Segunda onda de covid-19 deve encontrar uma 'legião' de doentes

Pacientes com doenças crônicas que não conseguiram fazer o acompanhamento nos últimos meses têm, agora, seus quadros agravados e já começam a chegar às unidades de saúde

Publicado em 25 de outubro de 2020 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva/ CORREIO

Ir ao endocrinologista a cada três meses é um ritual na vida da supervisora de atendimento Dalila Zarpellon, 31 anos, que tem diabetes tipo 1 desde os quatro. Mas, quando o corpo começou a dar sinais de que não estava tudo bem, já fazia dez meses que ela não ia a uma consulta. Primeiro, o açúcar no sangue subiu – do limite de 100mg/dL, chegou a 500. Depois, ela percebeu que estava indo ao banheiro demais. Daí veio um sintoma clássico: o gosto de acetona na boca. Era uma crise de cetoacidose - quando falta insulina e o corpo produz ácidos sanguíneos em excesso - uma complicação grave da diabetes, que Dalila teve que reverter em casa, contando com a ajuda de amigos e com a experiência com a doença.

Ela não chegou a ocupar um dos mais de 6 mil leitos de internação de Salvador pelo SUS. Mas, a complicação de casos como o dela é uma das preocupações das autoridades em saúde, principalmente no caso de uma possível segunda onda de covid-19 por aqui. No início desta semana, o secretário municipal de Saúde de Salvador, Leo Prates, disse que, por conta das complicações nos casos de pacientes com doenças crônicas, uma segunda onda na capital será “avassaladora”. Em Salvador, a covid-19 já registrou mais de 89 mil casos e matou mais de 2,6 mil pessoas.

Na sexta-feira (23), 50% dos quase 900 leitos de internação para pacientes com covid-19 em Salvador estavam ocupados. Enquanto isso, as unidades de pronto-atendimento da cidade começam a receber, cada vez mais, pacientes de doenças crônicas com quadros agravados, o que pressiona o sistema de saúde. Para o epidemiologista Naomar de Almeida Filho, professor da Universidade Federal da Bahia (ISC/Ufba) e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), isso se explica porque, em alguns lugares, a pandemia da covid-19 “desorganizou os sistemas de prevenção e controle de algumas doenças”.

Quadros mais graves Os pacientes de doenças crônicas, como hipertensão, diabetes, câncer, são os mais vulneráveis a casos graves da covid-19, por conta das chamadas comorbidades. Por isso que, com medo de sair e contrair a doença, muitos adiaram a ida ao médico. Segundo especialistas, alguns pacientes até deixaram de tomar os remédios regularmente.

O resultado é que, agora, sete meses depois do início das medidas de isolamento social no estado, essas doenças progrediram, antes mesmo de o Brasil viver uma segunda onda da covid-19, como já acontece na Europa.“Essa segunda onda, provavelmente, vem em janeiro. De fato, a situação se intensificou, porque se a pessoa tem uma doença crônica, ela precisa acompanhar. Se a doença avança, ela passa a ter uma importância maior, passa a ser um fator de risco maior para essa segunda onda”, explica a neurologista Jerusa Smid, primeira secretária da Academia Brasileira de Neurologia (ABN).Naomar de Almeida Filho explica que, nessas pessoas, a covid-19 acaba desequilibrando um organismo já comprometido. “A pessoa é infectada pela covid-19, mas já tinha a diabetes, hipertensão. A covid pode não ser a desencadeadora do que vai matar a pessoa, mas desequilibra aquela precária sobrevivência, reduzindo a sua capacidade de reequilibrar um sistema que já tinha problemas”, afirma.

Se essas pessoas que não conseguiram manter o controle sobre doenças crônicas acabarem se infectando mais para a frente com o coronavírus, elas podem morrer por complicações da doença.

“Quanto mais tempo as pessoas demorarem de controlar suas doenças, pior. Se eles se infectam por covid em casa, na rua, no mercado, e estão com a pressão descontrolada, com arritmia, com câncer avançado e glicemia elevada, eles morrem pela covid, mas muito mais pelo agravamento”, aponta o cardiologista Jadelson Andrade, superintendente do Hospital da Bahia, membro da Academia de Medicina da Bahia e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia.

Segundo dados da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab), pelo menos 32.034 pessoas morreram este ano no estado, até 21 de outubro, de doenças crônicas – infarto e AVC somam mais de 8 mil mortes; a diabetes, mais de 4 mil. Os dados ainda são preliminares, mas já respondem por 71% do total de mortes por essas doenças no ano passado em toda a Bahia. Foi justamente o número de óbitos por infarto que chamou a atenção do secretário de Saúde de Salvador. O secretário disse que o número cresceu nas unidades municipais, mas a pasta não informou quantos foram os casos.

