Sim, está mais quente: temperatura mínima subiu 2 °C de 1963 para cá

Na última década, 41% dos dias em Salvador bateram 30 °C; dia mais frio foi há quase 51 anos, quando fez 16,2 °C

Publicado em 11 de agosto de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Betto Jr./Arquivo CORREIO
.

Você sabe onde estava no dia 21 de novembro de 1968? Faz quase 51 anos e aquele foi o único dia em que soteropolitanos viram os termômetros chegarem à casa dos 16 °C – foram incríveis 16,2 °C, frio de ‘congelar os ossos’ para o atual padrão de Salvador. Nos últimos 56 anos, até houve dias frios na capital, entre 17 °C e 19 °C, mas a verdade é que, por mais frias que possam parecer as últimas semanas, a temperatura mínima na cidade só faz subir.

Basta olhar a linha do tempo. Com base em 49.703 boletins de registros diários de temperatura mínima, média e máxima em Salvador, do banco de dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), o CORREIO observou que, na década de 1960, apenas 17,37% dos dias registraram no mínimo 30 °C. Na última década, iniciada em 2010, esse percentual subiu para 41,55%. O dia mais quente desde 1963 na capital baiana foi em 1995: era outono e, no dia 26 de abril, os termômetros bateram 37,1 °C. A temperatura subiu, de 1963 para cá, 2 °C, em média.

“Parece que foi a temperatura máxima que aumentou, mas na verdade, ela tem se mantido estável. O que está aumentando nos últimos anos é a mínima”, explica a meteorologista Andrea Ramos, que é consultora do Inmet e especialista em extremos de temperatura. É justamente a mínima que influencia na temperatura média de Salvador. Estudos têm apontado, explica Andrea, que os últimos 20 anos foram os mais quentes – com destaque para o intervalo entre 2015 e 2018.

O percentual de dias muito quentes em Salvador foi crescendo década a década: em 1970, foram 20,44% dos dias com pelo menos 30°C; na década de 1980, chegaram a 26,92%; em 1990, 33,93%. Nos anos 2000, o percentual é 41,99% - um pouco acima dos 41,55% da década atual, que ainda acaba no ano que vem. Por enquanto, os dias seguem quentes.

Nos dois primeiros meses de 2019, por exemplo, em pleno verão, só um dia não teve temperatura máxima acima dos 30°C: 28 de fevereiro, com 29,7°C. Não dá para dizer que não fez calor.

[[galeria]]

Mudança climática? Para a meteorologista Andrea Ramos, é fato que a temperatura tem aumentado. “O que a própria Organização Meteorológica Mundial (OMM) percebeu nos últimos anos é que os extremos estão aumentando”, afirma. E isso vale para o mundo todo, desde as regiões mais frias às mais quentes. Mas, no caso de Salvador, segundo Andrea, ainda não dá para dizer que esses são os efeitos de uma real mudança climática – para haver uma alteração no clima é necessário um intervalo maior de tempo. Mas, sem dúvidas, o aumento na temperatura, não só em Salvador, tem ligação com ações humanas.“Nós alteramos o microclima de um lugar quando fazemos intervenções. Se você suprime uma área gramada e coloca asfalto, isso influencia na temperatura. Em áreas de prédios, a temperatura é diferente, é mais quente, porque não se tem uma circulação adequada de ar. A temperatura muda quando o cenário urbano é modificado e a resposta disso está na própria sociedade, nas intervenções que ela faz”, avalia Andrea.Não por acaso, as chamadas ‘ilhas de calor’ ficam nas regiões mais centrais da cidade. Em entrevista ao CORREIO no início deste ano, o meteorologista Aldírio Almeida, do Instituto Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), explicou que o fenômeno das ‘ilhas de calor’ torna as regiões urbanas mais quentes que as rurais.

“Quando a gente tem vento, favorece a renovação do ar e não permite que o asfalto fique aquecendo a mesma parcela de ar. Quando a gente tem muito prédio, essa renovação é reduzida, tanto que as 'ilhas de calor' geralmente se formam nas regiões centrais da cidade”, explicou, na época, ao falar sobre o calor infernal enfrentado por estudantes nas salas de aula.

