Só depende de você: perdão é ato terapêutico e indicado por todas religiões

O Natal é excelente momento para aproveitar os benefícios de perdoar e ser perdoado

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  • Da Redação

Publicado em 25 de dezembro de 2021 às 11:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: ShutterStock

Perdoar é um ato ecumênico. Não importa a religião, tampouco se você não tem nenhuma. O importante, para sua saúde mental e física, é praticar o perdão. Contudo, não é tão simples como abraçar aquela tia chata e fofoqueira na ceia de Natal. No dicionário, a definição de perdão aparece na terceira pessoa: “ação de se livrar de uma culpa, de uma ofensa, de uma dívida”. E quem perdoa? Não é fácil abdicar do seu senso de justiça após uma ofensa. Mesmo assim, vale o sacrifício. Especialistas, representantes religiosos e pessoas que perdoaram asseguram: é difícil, mas possível e necessário. 

O caminho é longo e os principais passos são: controlar-se, compreender, perdoar-se e só então chegar ao perdão daquele que te magoou. Uns conseguem chegar mais rápido ao destino final, outros não. Pode levar semanas, meses ou anos. Tudo depende do sentimento que impede o perdão: a raiva. Perdoar não é deixar de procurar justiça, relevar uma agressão ou dar outra chance. Também não é esquecer. O perdão, na verdade, é uma canalização positiva do ódio. 

“Quem precisa perdoar é aquele que se sentiu ofendido, agredido ou injustiçado. Isso gera muita raiva e esta raiva, quando não é bem canalizada, se torna um poderoso corrosivo para a saúde mental. A maioria das pessoas quer se livrar deste sentimento, em vez de aceitá-lo e trabalhar isso. Trabalhar com a raiva significa domesticá-la e curar o aspecto ferido. Perdoar é um processo muito complexo, por isso é tão difícil”, assegura a psicóloga Isabel Guimarães, doutora em ciências da saúde, especialista em psicologia analítica e terapeuta junguiana. 

O descontrole da raiva e a indisposição para o perdão afeta sua saúde, literalmente. Uma pesquisa realizada antes da pandemia, em 2019,  relacionou a dificuldade de perdoar e a ocorrência de infarto agudo do miocárdio. O estudo, realizado pela psicanalista Suzana Avezum, entrevistou 130 pessoas. Entre os pacientes com histórico de infarto, 65% tinham dificuldade em perdoar. Existem diversas maneiras de controlar a raiva e chegar ao perdão. É preciso buscar mecanismos de controle seja na terapia, na sua religião, conversa, exercício físico, fazer o que te faz bem. O importante é estar atendo e evitar um outro perigo: quando a raiva vira vingança. 

“Muitos acreditam que se livram dessa raiva através da vingança. É uma ilusão. O caminho da vingança joga sal, ao invés de bálsamo na ferida. Alcançar o perdão é passar por um processo profundo de transformação, que leva ao autoconhecimento e maturidade psicológica. Contudo, perdoar também não significa esquecer”, diz Isabel. Para a psicóloga, a cura chega quando aquele fato que gerou a raiva não causa mais dor.

“Quem perdoa esquece? Isso é uma mentira que dificulta o processo do perdão. Só se tiver algum problema na memória para esquecer, né? Os acontecimentos, mesmo os mais dolorosos, fazem parte de nossa história. Perdoar não é esquecer. Perdoar é compreender e compreender não é concordar. Por isso a vitimização por si só também pode ser prejudicial. É preciso canalizar a energia para denunciarmos, procuramos justiça, buscar nossos direitos, dizer para pessoa o que quer dizer e superar. Você pode perdoar e não querer mais contato com a pessoa. Pode perdoar e dar uma segunda chance. Tudo é um tipo de processo do perdão”, completa Isabel.

Aos 34 anos, Carminha* passou por um trauma no final de seu namoro. Ela foi agredida pelo companheiro, que chegou a dopá-la para que ela não saísse  com as amigas. “Eu tive um namoro bem ruim. Demorou um tempo pra eu entender que, enquanto eu não perdoasse, não conseguiria me libertar da dor. Eu não entendia que perdoar não era apagar, voltar a conviver, voltar a dividir qualquer coisa. Era só deixar ir. Foi como tirar um peso das costas não  carregar mais o ódio e a vontade de vingança”, disse Carminha, que ainda tenta cicatrizar a raiva na terapia. 

Se o clima de fim de ano é propício para o perdão, imagine durante este momento delicado da pandemia. Queila Val precisou de 10 anos para perdoar a melhor amiga, Manuela. E vice-versa. Em 2011, em plena festa de fim de ano, ambas se desentenderam. Aí já sabe. Despejaram “verdades” engasgadas na garganta.  Foi uma verdadeira troca de farpas que resultou no fim do relacionamento. Bloqueio nas redes sociais, tudo. Os amigos em comum tentaram a reconciliação, sem sucesso. Este mês, uma amiga convidou ambas para seu aniversário. Curiosamente, no mesmo lugar que Queila brigou com sua ex-amiga. 