Essas situações já aparecem também em outras unidades de saúde, segundo Jadelson Andrade:“Esses pacientes deixaram de ir aos consultórios com medo de se infectarem e, com isso, as doenças progrediram. À medida que o tempo foi passando, essas doenças foram evoluindo. Muitos desses pacientes morreram em casa, não de covid, mas de infarto, de AVC, de câncer. E outros tantos, quando chegavam à emergência, estavam com a situação muito grave”, explica.Esses podem ser chamados, como explica o epidemiologista Naomar de Almeida Filho, de “efeitos sindêmicos da pandemia”. Indica que a covid-19, para alguns especialistas, não é apenas uma pandemia, mas uma sindemia – que é quando uma pandemia extrapola o âmbito sanitário e afeta outras questões, ou, ainda outras doenças (veja ao lado).

Demanda reprimida Segundo especialistas, os agravamentos das doenças crônicas tendem a ficar ainda mais evidentes à medida que as pessoas comecem a se sentir mais seguras para sair de casa e, consequentemente, para ir ao médico. Para o mastologista Ezio Novais, coordenador de Mastologia do Grupo Amo e ex-presidente da Sociedade Mundial de Mastologia, já se espera para 2021 – ou para quando houver uma vacina contra a covid-19 – uma “explosão de demanda reprimida”.“A população está se sentindo mais segura, como se a pandemia estivesse acabado, mas não acabou, infelizmente. A gente acha que já está acontecendo uma explosão de demanda reprimida, de casos que deixaram de ser diagnosticados no período certo. O que vai acontecer é que deverá ter daqui para a frente uma estatística não muito feliz de se publicar: 2020 deve ter o maior número de diagnósticos de casos avançados de câncer da década”, diz.A projeção de novos casos de câncer de mama este ano na Bahia é de 3.460, segundo o Inca (Instituto Nacional de Câncer).

Dados do Ministério da Saúde já apontam que, no primeiro semestre deste ano, o número de mamografias realizadas foi 50% menor do que no mesmo período de 2019 - 1,1milhão contra 2,1 milhão em 2019. Ou seja, milhares de mulheres deixaram de fazer o exame que possibilita um diagnóstico precoce de câncer de mama. Segundo o mastologista, não há dados ainda do impacto disso no Brasil. Nos Estados Unidos, estima-se que 36 mil mulheres deixaram de ter um diagnóstico precoce do câncer de mama.

“Nós criamos um protocolo com orientações de todos os pacientes, mas eu não deixei de trabalhar, porque não posso deixar paciente sem assistência. Inclusive, operei algumas pacientes com câncer de mama que fizeram diagnóstico inicial e graças a Deus estão muito bem. Desde o começo, eu tinha uma preocupação com o rigor dos protocolos. Nunca fui contra o ‘fique em casa’, pelo contrário, mas entendo que, na parte de saúde, tinha que ter uma exceção para algumas doenças”, pondera.

Estudos investigam se covid-19 antecipa aparecimento da diabetes tipo 1 Um aumento no número e diagnósticos de diabetes tipo 1 em várias partes do mundo chamou a atenção, este ano, para uma possibilidade: a de que a covid-19 estivesse servindo de gatilho para acelerar o aparecimento da doença em pacientes que, provavelmente, já seriam diagnosticados um pouco mais tarde.

Os estudos, no entanto, foram revisados no início deste mês no Congresso Europeu de Diabetes (Easd). O aumento existe, mas ainda não está claro como ele se relaciona com covid - não dá para dizer se ela provoca diabetes, afeta o pâncreas ou simplesmente acelera o processo.

O que ficou evidente foi que as complicações para pacientes com diabetes tipos 1 e 2 são diferentes. Dalila Zarpellon, a paciente que abre esta reportagem, tem ao menos um dos fatores de maior risco para pacientes com diabetes tipo 1: mais de 25 anos convivendo com a doença.“Uma coisa que é bastante clara são os fatores que aumentam a gravidade para pessoas com diabetes tipo 1: pacientes com mais de 25 anos de doença, com hemoglobina glicada acima de 10 e com mais comorbidades”, explica a endocrinologista Denise Franco, que é diretora da Associação Diabetes Juvenil (ADJ) e coordenadora da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD).“A pessoa com diabetes tipo 2 tem mais chances de desenvolver complicações como AVC, infarto, tromboembolismo pulmonar. Pode deixar sequelas que roubam anos de vida dessas pessoas”, afirma o endocrinologista Victor Almeida, membro da SBD e da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem).

