'Suicídio na universidade é um recado de que algo ali falhou', diz doutor em Psicologia

Professor Leonardo Barros fala sobre pressão na vida acadêmica e defende mudança de cultura no ensino superior

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  • Thais Borges

Publicado em 17 de julho de 2022 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Acervo Pessoal

Cobranças em excesso, pressão constante, competitividade, sobrecarga na vida acadêmica. Esses são só alguns dos aspectos que podem servir de gatilho para afetar a saúde mental de estudantes de graduação e pós-graduação. Na pandemia, ficou ainda mais intenso. “É a universidade que causa o adoecimento? Não apenas. Tem outros fatores sociais, culturais, genéticos. Mas há algo nesse ambiente que é um problema”, diz o psicólogo Leonardo de Oliveira Barros, doutor em Psicologia e professor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Um dos autores de uma pesquisa sobre a sintomatologia depressiva em estudantes brasileiros de pós-graduação, publicada no ano passado, Barros defende uma mudança de cultura nas universidades. 

Nos últimos dias, o debate sobre saúde mental na academia ganhou mais força após a notícia do suicídio de um estudante que tinha acabado de apresentar seu Trabalho de Conclusão de Curso, em uma faculdade privada de Salvador. "Já passou do tempo de se estabelecer relações horizontais entre as pessoas, acabar essa divisão entre professor e aluno e começar a construir coletivamente", acrescenta o professor. 

Em uma conversa com o CORREIO, Barros falou sobre situações de estresse para estudantes, capacitação para professores e aumento de evasão escolar na pandemia. 

Confira a entrevista na íntegra

Tivemos um aumento dos diagnósticos de transtornos psiquiátricos na pandemia. Como isso se refletiu na universidade e na rotina de estudantes de graduação e pós-graduação? 

O que a gente começou a perceber desde o início da pandemia é que as questões de saúde mental se intensificaram na sala de aula. É comum, ao longo do semestre, algum nível de esgotamento mental, mas com a chegada da pandemia, isso aumentou bastante. 

Foi tanto pela questão do isolamento social como a crise financeira, conciliar trabalho e estudo. Além disso, do ponto de vista mais pedagógico a necessidade de adaptar tudo muito rápido para um formato de ensino remoto. E, com a pandemia crescendo no Brasil, o luto chegou dentro da sala de aula. Passamos por situações de alunos que perderam familiares, perderam os pais. Isso tem impacto. Alguns tiveram dificuldade de conseguir acompanhar as atividades por efeitos financeiros e a própria questão da dificuldade de tecnologia. 

Isso fez com que a gente precisasse de um ritmo mais tranquilo de trabalho. Na pós, precisamos de prazos maiores para executar as pesquisas, por exemplo. Mas independente do nível, foi muito presente a frustração de expectativas. Cada um tinha seu planejamento para um ritmo de curso e isso se tornou mais um elemento fonte de estresse.

Em geral, que tipo de transtornos mentais são mais comuns em estudantes universitários? Há gatilhos mais frequentes que podem provocar esses quadros? 

A gente tem quadros mais comuns de transtornos mentais, como a grande prevalência de transtornos de ansiedade e depressão no contexto universitário. Aliado a isso, tem uma grande vivência de estresse. 

Viver um episódio isolado como uma tristeza, uma ansiedade por um trabalho ou outro não é o quadro, mas quando tem padrão recorrente sistemático, podemos pensar no surgimento de um transtorno. Tem variáveis de risco que deixam a pessoa mais vulnerável para lidar com uma situação estressora. Um exemplo é um aluno que muda de cidade para cursar uma graduação ou uma pós. As questões financeiras também são gatilhos. Hoje a gente tem visto aqui, a partir de pandemia, a insegurança alimentar voltando à universidade.Pressão em excesso, grandes cobranças, relações complicadas com orientadores, a competitividade no ambiente acadêmico, sobrecarga, dificuldade em conseguir fazer novos amigos são alguns exemplos de situações que podem deixar esse estudante mais vulnerável. 

No estudo desenvolvido por vocês, que descobertas o senhor destacaria? 

