Setaro 70: amigos e ex-alunos relembram histórias hilárias e legado do eterno mestre

Professor e crítico de cinema, morto em 2014, faria 70 anos nessa segunda (12)

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  • Da Redação

Publicado em 11 de outubro de 2020 às 06:30

- Atualizado há um ano

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Exercício de linguagem: Setaro e Ediane do Monte (sua segunda esposa), em férias no Ceará, em 1978 por Foto: Reprodução

Foto: Aleksandra Pinheiro/Divulgação “Hitchcock, nascido na belíssima cidade de Irecê, dirigiu o clássico Um Corpo que Cai no ano de 1958...”

Por mais absurda que a frase soasse, e os alunos gargalhassem dela, o professor André Setaro mantinha-se impassível por trás dos inseparáveis óculos escuros e da barba espessa.

O nome da disciplina indicava que deveria ser uma aula sobre cinema regional. O limitado acervo disponível de cineastas locais, no entanto, era uma barreira intransponível naquele começo de ano de 1989, no qual o muro de Berlim ainda mantinha-se de pé.

O drible criativo cumpria um duplo movimento. Preservava o conteúdo dentro da ementa curricular, ao toque que o fazia abusar da fina ironia. “Ele dizia que Bergman tinha nascido em Jequié e Antonioni lá em Itabuna... A situação era engraçada não só pelos absurdos, mas pela forma séria como ele dizia cada uma dessas coisas”, relembra Sora Maia, ex-aluna de Setaro, hoje fotógrafa deste CORREIO.

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Morto em julho de 2014, o professor e crítico de cinema André Olivieri Setaro completaria 70 anos nesse 12 de outubro. Durante 35 anos, foi professor de Cinema da Faculdade de Comunicação (Facom) da Universidade Federal da Bahia, sendo responsável pela formação de um sem-número de jornalistas, produtores culturais, escritores, atores, músicos, humoristas, cineastas ou simplesmente vadios e bons-vivants, atraídos pela sua personalidade magnética.

A lembrança de Sora de um Setaro irreverente se conecta à memória de muitos outros ex-alunos e colegas que conviveram com o brilhante crítico. Umbelino Brasil, também professor da Facom, recorda os hábitos “subversivos” do velho amigo.

“Nas sextas-feiras, André pedia a um funcionário, que nos dava suporte para projeção de filmes, que comprasse umas cervejas e acomodasse na geladeira da sala, onde os funcionários faziam as suas refeições. Enquanto a sua turma se envolvia na exibição do filme, ele se retirava da sala para fumar e, óbvio, beber alguns goles de cerveja. Depois, voltava para a sala de aula andando vagorosamente num passo de balé parecido ao do John Wayne. E destrinchava a falar como o seu conhecimento infinito sobre Welles, Kurosawa ou John Ford e mundo do cinema clássico”.  Nas voltas que o cinema dá, Setaro rodando por um set de filmagem em Cachoeira, em 1979 (Foto: Reprodução) Escrita e Brigitte Bardot O jeito debochado escondia as sutilezas do requinte, facilmente reconhecidas no fino manejo da escrita, recheada por erudição e vasto conhecimento literário.

“Quando me tornei aluno do André, nos anos 90, já lia seus textos na Tribuna da Bahia e achava aquilo um espetáculo tão ou mais importante que os filmes. O André era portador de uma combinação muito sedutora de desencanto e humor. Seus textos eram carregados desse compromisso. E sua presença, um recado permanente, a dizer que, apesar de tudo, viver vale a pena”, diz o professor e cineasta Marcos Pierry. Setaro nos anos 1970 (Foto: Reprodução) O jornalista Cláudio Leal adiciona mais complexidade à personalidade do mestre, revelando que, embora se deleitasse por romancistas russos, ingleses e por Machado de Assis, Setaro mantinha os filmes mal dirigidos e as notícias esdrúxulas sempre à captura do seu culto radar.