Causa e efeito Já Carlos Rittl, secretário executivo do Observatório do Clima e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza, defende que esse cenário é o início de uma mudança climática.“Esse aumento médio de temperatura, inclusive de quantidade de dias muito quentes, é um sinal. Quando a gente avalia o efeito local da variação de temperatura, tem que levar em consideração a urbanização, a perda de áreas verdes, o que já provoca um aumento de temperatura”, explica.Outra informação que se pode tirar disso é que, a despeito dos dias quentes registrados na capital baiana nos últimos anos, é provável que a temperatura real em Salvador seja maior. Isso porque a estação meteorológica que mede as temperaturas na cidade fica numa área, digamos, privilegiada: é em Ondina, na parte mais alta, próximo ao zoológico e numa área bastante arborizada. No Centro da cidade, onde há mais asfalto, o registro certamente seria de temperaturas mais altas, reconhece Andrea Ramos. (Infografia: Morgana Miranda/CORREIO Gráficos) A mudança, no entanto, está longe de se resumir à sensação de calor. Para crianças e idosos, os problemas respiratórios ficam mais acentuados e se associam a outros fatores. A falta de chuva e a chuva em excesso impactam na segurança hídrica e não são raros os casos de adoecimento de pessoas que consomem água contaminada de enchentes ou alimentos afetados pela seca.

Tudo isso, apontam especialistas, tem relação direta com o aquecimento global, que já vem causando catástrofes em todo o mundo. Só este ano, houve desde ciclone na África até tempestade no Rio de Janeiro e ondas de calor e frio extremo pelo mundo. Segundo Carlos Rittl, a temperatura da Terra está, em média, 1°C mais quente do que os níveis pré-Revolução Industrial. Esse aquecimento é provocado por ações humanas, como emissão de gases do efeito estufa, desmatamento, erradicação de áreas verdes.

Com temperaturas mais elevadas, há consequências como derretimento de geleiras, que provocam o aumento do nível do oceano, e consequentemente causam erosão nas costas marítimas, que perdem faixa de continente para o mar – como aconteceu no final de julho em praias de Arembepe e Jauá. Ressaca: ondas violentas destruíram restaurantes em Arembepe, Camaçari, no dia 22 de julho (Foto: Arisson Marinho/Arquivo CORREIO) “Isso é outra consequência, porque a gente tem variações nas correntes oceânicas e mais volume de água em função do derretimento das geleiras. É importantíssimo que a gente saiba lidar com essas mudanças e o poder público também tem responsabilidade. É necessário tanto informar a população sobre os riscos, como estabelecer estratégias para evitar mais”, afirma. Entre os dias 19 e 23 de agosto, Salvador vai receber a Semana do Clima da América Latina e Caribe, evento da Organização das Nações Unidas (ONU).

Debaixo d’água O arquiteto e urbanista Carl von Hauenschild, membro do conselho do Instituto dos Arquitetos do Brasil – Departamento da Bahia (IAB-BA), explica que as variações de temperatura provocam consequências graves para as cidades. Passa por impactos nas construções e, no caso de Salvador, no sistema viário das áreas mais próximas ao mar. Em alguns anos, ele pode ser invadido frequentemente pela água.

“Nós fizemos recentemente um cálculo científico e jurídico sobre a elevação do espelho do mar, sobre a linha preamar média de 1831 até 2014. Em Busca Vida, o nível do mar subiu 68,3 cm nesse período, o que dá uma média de 3mm por ano”, afirma, levando em conta dados do Departamento Nacional de Hidrografia (DNH).“Se você traz isso para as regiões mais baixas de Salvador, em Itapagipe, onde talvez o nível da água possa chegar a 70 cm, a gente tem um problema grave na rede de infraestrutura subterrânea dentro da área de influência da maré”, continua.Na prática, significa que, em pouco mais de 100 anos, toda o sistema viário da região, se não estiver debaixo d’água, será frequentemente invadido por ela.

E não é só asfalto. Debaixo dele, explica Carl, há tubulações da rede de água, esgoto, energia, comunicação. “Nossas tubulações de drenagem não aguentam esse volume de água”, afirma. Por isso, o plano diretor Salvador 500, que está sendo produzido, leva em consideração esse quadro.