O que a gente percebeu é que mulheres eram mais suscetíveis, o que é um padrão recorrente na sociedade, e pessoas mais jovens, que estão no mestrado. Nossas hipóteses para isso é que essa mudança de sistema de sair da graduação para a pós demanda que o aluno se organize para estudar de uma forma diferente.

O mestrado pode ser um momento de muito estresse para esse aluno. E um dado muito importante é que o Brasil se assemelhou às estatísticas internacionais de que o estudante de pós tem até seis vezes mais chance de ter mais depressão do que alguém que não está no ambiente acadêmico. 

É a universidade que causa o adoecimento? Não apenas. Tem outros fatores sociais, culturais, genéticos. Mas há algo nesse ambiente que é um problema.

Como a universidade pode identificar esses problemas nos estudantes, de forma geral? Que tipo de medidas as instituições podem/devem promover? 

Em um primeiro nível, é preciso haver uma mudança de cultura nas universidades. Já passou do tempo de se estabelecer relações horizontais entre as pessoas, acabar essa divisão entre professor e aluno e começar a construir coletivamente.

Mas tem outros aspectos que as universidades poderiam investir, como bons serviços de apoio pedagógico e sociológico também, além de políticas mais efetivas de auxílio e permanência desse estudante na universidade. 

E capacitação, treinamento para os professores, para ter de fato situações mais positivas. Os professores acabam esquecendo de conversar sobre a importância da adaptação, sobre ver a dificuldade real daquela turma, naquele contexto. 

E existem algumas práticas de sucesso em alguns lugares que é ter professores tutores, uma figura de referência que conseguiria fazer a identificação de algum problema e um encaminhamento para esse estudante buscar um serviço mais especializado ao longo do curso.A questão do diagnóstico não cabe ao professor, então precisa ter condições institucionais para que essas práticas mais positivas e promotoras de saúde mental surjam e se mantenham, que não sejam práticas isoladas de uma universidade ou outra. Situações de conclusão de curso, sejam na graduação ou em bancas de defesa de dissertação ou tese, costumam envolver muita ansiedade e estresse. Em diferentes instituições, em outros contextos, há relatos de casos de suicídio. Como isso pode ser interpretado? 

Quando a gente vê um fenômeno assim acontecendo, está dizendo que algo falhou no sistema. Campanhas de valorização da vida não podem ser individuais. Se está acontecendo na universidade, é um recado de algo ali dentro está falhando. 

A gente tem alguns cursos que são mais associados. Cursos de saúde, por exemplo, sabemos que têm prevalência maior de transtorno mental e vem a questão do suicídio também. 

A gente não tem hoje, na literatura, dados quanto à prevalência de suicídio em outras áreas, mas esses cursos que têm caráter mais integral, com formação mais longa, muitas vezes têm uma pressão mais alta ao longo da formação para uma série de habilidades. Muitos vão exigir que o aluno responda de forma mais adaptativa e nem todo mundo tem recurso pra conseguir lidar com esses estressores.

Quais são as recomendações para os estudantes que estão nesse período do curso?

Nesse final do curso, o primeiro passo é desconstruir a ideia de que o trabalho de conclusão precisa ser o trabalho da nossa vida ou que vai definir a gente eternamente. Cada um desses trabalhos está contando uma pequena parte da nossa história e a gente tem muitas outras que às vezes são muito mais importantes que aquilo.

Não significa que vou levar aquilo para a vida inteira. Você pode mudar de área e lá na frente aquilo pode não fazer nenhum sentido. Começar a desconstruir a centralidade. 

Do ponto de vista operacional, tem algumas dicas importantes, como ter um bom planejamento para a execução desse trabalho, evitar o comportamento de procrastinação e  ter pequenas metas para a execução. Isso vai me ajudar a trabalhar de uma maneira mais fluida para que não me desgaste tanto. Pode contar com o orientador, com colegas. São meios que acabam tornando esse processo muito mais tranquilo.