“Ele adorava telefonar. Apontava o telefone contra a solidão. Setaro tinha uma mente fabulativa e fabulosa. Gostávamos de falar de personagens secundários de Machado de Assis, de resenhar filmes ruins, de trocar opiniões surrealistas sobre o noticiário, de olhar com sabor ficcional a vida e os amigos”, pontua. Em 1983, o professor ao lado do jornalista e amigo Artur Carmel (Foto: Reprodução) Formado em Direito, provocou incisiva amargura na família ao abandonar o terceiro poder arrebatado pela devoção à Sétima Arte. Tinha um fascínio religioso por Brigitte Bardot, sua musa celeste. Devotava também o britânico-sertanejo Hitchcock, além de Buñel, Fellini, Visconti, Antonioni, Leone (amava o cinema italiano). Por Orson Welles mantinha especial admiração pelo deslumbre provocado ante Cidadão Kane (1941), considerado, por ele, a maior obra cinematográfica produzida.

“Assisto Cidadão Kane pelo menos duas vezes por dia. Uma vez ao acordar e outra ao dormir. É meu remédio, cuidadosamente receitado pelo meu cardiologista”, exagerava, diante de uma doença crônica que o acompanhava.

Em 2006, sofreu um infarto durante o período letivo. A pronta recuperação o fez abandonar incialmente os cigarros, embora, poucos meses depois, tenha voltado inclemente aos prediletos maços de hollywood vermelho, alheio aos riscos da exposição. Setaro e familiares no Cristo Redentor, Rio, em 1968 (Foto: Reprodução) Da sala de aula, os apontamentos rapidamente se estendiam para a mesa do bar. “Nós, alunos, bebíamos muito com Setaro. Lembro de uma história louca de um virote que demos e, lá para tantas, resolvemos que iríamos para a Micareta de Alagoinhas. Ele não fez nenhuma objeção. Apenas falou: ‘posso passar em casa para pegar meus remédios?’. Foi uma gargalhada só”, conta o jornalista e cordelista Zezão Castro.

“Setaro marcava no bar às 15h. Eu, que já tava ligado na dele, chegava sempre quinze pras três, porque sabia que desde as 14 horas ele já estava lá bebendo. Sabe por que ele fazia isso? Pouca gente sabe, mas Setaro era extremamente tímido. Era por isso que ele usava os óculos escuros e a barba. Ele chegava antes pra beber pra já estar mais alegre quando os outros amigos chegassem”, conta o jornalista e escritor Franciel Cruz.

Zezão relembra outra história burlesca do então jovem professor, sempre afeito à controvérsia.

“No final dos anos 1970, no auge da moda macrobiótica por conta de Gilberto Gil e do Refazenda, teve uma inauguração de um restaurante macrô, como era chamado essa coisa. Setaro chegou lá com um hot dog de dois palmos e a barba toda suja de mostarda, perguntando: ‘É aqui que é a inauguração do restaurante macrobiótico?’. Ele gostava dessas coisas’”, ri. O mestre e seu hollywood, um dos amigos mais próximos e inseparáveis (Foto: Reprodução) Setaro na pandemia Antissocial assumido, diante de tantas personalidades possíveis e sempre surpreendentes, é curioso pensar como estaria vivendo Setaro nestes tempos pandêmicos, durante o descalabro do governo de Jair Bolsonaro. Nem mesmo os amigos conseguem chegar a um consenso nos palpites.

“Sentado e refastelado numa poltrona da sua sala de estar, com uma taça de vinho nas mãos e rendido às plataformas digitais”, diz Umbelino Brasil.

“Ele era um conservador anarquista. Tinha apreço pela erudição, mas queria também esculhambar as coisas. Setaro continuaria onde sempre esteve, na oposição”, carimba Franciel.

“Certamente, ele se espantaria mais e mais com o declínio da visão racionalista neste Brasil doido e obscurantista”, aposta Cláudio Leal.

Lucas Fróes, ex-aluno e fiel amigo, mira na impossibilidade de um prognóstico, sem esquecer a ávida sede. “Ele era um piadista em qualquer situação, inclusive nas mais improváveis. É impossível adivinhar o que ele diria do Brasil de hoje, só ele mesmo poderia falar. Mas, com a quarentena, na certa estaria pedindo muitas heinekens por delivery”.

[Esta coluna é dedicada à memória do meste André Olivieri Setaro e ao amigo Lucas Fróes, incansável na luta por preservá-la].