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Da Redação
Publicado em 10 de outubro de 2022 às 05:35
Os atabaques dão as boas-vindas aos filhos e amigos que chegam vestidos de branco. É dia de celebração na Casa do Senhor e Rei das Alturas, Oxalá. Neste sábado (08), o Terreiro Ilê Oba L’okê, em Lauro de Freitas, reabriu suas portas ao público e retomou as festividades com a Festa do Pilão, em respeito à Oxoguiã, orixá do futuro, da continuidade e do que está por vir.>
Reconhecido como Patrimônio Histórico e Cultural de Origem Africana e Afro-Brasileira, o Terreiro Ilê Oba L’okê, liderado pelo professor e babalorixá Vilson Caetano, recebeu mais de 300 pessoas na principal festa da casa. “As restrições que tivemos por conta da covid impactaram muito a dinâmica das comunidades tradicionais, um lugar que circula muita gente e sempre teve as portas abertas. Fechar foi muito complicado. Retomar agora é um momento de grande alegria”, afirmou o babalorixá. >
Guerreiro valente, Oxoguiã tinha paixão por inhame pilado, comida que na cultura iorubá é chamada de iyan. “Na Festa do Pilão rememoramos a criação do mundo a partir do inhame, que para nós é o corpo ancestral de Oxalá. Inhame é força, é continuidade. Essa festa é o cumprimento de uma promessa que o povo de Ejigbò fez em troca de paz, alegria, saúde e felicidade”, completou. >
O primeiro momento da festa começa com um cortejo com os filhos e filhas da casa trazendo as bandejas de inhame e os atorís, varas que fazem parte do ritual da batalha de Atorís, onde os filhos de santo tocam o ombro do outro, relembrando a guerra em Ejigbò. Ainda no ritual, uma outra pessoa leva um banquinho envolto em um tecido branco, assim como o aloá, uma bebida feita à base de gengibre. A iyaegbé, mãe da sociedade [conselheira e responsável pela organização dos eventos da casa] e o babalorixá, carregam o pilão que é o símbolo principal. >
Na cerimônia, o corpo ancestral representado pelo inhame é dividido com todas as pessoas presentes, como explica o artista plástico e axogum, sacerdote responsável pelos sacrifícios da casa, Rodrigo Siqueira: “Esse corpo é compartilhado para que as pessoas tenham um bom ano, prosperidade, não fiquem doentes e se fortaleçam contra as mazelas do mundo”. Iyaegbé da casa recebeu os participantes da cerimônia Foto: Ismael Silva/Terreiro ObaL'Oke Ainda segundo o axogum, a comunidade não perdeu ninguém na pandemia. “Tudo isso muito por conta desse iyan que nos fortalece. Estar aqui hoje é um momento de ancestralidade em que cada vez mais dividimos o nosso axé para que todas as pessoas que pertencem a casa, seus filhos e amigos possam continuar a vencer”. >
A casa já existe há 15 anos e cada ano uma festa é maior que a outra, como complementa Siqueira. “Na verdade, nós, homens e mulheres de axé, acreditamos que o orixá sempre permite que a gente tenha o caminho, por mais que as dificuldades existam, a gente sempre consegue e a cada festa a expectativa é de casa cheia”, ressaltou Siqueira. >
Reinvenção do terreiro Um dos maiores desafios para o terreiro, que precisou se manter fechado por tanto tempo, foi se reinventar, pontua o babalorixá Vilson Caetano. Durante esse período, a casa criou campanhas sobre intolerância religiosa ao culto do Sabejé, promoveu cursos profissionalizantes gratuitos e lançou o seu Museu Virtual 360º, com acervos sacros africanos. A curadoria é do artista plástico e axogun Rodrigo Siqueira. “Tudo isso foi feito para manter a nossa relação com as pessoas. O museu é, inclusive, a primeira comunidade com visita virtual”, destacou Vilson Caetano.Outra iniciativa foi a criação do Projeto do Restaurante Sazonal Gastronômico De Comer com os Orixás, que após a sua primeira edição no último mês, com o Comendo com Exú, deve fazer uma nova adição até o final do ano, dessa vez, Comendo com Ogum. >
Filha da casa, Ronilda Gomes disse que sentimento de recomeço não podia ser outro a não ser o de gratidão ao rever a casa cheia."Sinto uma imensa alegria pela retomada das festas abertas, especialmente por perceber que as pessoas se sentem felizes e essa demonstração se deu pela quantidade de gente que, assim como nós da comunidade, ansiavam por isso. Apesar das muitas perdas que ocorreram com a pandemia, nós estamos vivos e com saúde, com a graça de Deus e dos Orixás".Também filha da casa, Gabriele Nascimento disse que voltar a compartilhar a celebração ao orixá é emocionante. "A preciosidade que temos, que é celebrar o orixá é muito emocionante. Depois da pandemia então se tornou mais ainda. Poder olhar pra trás e ver todo o caos que o mundo viveu e entender que estamos aqui novamente é o suficiente para agradecer e muito".>
Para ela, é um prazer dividir o carinho e a educação de axé com todos. "Essas experiências que nos enche de alegria e de ainda mais vontade para continuar. A gente fica ansiosa, quer deixar tudo ainda mais alinhado, nos preparamos para poder ver a emoção nos olhos delas celebrando os orixás", completa.>
Processo de retomada é gradativo>
Cada comunidade tem seu próprio calendário, correspondente ao ciclo religioso. Dentro do cronograma já previsto, os festejos no Terreiro Pilão de Prata, por exemplo, serão iniciados apenas em janeiro. As demais práticas, no entanto, nunca chegaram a ser paralisadas. “Com todos os cuidados, com todas as cautelas, a vida continuou [durante a pandemia]. Sem festa, mas as obrigações não pararam”, conta o babalorixá Air José Bangbosë.>
Segundo o presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro Ameríndia (AFA), Leonel Monteiro, de modo geral, o processo de retomada está sendo gradativo, conforme o avanço do controle sobre o cenário pandêmico. Começou com as atividades mais internas, como reuniões, até chegar à abertura dos espaços para o grande público.>
Leonel afirma, inclusive, que os cuidados por parte dos membros de religiões de matriz afro-indígena fizeram com que o número de mortes por covid-19 fosse quase nulo. “Que a gente tenha conhecimento, foram uma ou duas. Isso foi muito do resultado da conscientização, do respeito ao que nossas divindades orientaram e, também, às orientações da Organização Mundial da Saúde”, diz.>
No entanto, atravessar um momento como o da pandemia não foi fácil. Apesar de todos os templos religiosos terem sido impactados negativamente pelo isolamento social, a restrição imposta aos cultos de candomblé acabou sendo maior, já que não foi possível realizá-los de forma remota, por videoconferência. Isso se deve ao fato de o contato físico entre seus praticantes ser parte essencial da religião.>
Daí a importância de estarem reunidos novamente e celebrarem esse retorno. “Nós somos uma religião de contato, em que as pessoas se abraçam, as divindades incorporadas nos abraçam e as pessoas também, em comunhão, se alimentam”, explica Leonel Monteiro. “Tudo é feito na coletividade: desde o processo de iniciação até os rituais fúnebres”, acrescenta o presidente da AFA. >