Desenvolver pesquisas durante a pandemia se tornou um desafio para muitos pós-graduandos, por fatores que vão desde o isolamento social até a falta de bolsas que permitem dedicação exclusiva. O senhor tem relatos de aumento de estudantes que têm abandonado os cursos (ou pedido prorrogação ou reingresso, etc)? Aumentou e aumentou bastante, tanto a nível local quanto nacional. Se a gente parar para pensar, a pós-graduação hoje se tornou um ambiente muito difícil de permanecer. A gente tem passado por cortes e mais cortes no fomento à pesquisa, o valor da bolsa está defasado há nove anos, tem a fuga de cérebros e pessoas indo para o exterior ou para outras áreas e, na pandemia, a gente tem visto isso aumentando. Teve aumento de pedidos de prorrogação da defesa, de trancamento de disciplina. A Capes aumentou em um ano o prazo dos alunos, mas não foi suficiente. Na área de Ciências Humanas, muitas pesquisas foram inviabilizadas porque os alunos fazem pesquisa com pessoas e não podiam ir a campo. 

E na graduação, de alguma forma houve um aumento de evasão? 

Na graduação, tem o aumento da evasão de uma forma muito maior. Na rede privada, em 2020 e 2021, foram os anos de maior evasão. Na universidade pública, teve redução de 20% de concluintes e quase 6% de novas matrículas. Ou seja, os alunos não estão saindo e estão entrando menos na universidade. A desigualdade vai aumentar porque a escolaridade  e renda andam juntos no Brasil, e também o próprio desenvolvimento pessoal. 

Que sinais os professores que lidam diretamente com os alunos podem identificar, em caso de adoecimento por conta dos trabalhos acadêmicos? É preciso fazer algum treinamento com professores para trabalhar com esses estudantes ou vai depender de cada caso? 

No dia a dia da sala de aula, não tem espaço para fazer essa leitura tão rápido, mas numa situação de orientação, de trabalhos estruturais numa disciplina tem condições. Tem dois comportamentos bem característicos para acender o alerta. 

Um é o aluno com alta participação e engajamento que passa a ter postura de desmotivação com o trabalho e outro comportamento mais explícito é o que demonstra muita ansiedade com a elaboração do trabalho. Um aluno que não consegue dormir, com postagens constantes em redes sociais ou mensagens de Whatsapp são comportamentos que merecem atenção. Pode ter uma conversa mais próxima, ver como esse aluno está recebendo essas informações e acionar a rede de apoio, seja na instituição ou fora dela.

Do ponto de vista do treinamento, acho que seriam dois. Um seria uma coisa mais básica de lidar com essas questões de emoções de saúde mental, mas uma outra é como a gente pode desenvolver boa possibilidade de orientação, lidar com a possibilidade do aluno. Cada um vai ter um ritmo, então criar expectativas realistas para cada aluno, entender que não tem só a minha matéria no curso. Tem outras, então não vou sobrecarregar meu aluno de tarefas.

Também capacitar no sentido educativo: ‘olha, o SUS funciona assim, a gente tem saúde mental em tal lugar’, para que a gente reproduza e passe para frente a informação. A gente pode e precisa naturalizar esse debate nesses espaços, principalmente na universidade.

Muitas vezes, os estudantes desenvolvem uma relação mais próxima com o orientador de trabalhos finais. Como pode ser essa relação, de forma a evitar o adoecimento para ambas as partes?  Em outro estudo, que fizemos em 2018, um dado que a gente encontrou é que o grau de satisfação na relação estabelecida com o orientador poderia atuar tanto como fator protetivo quanto adoecedor. Essa relação com o orientador é muito importante para a saúde mental do aluno que está desenvolvendo o trabalho. Precisaria ter um bom alinhamento e colocar algum limite nesse trabalho, lembrar que cada aluno tem seu nível de formação, que estão em níveis diferentes, adequar metodologias de trabalho de acordo com o perfil e implicar no processo de construção de conhecimento. Esperar que meu aluno seja autônomo na busca por formação não pode ser entendido como que ele seja solitário.  

Do ponto de vista do orientando, é importante que ele entenda que orientador é diferente do professor de outras disciplinas. Mas o orientador não vai fazer o trabalho por ele. Esse suporte também não pode ser entendido como uma situação de dependência. É possível construir um vínculo saudável, valorizar muito uma ação cooperativa e mais próxima, cada um desempenhando seu papel e, dependendo do perfil de cada um, é possível que se torne até uma amizade.