A Fundação Mário Leal Ferreira (FMLF), entidade responsável pelo Plano Salvador 500, informou que a questão ambiental será tratada de forma especial - em parceria com a Secretaria Municipal da Sustentabilidade, Inovação e Resiliência (Secis) e consultoria com especialistas - embora o plano seja de 30 anos, até 2049.“As mudanças climáticas e suas consequências, além dos projetos e ações que podem mitigar os efeitos dessas mudanças, serão fundamentais no plano. A cidade do Salvador está sendo pensada no plano considerando as diferenças existentes em cada bairro, ou seja, as condições ambientais, sociais e urbanísticas”, explica a presidente da FMLF, Tânia Scofield.O problema, inclusive, é antigo. Naquele mesmo dia 21 de novembro de 1968, o mais frio dos últimos 56 anos em Salvador, a chuva fez estragos. O Jornal da Bahia noticiou que, além da destruição e dos alagamentos em bairros da Cidade Baixa, a capital vivia a maior ressaca do mar em dez anos. Em Itabuna, a chuva ameaçava tragar um povoado inteiro.

Para além de Salvador, no litoral sul da Bahia, a área de continente tem reduzido. Em dez anos – de 2006 até 2016 – a faixa de terra da cidade de Prado reduziu em 900 metros, enquanto em Mucuri, na mesma região, diminuiu em 400 metros. Os dados constam em um estudo sobre erosão costeira no Brasil, conduzido na Bahia pelos José Maria Landim Dominguez, Abilio Carlos da Silva Pinto Bittencourt e Junia Kacenelenbogen Guimarães, do Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia (Ufba), e mostrado em reportagem do CORREIO em 2017.

*** Por que chove tudo em um dia?

Em Salvador, são os meses de abril, maio e junho que registram as maiores quantidades de chuva. Nas últimas seis décadas, a maior média de precipitação tem sido no mês de maio – 321,63 mm, segundo dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Mas, recentemente, um fenômeno observado na Bahia, sobretudo no litoral, é o dos Distúrbios Ondulatórios de Leste (DOL).

São eles os responsáveis, ocasionalmente, pelas chuvas fortes. Mais que isso, por chuvas concentradas em um ou dois dias. Entre 7 e 8 de julho, por exemplo, choveram 164 mm em 24 horas – a média esperada para o mês inteiro era de 165 mm.“Aquela chuva que acontecia em um mês, acontece toda em um dia. Acredita-se que isso esteja relacionado com mudança climática. É um indício. O que a gente vê é que isso está influenciando localmente. No caso de Salvador, são massa de ar, ondas de leste”, explica a meteorologista Andrea Ramos, consultora do Inmet. Meses mais chuvosos em Salvador são abril, maio e junho; este ano, temporais chegaram em julho (Foto: Mauro Akin Nassor/Arquivo CORREIO) Também meteorologista do Inmet, mas com atuação mais específica na Bahia, Heráclio Alves é um dos autores de um estudo que trata justamente dos Distúrbios Ondulatórios de Leste em Salvador. No trabalho, ele, Andréa Helena Machado dos Santos, Maria Regina da Silva Aragão, Magaly de Fátima Correia e Alexandra Barbosa Silva apontam que os DOLs são de extrema importância por provocarem “alterações significativas nas condições sinóticas [que têm grande variação espaço-temporal], principalmente na componente meridional do vento”. A consequência é uma umidificação da camada, aumento de nebulosidade e precipitação.

“Em Salvador, o nosso grande problema é o nível de chuva. Há 30 anos, a gente calculava um máximo de 50 mm a 60 mm. Hoje, a gente tem chuvas de 80 mm até quase 100 mm em uma hora. Esse dado é muito importante porque a chuva por hora significa a velocidade com que a água da drenagem passa pelos rios e chega ao mar. E quanto mais rápido elas chegam ao mar, mais rápido as áreas mais baixas da cidade sofrem inundação”, explica o arquiteto e urbanista Carl von Hauenschild.

O problema na distribuição de chuva é outra consequência do aquecimento global, aponta Carlos Rittl, do Observatório do Clima. “Esse ano, na Bahia, a gente viu cidades sofrendo com excesso de chuva e com a seca. A gente está tendo uma variação na média de chuva, mas os extremos também vão variar e esses fenômenos mais frequentes já estão atingindo muito a cada um de nós”, avalia. (Infografia: Morgana Miranda/CORREIO Gráficos) ***

É, mas não é: entenda a sensação térmica

O calor que a gente sente não é o mesmo que os termômetros marcam. A chamada sensação térmica é influenciada por outros fatores, com a velocidade do vento e a umidade do ar. É por isso que, nas últimas semanas, os 20°C, em média, registrados em Salvador parecem indicar um frio muito maior. A culpa é do vento forte.

