Sonho no chão: empresa ignora liminar da Justiça e demole boxe comercial na Vila Dois de Julho

Seis boxes, ao todo, eram alvos da ação, mas defensor público apresenta tutela provisória

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  • Wendel de Novais

Publicado em 7 de outubro de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: (Foto: Arisson Marinho/CORREIO)

A autônoma Araci dos Reis, 29 anos, que batalhou para construir um boxe comercial, já em fase de acabamento, viu o investimento de três anos desmoronar em minutos. Isso porque, nessa terça-feira (6), na Vila Dois de Julho, a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) pôs no chão a estrutura, mesmo com uma liminar da Defensoria Pública do Estado (DPE), que concedeu a tutela provisória dos boxes aos possuidores, proibindo a demolição. 

O boxe de Araci - único demolido - seria o primeiro dos seis que teriam a estrutura derrubada pelos tratores contratados da Chesf. No terreno em que Araci se instalou, mais cinco pessoas levantaram boxes que também seriam alvos da ordem de derrubada caso o defensor público Adriano Pereira não fosse até o local para impedir que os funcionários continuassem com o processo. Boxe de Araci foi derrubado mesmo com liminar da Justiça proibindo demolição (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Abalada, Araci disse ao CORREIO que o boxe era um investimento de anos e que almejava ter nele uma fonte de renda fixa, com a comercialização de quentinhas. "Eu tô sem chão. Há três anos, venho colocando todas as economias na construção do boxe. São R$ 20 mil que eu tirei de bico pra poder ter o meu comércio. Um sonho que agora tá no meio daquele monte de terra e pedra. Era pra eu tirar meu sustento e das minhas meninas dali, mas aconteceu isso e acabaram com todo o meu esforço em minutos, como se não fosse nada. E eles não podiam fazer isso porque a Justiça deu esse documento pra gente que não deixava eles derrubarem", lamenta.

Com os tijolos, o cimento e os azulejos que formavam a estrutura do boxe montado pela autônoma, foram-se também materiais que ainda estavam no interior da propriedade e que não puderam ser retirados antes da demolição. "Tinha tanta coisa lá. Era chapa de hambúrguer, porta nova, uma bancada pra separar a cozinha das mesas e muito material de construção como piso, argamassa e outras coisas porque ainda não tinha acabado o boxe. Ele tava começando a tomar forma agora e eu já estava me planejando pra começar a vender minhas quentinhas", diz Araci. Como era o boxe (Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal) Como ficou após demolição (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Por quê A reportagem do CORREIO procurou a Chesf para entender o porquê da demolição e o motivo pelo qual os funcionários da companhia ignoraram a liminar e demoliram o boxe mesmo com o aviso da família de Araci. Mas até a publicação desta matéria, a companhia não havia retornado.

Edilene dos Reis, 35, irmã da autônoma e dona de um dos seis boxes que poderão ser demolidos pela Chesf, afirmou que, antes do início da demolição, alertou o funcionário que era responsável pela operação e que a ignorou quando ela mostrou o documento. "Na hora que ela mandou pra mim a liminar, eu peguei e fui correndo mostrar pra ele, que não quis saber de nada e continuou mandando derrubar, sendo que eu estava com o negócio na frente dele provando que a Justiça tinha dito que não podia fazer aquilo", relata. O responsável foi procurado pela reportagem, mas afirmou que não poderia falar e só a assessoria da companhia poderia comentar o caso.

Segundo Adriano Pereira, a empresa já tinha sido notificada e sabia que o processo de demolição não poderia acontecer. "Dois moradores, que são legítimos possuidores dos imóveis, nos procuram por conta da possível demolição da propriedade. A gente propôs uma ação de tutela provisória urgente para resguardar o direito dos possuidores de ter os imóveis avaliados para uma posterior ação de indenização. Por isso, a Chesf foi notificada da decisão para garantir os imóveis intactos", afirma. Adriano afirma que a DPE queria garantir os direitos dos possuidores (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Liminar Após a análise do caso, a Defensoria decidiu antecipar a tutela para evitar que a Chesf pudesse praticar qualquer medida de demolição dos imóveis situados ali até que fosse realizada a vistoria e se ter a ideia do valor de cada um deles em uma possível ação de indenização, ou posterior deliberação, sob pena de multa diária no valor de R$ 5 mil, no caso de descumprimento.  

Adriano explicou o motivo dos moradores serem legítimos possuidores dos imóveis, mesmo que estes tenham sido construídos em área invadida, e falou sobre a diferença entre possuidor e proprietário para o jurídico: "Eles são legítimos possuidores porque, apesar de não ter o título de registro do imóveis, eles os possuem e fazem uso deles. A diferença entre possuidor e proprietário é justamente essa. O proprietário possui a área e tem o título de registro que o assegura de gozar do imóvel, enquanto o possuidor não tem esse documento, mas também não deixa de ter direito a indenização nesse caso, por exemplo", diz. Liminar que impedia demolição foi assinada na segunda-feira, 5 (Foto: Reprodução) No Artigo 1.196 do Código Civil, define-se que pode ser considerado possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade. O que faz com que o ordenamento jurídico também tutele e proteja as relações possessórias. 

Medo Por estar em um terreno de invasão, os donos dos boxes já conviviam com um temor de ver o negócio que construíram sendo derrubado por conta da ausência de direitos de propriedade. Depois de hoje, quem ainda vê os boxes de pé, diz que não vai conseguir dormir direito com o medo de chegar pra trabalhar e a estrutura da construção estiver no chão.

No caso de Gleice Kelly de Arruda, 30, o medo foi tão grande que ela retirou quase tudo que ficava no boxe. “Eu tirei quase tudo que tinha aqui logo pra não passar por essa situação de perder tudo como Araci perdeu. Só deixei o freezer porque é mais díficil, mas vou tirar logo mais. A gente faz isso aqui pra conseguir trabalhar e parar de depender de bico. Eu tenho seis filhos pra cuidar. É do boxe que eu tiro o sustento deles. Agora, vai ficar difícil dormir tranquila. Só vou ficar pensando que vão demolir e vamos perder todo dinheiro que gastamos aqui”, conta Gleice, que junto com o marido gastou R$ 5 mil na construção do boxe. Gleice teme perder boxe do dia para a noite (Foto: Wendel de Novais/CORREIO) Edilene, que tentou impedir a demolição do boxe da irmã, disse que, assim como Araci fez, vai procurar a Justiça e solicitar uma liminar válida. “Eu vou correndo na defensoria porque a liminar foi para eles. Não sei se vale pra gente também. Então, tenho que tentar alguma coisa pra não ficar no prejuízo”, declara. 

*Sob orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro