Sem destino: óleo vazado é jogado em lixão, guardado em casa e até hotel

CORREIO falou com moradores e autoridades de 21 cidades que tiveram situação de emergência decretada

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  • Fernanda Santana

Publicado em 3 de novembro de 2019 às 05:55

- Atualizado há um ano

. Crédito: Divulgação

As primeiras manchas pretas na praia de Barra dos Carvalhos, em Nilo Peçanha, logo levaram os nativos à areia, na noite de 24 de outubro, para uma operação de recolhimento. Na manhã seguinte, uma caçamba recebeu o resíduo e seguiu para o lixão da cidade. Naquele dia, 50 quilos de óleo foram jogados fora. Moradores e autoridades de cidades que tiveram situação de emergência decretada armazenam petróleo até em quintal e hotel e correm para conseguir locais adequados de armazenamento.

No quintal da casa de Félix Santos, espécie de administrador do povoado de Barra, na divisa com a praia de Pratigi, dois galões de tinta são improvisados como reservatórios de petróleo. Cada um tem capacidade para 36 quilos. Como ainda não há resolução sobre o destino do óleo, a casa onde Félix vive com a esposa e o filho foi a única opção. Um cobertor é utilizado como proteção do petróleo ao sol. O aquecimento do óleo pode levar à evaporação de compostos tóxicos. "Eu estou tomando os cuidados cabíveis. Ninguém entra aqui a não ser gente de casa mesmo. Pior é fazer que nem no início, descartando até no lixão”, acredita.No povoado, ainda não há depósito apropriado para receber o óleo recolhido. O uso do cobertor, por exemplo, não é o ideal, segundo a orientação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). O órgão recomenda que o petróleo seja guardado em sacos, forrados embaixo e em cima por lonas plásticas, para evitar o risco de contaminação. O óleo não pode ser colocado em lixo comum, como ocorreu em Barra dos Carvalhos. Depósito improvisado em quintal de casa, em Nilo Peçanha (Foto: Arcevo Pessoal/Félix Santos) O município de Nilo Peçanha, na região do Baixo-Sul da Bahia, é uma das 21 cidades que tiveram situação de emergência declarada pelo governo da Bahia, após o vazamento de petróleo nas praias. O CORREIO conversou com todas para entender os destinos do óleo que apareceu na Bahia no dia 1º de outubro, na Praia de Santo Antônio, em Mata de São João. Até a última sexta-feira (1º), foram 28 municípios atingidos e 400 toneladas recolhidas.

Dias depois, por exemplo, ainda há sacos de óleo à espera em praias. Na cidade de Una, também no litoral Sul baiano, sem qualquer lugar preparado para receber os resíduos retirados nas praias, o óleo precisou ser dividido entre o Hotel Transamérica Comandatuba, um dos mais luxuosos do estado, e na capota de um carro 4x4 de propriedade da prefeitura.  

Óleo no aeroporto?  No dia 28 de outubro, as praias de Barra de Albino e Barra de Canavieiras amanheceram machadas de óleo. Os voluntários do grupo Mangue Mar Canes haviam se reunido na semana anterior para discutir como armazenariam o petróleo. Era o caminho natural da mancha preta, que começava a descer ao sul da Bahia. Na ausência de um depósito apropriado, a primeira escolha foi o aeroporto da cidade, onde poderiam utilizar uma pista afastada e inutilizada. “Creio que demorou inclusive até por parte do governo do estado para decretar a situação de emergência. Visto que desde sábado (26) que Canavieiras tem recebido [o óleo]. O Ibama chegou na cidade na manhã de hoje [quinta-feira, 31], o Inema também. Antes eles não haviam aparecido aqui", opinou Augusto Teixeira, integrante do grupo de voluntários. Somente na última quarta (30), a prefeitura mudou de ideia e decidiu encaminhar os resíduos para uma escola desativada. Durante três dias, sem destino final, o material ficou em locais improvisados nas próprias praias. Na vizinha Ituberá, na praia de Pratigi, os sacos onde foram guardadas as pelotas, muitas vezes agregadas a areia e algas, continuaram na praia o mesmo período.

A Prefeitura, segundo a assessoria de comunicação, tinha dificuldade em definir um galpão, longe da cidade, onde o armazenamento pudesse ser correto. 