Covid-19 é uma sindemia, afirmam especialistas A palavra pandemia já entrou para o vocabulário de pessoas no mundo todo, mas uma outra começou a ser utilizada mais recentemente para tratar a situação da covid-19 no mundo: sindemia. O termo não é novo – foi cunhado nos anos 1990 pelo antropólogo médico Merrill Singer e indica que uma pandemia ultrapassou os limites do âmbito sanitário e afetou outros setores, como a economia e questões sociais.

Para o epidemiologista Naomar de Almeida Filho, professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/Ufba) e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o conceito de sindemia pode ser aplicado, de forma restrita, também dentro do setor de saúde, que é quando uma pandemia afeta outras doenças. É justamente o que vem acontecendo.

A também epidemiologista Emanuelle Góes, pós-doutoranda no Centro de Integração de Dados e Conhecimento para Saúde (Cidacs/Fiocruz) e integrante da Rede Covida, observa que a novidade, agora, é a interação entre uma doença infecciosa e doenças crônicas, não transmissíveis, como explicou, no final do mês passado, o editor-chefe da revista científica The Lancet, Richard Horton. Ele publicou um editorial defendendo que a covid-19 não é uma pandemia, e sim uma sindemia, já que duas categorias de doença – a covid-19 e doenças não transmissíveis, como as doenças crônicas, vem interagindo.“Essas condições estão se agrupando em grupos sociais de acordo com padrões de desigualdade profundamente enraizados em nossas sociedades. A agregação dessas doenças em um contexto de disparidade social e econômica exacerba os efeitos adversos de cada doença separada”, apontou.Ou seja, não basta pensar numa vacina como solução para o problema, já que ele envolve outras doenças e um contexto social. “Muitas vezes, as doenças crônicas têm relação com a falta de qualidade de vida, de bem-estar social, de um bom trabalho, de uma boa moradia. Essa desigualdade é um fator determinante”, diz Emanuelle Góes.

Segundo ela, a covid atua de forma distinta em grupos raciais e em diferentes grupos socioeconômicos. “O cenário só ficou pior por causa da desigualdade, das doenças crônicas afetando pessoas que vivem em situações precárias”, explica.

O cardiologista Jadelson Andrade também enxerga o ambiente como fator importante nesses casos.“A covid-19 é uma doença sistemática. O medo do vírus e de perder o emprego provoca um estresse que leva a aumento da pressão, da glicose, dos batimentos cardíacos, a progressão do câncer e até a depressão, que passou a ser companheira das pessoas na pandemia”, declara.O que fazer? Diabetes A Sociedade Brasileira de Diabetes não tem um protocolo ou orientação unificada sobre a realização de consultas na pandemia. Os casos são analisados individualmente entre médico e paciente. A validade das receitas foi prolongada no país para que o paciente não precise ir ao consultório apenas para buscá-las. Na Bahia, os pacientes do Cedeba - o centro de referência - usaram a telemedicina até setembro. Desde o início do mês passado, as consultas presenciais agendadas deveriam ser consultadas com antecedência. A recomendação de profissionais é que, em caso de emergência, o paciente procure atendimento.

Doenças neurológicas  A Academia Brasileira de Neurologia (ABN) também não possui um protocolo único para estes casos, mas recomenda que os pacientes não saiam de casa de forma desnecessária. Pacientes com Alzheimer, por exemplo, só devem ir a consultas se acompanhados de um responsável e usando máscara e álcool. Outras pessoas que percebam alterações neurológicas abruptas, como perda de fala e perda de força devem ir a uma emergência. Sequelas de AVC podem ser evitadas se o atendimento for rápido.

Câncer Pacientes com câncer não devem interromper seus tratamentos. Esta é a recomendação da Sociedade Brasileira de Oncologia. Ainda assim, a decisão deve ser tomada junto com o médico. Se o paciente já estiver em tratamento, as consultas dever seus por telemedicina. caso contrário, deve ser feita uma primeira consulta física. A SBOCC alerta para não desprezar sintomas que fujam da normalidade, como dores, inchaços, nódulos, manchas, perde de peso inesperada, dificuldade de cicatrização de feridas e presença de sangue nas fezes ou urina. Neste sábado (24), a Clínica AMO fará exames e consultas gratuitos para 200 mulheres cadastradas, incluindo mamografia e ultrassonografia. 

Cardiopatias A Sociedade Brasileira de cardiologia (SBC) não informou se tem uma diretriz para os pacientes durante a pandemia. O cardiologista Jadelson Andrade, no entanto, chamou a atenção para sintomas como dores no peito e arritmia - nestes casos, o paciente precisa procurar uma emergência.