“Nós recebemos amigos com qualidade e com defeitos também. Ninguém é 100%. Refleti muito durante a pandemia. Perdi pessoas para a covid, vi como nossa vida é um sopro. No aniversário de Sabrina, nossa amiga, vi Manuela sentada, no mesmo lugar que brigamos.  Resolvi ir lá. Fiquei pensando: zorra, besteira, éramos tão felizes. Sentei ao lado dela, pedi perdão. Não importava mais quem magoou quem. Ficamos cinco minutos abraçadas e chorando. Isso fez um bem enorme. Olha, já estou chorando de novo…”, lembra Queila.  Após 10 anos brigadas, Queila e Manuela se perdoaram. Foram cinco minutos entre abraços e choros Espiritualidade  Seja de religião cristã, espírita ou de matrizes africanas, todos concordam: o perdão também é divino. Seja em livros ou histórias sagradas, o ato de perdoar está presente em cada passagem e nos mais diversos ensinamentos. No candomblé da nação Ketu, de origem Yorubá, foi graças ao perdão que o homem foi criado. Oxalá, com a incumbência de criar o mundo, se negou a fazer uma oferenda a Exú e acabou castigado com uma sede eterna. Tentando saciar a sede, se embriagou de óleo de palma e adormeceu. Quando acordou, o mundo já estava criado. O Deus supremo, Olodumaré, ficou irritado, mas amoleceu o coração quando Oxalá pediu perdão. Acabou ganhando outra missão: criar o homem. 

“Não podemos deixar de perdoar um filho. Perdoamos e levamos ele aos pés de Oxalá, o pai maior, para que ele seja perdoado diante do Pai.  Aqui, o papel do perdão é de Oxalá. Nós, como matéria, também precisamos perdoar, pois todos nós erramos”, disse Pai Ari de Ajagunã, babalorixá e  presidente da Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro. Na nação Angola, porém, não temos a figura do orixá como conhecemos. A energia divina se chama Nkisi. Ele também é perdão. "É importante entender que perdoar o outro não significa que tudo acabou. É tirar um peso da mágoa do seu coração, do ódio e da amargura, sentimentos que só nos fazem mal. O Nkisi sempre nos ensina isso, que não devemos guardar rancor. A ação do perdão começa em você e por você”, disse Mame’etu Cleide Michele, do terreiro Unzo N'ganga Kuatelesa Ninza. 

No espiritismo, o perdão também é possível no plano espiritual. A explicação é simples: o espírito é eterno. “Quando temos a consciência que somos espíritos, logo sabemos que somos imortais. Portanto, podemos perdoar aqueles que já se foram e vice-versa. O que passamos aqui é apenas mais uma experiência de outras vidas que já tivemos. E o perdão faz parte da evolução deste espírito”, disse Verônica Menezes, espírita do Centro Espírita Casa de Redenção Joanna de  Ângelis. Apesar de tudo, ter o perdão de alguém que se foi não é tarefa fácil. Para o fundador do espiritismo, Allan Kardec, perdoar também é mudar sua postura. "Aquele que pede a Deus o perdão de suas faltas não o obtém senão mudando de comportamento. As boas ações são a melhor prece, porquanto os atos valem mais do que as palavras".

No lado cristão, o perdão é uma forma de compaixão. Porém, é preciso ser uma via de mão dupla. Resumindo: é perdoando que se é perdoado. “Todos nós estávamos doentes pela falta de perdão. Deus, através de Seu Filho, nos perdoou e nos deu um novo coração. Quando esquecemos que fomos perdoados e não perdoamos nossos devedores,  somos maus diante de Deus. Perdão é mandar embora aquilo que machuca a nossa alma ou de outrem”, disse o padre Décio Pimentel, da Igreja Batista. 

 Aos católicos que se negam a perdoar, é bom ficar atento à principal oração da religião, que certamente você sabe de cabeça e reza sempre. "O Pai Nosso é categórico: ‘perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido’.  É importante oferecer o perdão.  Se a pessoa do outro lado não quiser o perdão ou não perdoar, já não é tarefa sua. Deus sabe que você fez sua parte”, disse o padre Valter Ruy, pároco da Paróquia Nossa Senhora de Fátima. 

“Existe uma duplicidade no perdão. Muita gente acha que o perdão só é benéfico apenas para quem perdoa.  Mas é importante também para quem recebe. O perdão é libertador. Quando alguém perdoa, dá oportunidade para seu próximo receber a graça”, assegura Ruy, que costuma colocar em prática a tentativa do perdão. Uma vez, quase no final de uma missa, ele resolveu perguntar quem na igreja desejava perdoar ou pedir  perdão. Sugeriu, então, uma ligação ou uma mensagem no  zap. 

 “De repente, vi pessoas saindo para atender telefonema, chorando, dizendo que conseguiram a reconciliação. Pegamos as pessoas desarmadas. Foi lindo aquele dia. Aproveitem esse clima de fim de ano, as pessoas estão reflexivas. A pandemia também fez muita gente repensar que precisamos praticar o perdão. Então, pratique”, completa.

*O nome foi trocado para preservar a identidade