiros influenciados pela cultura brotense está o DJ TeleFunkSoul, que se mudou para o bairro aos 9 anos e conta que lá absorveu a variedade musical que compõe o seu som.

“Tinha o rock e heavy metal que era moda no colégio, também influências de músicas eletrônicas que na época se chamavam ‘Disco’, ‘Miami Bass’ ou ‘Funk Melody’ e toda a profusão de sons da Timbalada. Brotas é um lugar artístico e musical. Tem grafiteiros, pixadores, DJs, músicos, artistas de teatro, rua. Você vê muita coisa por aqui. É como se fosse uma cidade. Você não precisa daqui para consumir cultura”, afirma o DJ.

Apesar disso, ele lamenta a ausência de equipamentos culturais de porte capaz de receber grandes eventos. “A arte existe e exala por aqui, mas acaba restrita a pequenos públicos e nichos pois não há grandes espaços para essa galera se apresentar. Por isso, a população precisa descer a ladeira para poder consumir um evento maior”, diz.

Bairro com problemas de metrópole Além da quase ausência de casas de shows, teatros e museus, outros problemas incomodam os moradores de Brotas, principalmente o trânsito. Como a região se povoou muito cedo, as principais avenidas que cortam o bairro, como a Dom João VI, foram construídas há muitas décadas e não comportam mais a demanda.

“Na época não se imaginava que o fluxo de carros ia se tornar tão grande assim. Então as ruas e avenidas de Brotas foram feitas em uma ou duas faixas em sua maioria e logo as casas e comércios se instalaram na calçada, impedindo um eventual alargamento”, comenta Rafael Dantas.

Além disso, o transporte público segue com os problemas da época dos bondes. “São poucas linhas de ônibus que vêm para o bairro se você levar em conta o tamanho da população. Quase sempre somos obrigados a descer para alguma das avenidas para poder ter mais opções de transporte. O problema é que depois precisamos subir as ladeiras que são extremamente cansativas”, reclama o autônomo Ricardo Alves, 39 anos.

Horto independente Outro problema de metrópole, na verdade de nação, vivido por Brotas são os territórios rebeldes. Acupe, Engenho Velho e Cosme de Farias, por exemplo, já conseguiram se desgrudar do bairro-mãe. O último a traçar este caminho foi o Horto Florestal.

Para conseguir a independência, os moradores declararam sentimento de pertencimento ao Horto e não a Brotas. A mudança no CEP foi comemorada pelos residentes, que citam problemas que ocorriam antigamente por causa da aglutinação de bairros.

“Um exemplo é quando estava tendo lockdown em alguns bairros de Salvador e também foi realizado em Brotas. Tudo teve que fechar aqui no Horto por um problema no fim de linha e no Engenho Velho”, afirmou o presidente da Amo Horto, Coda Costa. 

Fama indevida “Basta subir qualquer ladeira de Salvador que você acaba em Brotas”, diz o ditado soteropolitano. Os morros que renderam ao bairro o apelido de 'Alpes Brotenses', no entanto, não são tão altos assim. E com a expansão da cidade na direção da BR 324, Brotas nem é referência em altitude, embora tenha mantido o status.

O ponto mais alto de Brotas está 71,9 metros acima do nível do mar. Com essa marca, o bairro não está nem entre os 10 mais altos de Salvador.

A lista da altitude é liderada por Valéria, com pico de 117 metros. Em seguida vêm Pirajá com 112,2m, Palestina com 109,5m e Moradas da Lagoa com 108,5m.  Fecham o top-10 Águas Claras, Cajazeiras VII, Jardim Cajazeiras, Dom Avelar, São Tomé e Porto Seco Pirajá. Brotas ocupa a 17ª posição no ranking.