O Decreto nº 8.127, de 22 de outubro de 2013, instituiu o Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Águas sob Jurisdição Nacional. No dia 29 de outubro, o Ministério Público Federal (MPF) reafirmou que a União não tinha acionado o plano. Uma das determinações é que o grupo de Acompanhamento e Avaliação, formado por Marinha do Brasil, Ibama e Agência Nacional do Petróleo (ANP), fique responsável pela adequação da coleta, do armazenamento e do transporte do óleo. 

No caso de Igrapiúna, foi necessário recolher o material em três pontos diferentes. Não havia um só depósito suficiente. Hoje, as pelotas estão guardadas em sacos em dois galpões da prefeitura e um espaço cedido por um morador. "Nós não queremos ficar com isso com mais de 30 dias de forma nenhuma. Talvez vire um problema ainda maior se cair no esquecimento. Pode despertar a vinda de curiosos, que possam querer usar", diz o prefeito Leandro Reis (PSB).

A preocupação com a reserva temporária inclui o medo de furtos e contaminação. Os casos foram relatados à Ícaro Moreira, especialista na recuperação de áreas costeiras. Os riscos de jogar o petróleo num lixão, por exemplo, incluem a contaminação do lençol freático e a possibilidade de escoamento para rios. Sem falar no potencial inflamável do petróleo. 

Não há nenhuma sinalização, até agora, do destino final de todas as toneladas armazenadas provisoriamente. O superintendente do Ibama, Rodrigo Alves, afirmou que não há prazo para decidir como e onde será descartado o petróleo cru.

Na sexta (1º), o Ibama disse que levou caminhões muncks para iniciar a coleta de cointêneres cheios de petróleo nas cidades de Jandaíra, Conde, Entre Rios, Esplanada e Lauro de Freitas. O Inema foi questionado sobre quantas e quais são suas atribuições, mas não respondeu até o fechamento da reportagem."O estado da Bahia também apoia municípios nessa logística, tanto de armazenamento quanto de orientação para destinação final. O governo do Estado alugou contêineres e está emprestando a prefeituras com dificuldade de armazenar".O Plano Nacional de Contingência não chega a explicar questões como prazo para descarte. No município de Cairu, assim como outros municípios em estado considerado crítico, foi preciso conseguir ajuda de empresas que estivessem dispostas a armazenar o petróleo.

Além do Ibama, Marinha e ANP foram questionadas na última terça-feira (29) . A agência mandou procurar a Marinha, que não respondeu.

Petróleo nos galpões  Hoje, na Bahia, são 21 municípios em situação de emergência. A primeira lista foi elaborada no dia 14 de outubro. No município de Cairu, onde estão as praias de Morro de São Paulo e Boipeba, em média 10 toneladas foram recolhidas. Nenhuma das regiões tinha depósito público capaz de armazenar tantas toneladas de petróleo cru. Desde então, o armazenamento é feito em dois depósitos privados, segundo a assessoria de comunicação da prefeitura do município. Os custos ainda não foram calculados, mas já estão “muito acima do que poderia ser previsto”. 

Na busca por depósitos temporários, ligações e contatos com empresários fazem parte da rotina. Prefeituras e voluntários recorrem à iniciativa privada para tentar encontrar espaços adequados para abrigar os sacos de óleo por tempo ainda indeterminado. Pelo menos quatro cidades descarregaram petróleo bruto, guardados em sacos ou contêineres, em empresas privadas.

As pelotas recolhidas em Camaçari, por exemplo, estão num galpão disponibilizado pela Cetrel, empresa de tratamento de efluentes líquidos e resíduos como o petróleo. A questão é: a empresa se dispôs a guardar o material por 120 dias.“A gente está cobrando uma definição, se vencer os 120 dias, precisaremos pedir mais um prazo, não temos onde colocar”, falou o responsável pela Defesa Civil do município, Ivanaldo Soares. Durante os quatro meses que têm capacidade para armazenar o petróleo, a Cetrel afirmou que realiza e realizará testes na busca por um descarte adequado – através de seu reaproveitamento energético, como a transformação em carvão, por exemplo. Até o momento, a empresa disse ter autorização legal dos órgãos ambientais, Ibama e Inema, para receber resíduos de Camaçari, mas Salvador e Mata de São João também já demonstraram interesse em destinar o petróleo.  

