Toda mágoa cria um software na memória

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  • Kátia Borges

Publicado em 10 de agosto de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Virou personagem. Era assim que dizia e ai de quem fosse. Bastava uma mágoa, um grito, uma pisada nos pés. Sacava o bloco de anotações e registrava ali mesmo, diante da vítima, coisa que não mostrava. O incauto a esticar o olho à cata de uma palavra que fosse pista de tanta infâmia. Implorar não adiantava. O que fez pagará na letra. Pior que queimar numa fogueira. Bem pior. A danação eterna.

Foi assim com a colega de colégio. Nome e feiura imortalizados. Caso ainda estivesse viva, claro. Dela, não sabia há tantos anos que bem poderia já estar no reino dos pés juntos que não faria falta. Tomara que leia, soprava ao vento, soltando fogo pelas ventas. A cretina cruel, tanto quanto se pode ser na adolescência, a nauseabunda. Perdão cabe a Deus, argumentava, justificando a própria fraqueza.

Nem admitia o ódio, mas um desprezo profundo por ela, a minúscula. Poderia elencar, numa enorme lista, todas as características físicas que a faziam medonha. Preferia apenas uma palavrinha sem sossego e que ricocheteia: nauseabunda. Resumia bem o sentimento que guardava desde o colégio. Pronunciava com gosto, recordando aquele rosto que se parecia com uma tábua. Dois olhos, uma boca.

Por onde andaria hoje aquela coisa? Talvez tenha sido atropelada pelo trem, quando atravessava os trilhos para ir destilar seu veneno na casa da vizinha. Quem sabe, tenha sido levada por uma onda. Nada. É certo que esteja bem, que tenha até filhos e netos, perpetuando uma triste espécie de gente sem caráter e prenhe de preconceito. A vida tem dessas coisas, às vezes, contempla as peçonhas.

Bem que poderia relegar toda maldade ao esquecimento. Mas lembrava até o primeiro namorado do jardim de infância. Tão inteligente aos 6 anos. Era tudo. Sentia pena dos que se resumiam a quase nada em seus cadernos, alguns não resistiam à passagem do tempo. Os vilões entendem a alquimia da lembrança e se perpetuam. A colega de colégio seguiria, portanto, reinstalando seu reino como se fosse um software na memória. Atualizações realizadas com sucesso, criara um personagem.

A protagonista do romance, adolescente feia e pérfida. Daria a ela os holofotes e as peripécias, ali estava. Se não fosse tão vazio, e profundo poço, o amargo ressentimento, estaria plena. Odeio com todas as forças, gritaria ao mundo da sua janela. E então, em ondas sonoras, talvez o seu ódio chegasse até ela. Mas a verdade é que a colega de colégio pode até ter virado um ser humano, nunca se sabe.