Status da cozinheira: Exausta

Até que aos 50 entendi que amor até havia, o que não mais havia era corpo. Não para a cozinha

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  • Da Redação

Publicado em 16 de janeiro de 2022 às 07:00

- Atualizado há um ano

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Eu nem escolhi ser cozinheira. Não nutri sonhos, não risquei planos no sulfite, nada. Quando dei por mim já era. 

Eu curtia o universo, claro. Os vapores, mistérios, e sempre percebi os efeitos da boa comida cozinhada pelas mulheres da minha família sobre as pessoas. Havia um poder ali de arrancar suspiros, minimizar dissabores, levantar o moral; havia até um poder de cura. E talvez tenha sido a expectativa de assumir esse lugar de poder (e sobretudo atenção) dentro do meu pequeno núcleo familiar que tenha de fato me seduzido.

Daí eu aproveitei a necessidade que tivemos quando não pudemos mais bancar a saudosa Dona Tereza, que também passava as nossas roupas à ferro de carvão, para assumir a nossa cozinha. Cheguei com uma trouxinha onde trazia a experiência das feiras livres com painho e tudo o que já houvera pescado das panelas de minha avó, mãe e uma tia que mandava bem demais. E já naquela pequena lida de quem começa a trabalhar aos 12 anos na cozinha, percebi que tinha bastante aptidão.

De lá para cá, nem sei se conseguiria arrumar os fatos numa sequência cronológica minimamente razoável, porque as minhas memórias não estão assim dispostas, apesar das muitas tentativas práticas e vãs de organizá-las em pastas com etiquetas. E depois, muita coisa foi deletada do meu agadê interno por falta de espaço ou apreço mesmo. Quando preciso resgatar alguma coisa que me trava a vida, eu malho na terapia, marco uma sessão de hipnose, ou suponho uma situação só para me libertar.

Cozinhei a vida inteira. O meu corpo começou a sentir o impacto da cozinha aos 12, mas ele esperou até os 50 para me dizer que não aguentava mais.

Mas voltando à pré-adolescência, segui a vida na busca da tampa do oco, experimentando um milhão de coisas, quase todas descambadas para arte, e cozinhando sempre em paralelo, por prazer e necessidade; e apesar de ouvir o tempo inteiro que a minha comida e o meu jeito de servir eram especiais, nunca havia me ocorrido como profissão. (Foto: Katia Najara/Divulgação) Mas aos 30 anos já tinha tanto repertório na cozinha que eu precisava escoar de mim. Foi quando surgiram os blogs. Não sei quem leu Julie e Julia, mas quando uma primeira leitora apareceu eu tomei um choque. Porque na minha cabeça o blog era um diário virtual, não era para ser lido e eu nem fazia idéia de que tinha aquela coisa de configurar perfil aberto ou fechado. O primeiro comentário foi gostoso e fui deixando. E foi neste blog que começava a inflamar que fiz uma amiga-irmã virtual, e juntas partimos para um novo endereço. Eu não sabia, mas a minha carreira de cozinheira profissional começava ali, criando ao nosso redor uma rede de mulheres loucas por cozinha e pelo nosso jeitão de escrever e apresentar os nossos pratos do dia-a-dia. Não demorou para que em paralelo eu começasse a receber convites para cozinhar em pequenos eventos. E com a minha experiência pessoal, meu otimismo e fogo sagitariano, não poderia dar errado. Larguei trabalho certo com salário bonitinho e fui fuçando esse novo chamado com o focinho da intuição.

O blog cresceu, virou febre, virou livro premiado e esgotado, viramos celebridades virtuais e quase programa de tevê, até que as polêmicas e tensões que chegam junto com tudo isso nos fizeram colocar um fim ao projeto, e à partir dali seguimos cada uma com o seu próprio blog.

O meu passou a ser uma vitrine do trabalho solo, agora já bem sedimentado. Como empreendedora criativa e cozinheira livre no meu Pitéu, fiz coisa que até eu mesma duvido, tudo ancorado no meu corpo físico: festas para centenas de pessoas incluindo ambientação (aproveitando a minha formação como Designer de Interiores pela UFBA) e buffet; aulas para crianças e adultos, inclusive fora do país, e também para grupos de outros países aqui; palestras para estudantes universitários e aspirantes; colunas para jornais; especializações técnicas com barriga de 5 meses de gravidez; ora jurada de festivais ora contratada para produzi-los; casamento, festa infantil, batizado; temporadas como chef de cozinha para ingleses em Maraú; montagem de restaurantes e refeitórios Pitéu ambulantes e temporários para festivais de arte e cultura; curadorias, produção de mais de 100kg de comida para feiras de gastronomia; criação de cardápios executados ao vivo em espetáculos teatrais; chef em casa, consultorias para bares e restaurantes; pós-graduação online, treinamento de colaboradoras domésticas em domicílio; ceias de Natal por encomenda; almoços e jantares para grupos em minha própria casa; gravação de websérie e alguns jobs para marcas decentes em audiovisual; criação e produção de uma linha de congelados personalizada; aulas e consultoria em formato online; e com certeza um monte de coisa das quais não me lembro. Tudo ancorado no corpo físico.

Até que aos 50 entendi que amor até havia, o que não mais havia era corpo. Não para a cozinha. Não fosse o vôlei da meninice, a memória e a consciência corporal de atleta, as práticas de pilates, ioga, um pouco de hidroginástica aqui e dança ali, os danos às escápulas e ao sistema de sustentação do meu corpo (lombar, sacro, fáscia lata) - que se acostumou a jornadas de até 18 horas trabalhando pesado de pé - poderiam ter sido irreversíveis.

Sigo grata à minha riquíssima trajetória e a toda gente que fez parte dela e ocupa espaço em mim. Escolhi ficar no meu lugar da escrita, usando a minha bagagem para ajudar outras pessoas a se comunicar. Ainda cozinho, mas para muito poucos e cada vez melhor, naturalmente; também para projetos escolhidos a dedo mediante autorização prévia da minha lombar. Só que agora sem o compromisso de publicizar tudo para vender o meu peixe. Até porque o peixe mais gostoso que eu já comi na vida foi o tambaqui moquiado só no sal, limão e bunda de saúva no breu e solidão da floresta.

Duvido que a menina de 12 anos tenha conseguido a atenção da qual precisava quando assumiu a cozinha, mas a mulher de 50 agora só precisa da atenção de si mesma.

*Kátia Najara é cozinheira e  empreendedora criativa do @piteu_cozinhafetiva