Sobre mapas e rotas de fugas

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  • Kátia Borges

Publicado em 19 de setembro de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Aula de geografia. O professor vestia terno e camisa social. Enfiei na cabeça que ele se parecia com Elvis Presley apenas porque insistia em usar topete. Antes de começar a falar, sempre estendia um mapa na parede. Na lateral esquerda da sala, as janelas abertas davam para o pátio da escola. Uma árvore esparramava suas folhas para dentro, como se quisesse correr o mundo ali com a gente sem sair do lugar.

Numa tarde quente de outono, apareceu na sala muito triste. Deve ser saudade de Memphis ou de Priscilla Presley, pensei, sem suspeitar que nosso Elvis estava se despedindo. Faria uma cirurgia bastante complicada, explicou para a turma, voltaria se desse, talvez no ano seguinte. E ninguém ali ousou perguntar nada, porque a verdade é que não estávamos lá muito interessados na vida dele.

Tudo que importava era que enviassem logo um substituto, passar de ano, sair de férias. Aquele já nem era mais o nosso professor, oficialmente falando. Tanto que o mapa permaneceu guardado o tempo todo na embalagem plástica, continentes em suspenso. Mas ainda havia algo a dizer, e o que se seguiu, após o comunicado do afastamento, foi um silêncio sem precedentes na história do quinto ano.

De repente, o professor pigarreou e o som pareceu bem alto. Faria uma confidência que surpreenderia até a árvore do pátio, nossa colega, aluna-ouvinte. É que sonhara a vida toda em conhecer o mundo. De preferência, numa Harley-Davidson com os Hells Angels. Tão formal, nosso The Pelvis desejava na real ter tido uma vida easy rider, uma vida on the road, longe da rotina normalzinha de funcionário público.

Entre surpresos e impacientes, seguimos em silêncio, até que ele apanhasse suas coisas e deixasse a sala de aula. Terno, camisa social, topete, mapa. Diante de nossos olhos assombrados, plateia muda de meninos e meninas, incapazes de entender qualquer gesto que não fosse cartografado. Comentaríamos com desdém no intervalo, alguns ririam e diriam: “imagina, o professor numa Harley-Davidson!”.

Decidi ali o que não queria. Estender mapas do mundo, até que só restasse confessar frustrações a estranhos. Não tivemos notícias do professor de geografia. Ele não retornou no ano seguinte. O substituto veio, passamos de ano, saímos de férias. Gosto de imaginar que comprou uma moto e fez amizade com Arvid Olsen. Dizem até que ganhou um codinome na Route 66. Muito provavelmente, Elvis Presley.