'Todo alcoólatra se faz de vítima', diz Ruy Castro

Em novo livro, autor traça biografia do Rio dos anos 20, metrópole em ebulição onde personagens até então desconhecidos davam os primeiros passos

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  • Fernanda Santana

Publicado em 15 de março de 2020 às 05:50

- Atualizado há um ano

Todos os dias, Ruy Castro desperta por volta das 7h, segue para um passeio com a esposa e também escritora Heloísa Seixas de Ipanema ao Arpoador, no Rio de Janeiro, e só então retorna para casa. Trabalha sem hora para parar. O resultado são os 19 livros que já escreveu – entre eles, a biografia de Garrincha, Carmen Miranda e a Bossa-Nova –e as quatro colunas semanais. “Tudo é notícia hoje. Nada fica escondido, até o que não tem interesse”, avalia.

O escritor biografou desde Garrincha e Carmen Miranda à Bossa Nova. No livro mais recente, Metrópole à Beira-Mar (Cia das Letras|R$ 79), Ruy Castro traça um perfil do Rio de Janeiro dos anos 20, uma cidade em ebulição onde tudo parecia acontecer. “Os livros brasileiros não são caros. O problema é que as pessoas que acham caro um livro de R$ 69, que poderia te alimentar por anos, não se importam de comer mal num restaurante por R$ 150 e ainda ter dor de barriga por causa da comida”, opinou Ruy, em entrevista ao CORREIO, por e-mail.  

Jornalista desde os 19 anos, quando começou no Correio da Manhã, Ruy Castro fala, sem censura, sobre personagens e fatos que descreve. Em Metrópole à Beira-Mar, por exemplo, propõe uma nova leitura de Lima Barreto: escritor genial, sim, mas também homofóbico, xenófobo e alcóolatra, na visão do escritor.“Todo alcoólatra se faz de vítima, a culpa é sempre dos outros. Mas isso não foi algo exclusivo dele. Acontece que, como também sou alcoólatra [não bebo há 32 anos], conheço o mecanismo da doença e pude entender o comportamento de Lima”, disse.Na entrevista abaixo, Ruy Castro fala sobre seu interesse nunca saudosista no passado, compulsão por álcool, jornalismo, internet, literatura e o Brasil atual. “O Brasil tem uma excepcional tendência a ser governado por cretinos ou incompetentes”, avaliou, sem autocensura. 

No livro “Metrópole à beira-mar” você retrata uma cidade – e um país, de certa forma - em completa ebulição e mostra momentos de plena liberdade. Desde então, você acha que evoluímos ou regredimos mais? 

Nenhuma cidade de hoje é como era há 100 anos --- nem Rio, Nova York, Paris, Tóquio, nem Salvador. Evoluímos em comunicação, transportes, saúde, mas as cidades cresceram tanto que esse progresso nunca será suficiente. Aquele era o mundo da palavra, daí o Rio ter em 1920 um mínimo de 15 jornais diários! Nenhuma cidade no mundo tem mais isso. 

Falando em evolução e regressão, sua experiência como escritor sempre foi com o passado. O passado é mais interessante que o presente para você? 

Desde criança me interesso pelo passado. Cresci cercado de gente muito mais velha do que eu, me abastecendo o tempo todo de informação. Além disso, gosto de aprender. Não tenho nenhuma saudade do passado, mesmo porque não vivi nele. E o passado que vivi foi tão bem vivido que não preciso ficar suspirando por ele --- em 1968, por exemplo, eu tinha 20 anos, era repórter do “Correio da Manhã” [o jornal mais quente do país], estudava na Faculdade Nacional do Filosofia [que era de onde saíam as passeatas], morava no Solar da Fossa [na mesma época que Caetano, Gal, Rogério Duarte e outros] e pertencia à Geração Paissandu, que era o cinema onde o Glauber Rocha pontificava nas sessões de sexta-feira á meia-noite.

Foi também o começo da pílula, das meninas avançadas e da revolução sexual. Pois nem disso preciso sentir saudade. Como dizia o Ivan Lessa, a cada 15 anos o Brasil esquece tudo que aconteceu nos últimos 15 anos. Pois minha função é lutar para que elas não sejam esquecidas. Além disso, como jornalista que nunca deixei de ser, estou sempre cercado pelo presente. 

Quem você mais gostou de biografar ou que história mais gostou de contar e por quê?

Todos os livros que fiz até hoje trataram de pessoas ou épocas que me apaixonaram --- e continuam apaixonando. O fato de um livro ficar pronto e sair não significa que eu me desinteresse pelo assunto que tratei nele --- ao contrário. Neste momento, por exemplo, continuo mergulhado no Rio dos anos 20 e comprando livros de literatura brasileira daquele tempo em primeiras edições --- quem tiver alguma, por favor me fale. Escritor tem mais 11 estantes de livro e cinco mil DVS's (Foto: Divulgação/Companhia das Letras)  E, no processo de pesquisar e escrever a biografia, você já se desapaixonou por algum personagem? 

Não. Se isso tivesse acontecido, eu o abandonaria imediatamente.

 Ainda sobre “Metrópole à beira-mar”, você propõe uma leitura diferente de Lima Barreto - como homofóbico e xenófobo, por exemplo - que muitas vezes teria se feito de vítima das circunstâncias. Existe vitimismo? 