As histórias do petróleo e os destinos No dia 13 de outubro, pesquisadores do Instituto de Geociências da Ufba enviaram uma minuta ao Ibama em que mostram quais e quantas técnicas poderiam ser utilizadas para dar fim a pelo menos parte das pelotas de óleo encontradas nas praias baianas. Como é um documento sigiloso, a reportagem não teve acesso ao conteúdo. De 7h às 22h, diariamente, pesquisadores testam possibilidades de descarte para o petróleo cru.  “O primeiro passo é como reaproveitar esse óleo. Os processos que tentam alternativas ecológicas são os mais adequados. A tendência é utilizar bioprocessos quando não se pode reaproveitar imediatamente”, acredita Ícaro.Na Faculdade de Química da Ufba, um grupo coordenado pela professora Zenis Novais da Rocha e por três alunos conseguiu transformar pelotas recolhidas da praia em carvão. O petróleo passou por um processo de degradação da matéria orgânica numa máquina e, 60 minutos depois, estava pronto o carvão. A máquina, que custa em média R$ 3,2 mil, consegue converter apenas 50 kg por vez.“Os países lá fora têm uma tecnologia mais avançada que a nossa. Mas uma empresa que trabalha com resíduos sólidos, por exemplo, já tem tecnologia para isso", opina a professora. O procedimento mais comum de aproveitamento de petróleo, na verdade, é a reintrodução imediata do composto como combustível de grandes navios. O óleo é retido direto do mar e diluído no óleo antes do reaproveitamento. No caso das praias nordestinas, no entanto, o óleo já foi encontrado disperso, misturado a areia e algas, o que gera dificuldade. 

As histórias de vazamento de petróleo na Bahia, embora nunca em proporções parecidas, também remetem a outros tipos de descarte. A descoberta de Petróleo na Bahia, em 1941, inaugurou, no Brasil, um ciclo de produção petrolífera comercial, com monopólio da Petrobras. Era época de legislação quase inexistente no setor e as destinações dadas aos resíduos da produção não possuíam nenhuma orientação legal. O mais comum era descartar a água originada do resíduo do refino em mananciais e córregos. Já o petróleo vazado, sem possibilidade de reaproveitamento, era jogado em lagoas drenadas especificamente para servir de depósito, lembra Raul Lima, pesquisador da área.    As práticas começam a mudar em 1980, com o endurecimento na legislação e com o avanço de uma consciência ambiental.“Hoje, não existe mais isso. Não é possível hoje conceber a ideia de que exista uma lagoa como essa. Nem o município, nem o Estado e a União dariam uma licença ambiental a empresas com essas práticas”, opina Raul.Os registros de vazamentos menores e exemplos de tragédias ao redor do mundo, como o da Espanha, em 2002, e a do Golfo do México, e, 2010, dão exemplos de como os destinos do petróleo foram definidos. A principal preocupação de quem acompanha de perto o vazamento no Nordeste, de voluntários, a pesquisadores, é que não sejam repetidos erros passados. 

 Onde está o óleo nos 21 municípios que tiveram situação de emergência declarada:  Belmonte – 400 quilos/Depósito da Prefeitura Cairu – 10 toneladas/Depósito de uma empresa privada Camamu - 3 toneladas/Sede da Ciapra, em Ituberá Canavieiras – 11,2 toneladas/Escola desativada Igrapiúna – 1,5 tonelada/Dois galpões da prefeitura e um galpão privado Ilhéus – 10 toneladas/Galpão da Codeba Itacaré – 1 tonelada/Depósito da prefeitura. Itaparica – 2 toneladas/Depósito da prefeitura Ituberá – 50 toneladas/Depósito no aeródromo, local de pouso e aterrizagem. Maraú – Depósito de empresa privada. Nilo Peçanha – 100 quilos/Lixão e casa de nativo.Taperoá – Área de mangue onde não aconteceu retirada de óleo Una – 2 toneladas/Hotel Transamérica e capota de carro 4x4 Uruçuca – 2 toneladas  Valença – Depósito da prefeitura. Camaçari – 20 toneladas/Depósito de empresa privada. Conde – 60 toneladas/Depósito da prefeitura. Entre Rios – Não passou balanço/Recolhido pelo Inema para local não informado Esplanada – Não passou balanço/Recolhido pelo Inema para local não informado Jandaíra – 200 quilos/Recolhido pelo Inema para local não informado Lauro de Freitas – 11 toneladas/Depósito da prefeitura.

*Com supervisão da editora Mariana Rios