A tabela de sensação térmica do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) aponta que, se a temperatura no termômetro é de 20°C, a sensação só será igual se a velocidade do vento for de 2m/s – ou 7km/h. Como nos últimos dias, ela tem chegado a mais de 30 km/h, a tendência é que a sensação térmica, nos mesmos 20°C, possa chegar até perto de 13°C. Ou seja, não precisa fazer cerimônia para tirar o casaco do armário, nem pra dormir bem agasalhado. A verdade é que está frio, mesmo.

***

Os efeitos da mudança climática pelo mundo

A mudança de temperatura não é um fenômeno exclusivo de uma cidade, nem de um país. A temperatura do globo vem aumentando nos últimos anos e provocando catástrofes, como tufões, furacões, tempestades, ondas de calor e de frio extremo. Até os tsunamis, associados a terremotos no oceano, tendem a ser mais devastadores por conta do maior volume de água no mar, aponta especialistas. Relembre catástrofes ocorridas nos últimos anos:

- 2003, Europa  As ondas de calor na Europa mataram 70 mil pessoas. Só na Itália foram mais de 20 mil mortos, onde as temperaturas oscilaram entre 38°C e 40°C. Na França, foram mais de 14 mil. Segundo relatório da ONU, aquela temporada poderia se tornar um padrão no continente para os próximos anos.

- 29 de agosto de 2005, Estados Unidos O Furacão Katrina, uma tempestade tropical que se formou nas Bahamas e chegou ao litoral sul dos Estados Unidos, devastou Nova Orleans. Mais de 1,8 mil pessoas morreram na passagem do furacão. Nova Orleans está entre as áreas mais atingidas pelo furacão Katrina, em 2005 (Foto: AFP) - 6 de maio de 2008, Myanmar O ciclone Nargis atingiu a costa de Myanmar e provocou uma forte onda. De acordo com o Exército do país asiático, foram mais de 80 mil mortos e pelo menos 1 milhão de desaparecidos após a passagem do ciclone.

- 22 e 23 de novembro de 2008, Santa Catarina  Em Santa Catarina, as chuvas mataram 126 pessoas em dois dias. Elas foram vítimas de deslizamentos e inundações. Várias cidades ficaram encobertas pela água e oito ficaram  isoladas.

- 12 de janeiro de 2011, Rio de Janeiro  Aquela que foi considerada, na época, a maior tragédia climática da história do Brasil deixou ao menos 506 mortos em quatro cidades da região serrana do Rio de Janeiro: Teresópolis, Nova Friburgo, Sumidouro e Petrópolis. A tragédia aconteceu depois que, sob fortes chuvas, encostas da região deslizaram sobre residências.

- 6 de julho de 2018, Canadá Uma onda de calor e umidade no Canadá matou mais de 50 pessoas na província de Québec. em montreal, ond ehouve mais vítimas, as temperaturas chegaram a 36,6°C.

- 28 de dezembro de 2018, Austrália Uma onda recorde de calor na Austrália registrou temperaturas até 16°C maiores do que a média. O povoado de Marble Bar, a localidade mais quente do país, teve máxima de 49,3°C. A agência meteorológica australiana atribuiu a onda de calor às altas pressões do mar da Tasmânia.

- 29 de janeiro de 2019, Estados Unidos Frio extremo nos Estados Unidos matou, em três dias, 21 pessoas. O ápice aconteceu em Ponsford, Minnesota, onde a temperatura chegou a -44°C – mas a sensação térmica foi de -54°C. De acordo com Serviço Nacional de Meteorologia, a causa foi um vórtice polar. Tempestado causou estragos no Rio de Janeiro em fevereiro deste ano (Foto: AFP) - 7 de fevereiro de 2019, Rio de Janeiro Temporal no Rio de Janeiro matou ao menos 10 pessoas e deixou centenas de desabrigados. Mais de 150 árvores foram derrubadas, houve deslizamentos de encostas, queda de estruturas e estado de emergência.

- 14 de março de 2019, Moçambique  O Ciclone Idai, que passou pela África, deixou mais de mil mortos em Moçambique, Zimbábue e Malauí. Mais de 1 milhão de pessoas ficaram desabrigadas e o fenômeno ainda deixou outro efeito: mais de 4 mil casos de cólera. Ciclone deixou milhares de desabrigados em pelo menos três países da África (Foto: AFP)