Todo alcoólatra se faz de vítima, a culpa é sempre dos outros. Mas isso não foi algo exclusivo dele. Acontece que,  como também sou alcoólatra [não bebo há 32 anos], conheço o mecanismo da doença e pude entender o comportamento de Lima. Ele era um gênio da literatura, mas, como muita gente, tinha características que hoje são vistas como defeitos.

Vi uma entrevista sua falando sobre o vício em drogas de outros grandes gênios, como Chat Baker, na música. Por que você acha que a história da arte está tão ligada com as compulsões? 

Porque os artistas são mais visíveis. Mas a dependência química atinge toda espécie de gente. Os padres, por exemplo, são sujeitos ao alcoolismo, por causa do vinho da missa. Os anestesistas, ao uso da morfina, porque eles têm acesso a ela. Os médicos, ao dos remédios de tarja preta. Há uma aura de “rebeldia” em torno de jazzistas como Chet Baker, Miles Davis, Charlie Parker, Billie Holiday, mas eles não tinham nada de rebeldes --- Miles Davis, por exemplo, que é visto como um símbolo da luta negra, gostava de carros ingleses, camisas italianas e mulheres franceses. Eles eram apenas dependentes químicos e sofreram com isso. 

Se essas pessoas tivessem usado menos drogas, teriam sido mais geniais?  Não há a menor dúvida. Sem a droga, todos teriam sido muito mais produtivos, donde ainda maiores.  Bom, você já conversou abertamente sobre sua experiência pessoal com o vício no álcool. O alcoolismo te servia no processo de criação? 

Não. Durante os primeiros 15 anos não alterou em nada. Nos últimos cinco, fez com que eu me tornasse irresponsável no trabalho e incoerente ao escrever.

Muito se tem discutido sobre a política antidrogas. O que você pensa dessa política? Existe maneira correta de tratar um viciado, seja por drogas lícitas ou ilícitas?

Não se deve usar a palavra “viciado” --- ela tem uma conotação moral, como se o usuário fosse um sem-vergonha. Em muitos casos, ele é só uma pessoa doente. O Brasil está atrasado 100 anos em prevenção, tratamento e compreensão do problema. Nos casos agudos, o único tratamento é a internação, mas, no Brasil, ela ainda é vista como uma coisa vergonhosa. Ou seja, as pessoas não têm vergonha da doença, mas do tratamento. Há também a cômica certeza de que a cerveja não é álcool... E, quanto à liberação da maconha, só vejo jornalistas, cantores e advogados a favor. Estou para ver um médico que a defenda. 

Hoje, você tem alguma compulsão – por escrever e pesquisar, por exemplo?

Assim como continuo a me considerar alcoólatra, embora não beba, claro que continuo compulsivo. Um diabético que deixa de comer açúcar continua diabético –- apenas não come açúcar. Quando gosto de uma coisa, gosto muito. Por sorte, nos últimos 30 anos, minha compulsão de trabalhar está resultando nos livros. 

Sobre literatura, pesquisas diferentes mostram um aspecto comum: que os brasileiros, geralmente, se interessam pouco por literatura. Por que você acha que isso acontece?

O Brasil custou a despertar para a educação. Nunca tivemos bibliotecas suficientes, nossa política de educação foi quase sempre um desastre --- houve exceções, como no tempo do ministro Gustavo Capanema --- e não nos preocupamos em formar leitores. Atualmente, a educação está entregue a um idiota desvairado.

Algumas pessoas criticam os preços dos livros. Você acha que a literatura consegue atender a todos?

Os livros brasileiros não são caros. Há anos as editoras estão jogando os preços para baixo e, como autor, sei disso muito bem. O problema é que as pessoas que acham caro um livro de R$ 69, 00, que poderia te alimentar por anos, não se importam de comer mal num restaurante por R$ 150 e ainda ter dor de barriga por causa da comida. 

Você acha que mesmo as pessoas mais pobres conseguem ter acesso à literatura? Algumas pessoas chamam a literatura de elitista...

As pessoas mais pobres deveriam ser atendidas por bibliotecas ou por caravanas ambulantes para fornecer-lhes livros, novos ou velhos, e terem sua leitura orientada por assistentes especiais. Não compete às editoras resolver o problema social do país. Mas, desde que Dilma, em 2013, acabou com o programa de compra de livros pelo governo --- o que não foi retomado pelo Temer e muito menos pelo Bolsonaro ---, tudo piorou para todo mundo

E o que você pensa desse movimento de aproximação da literatura com a internet, com alguns digitais influencers escrevendo livros, por exemplo? Click é sinônimo de vendagem?

Não acompanho essa turma. Meu negócio é com a palavra bem pensada, bem escrita e impressa. Ouvi dizer que tem até cachorro “influencer” --- é verdade?

Mas ler “influencers” pode ser um caminho para conhecer a literatura, na sua opinião? 

Qualquer coisa que leve a ler bons livros deve ser apoiada. Nunca me preocupei, por exemplo, com os milhões de livros vendidos por Augusto Cury ou autores do gênero. Quem lê qualquer livro depois de Augusto Cury só pode ser um progresso. Ruy Castro numa praia do Rio de Janeiro (Foto: Divulgação/Companhia das Letras) A concorrência do jornalismo tradicional com outros meios de informação é inegável. Você acha que o jornalismo tem sua culpa pelo desinteresse e desconfiança das pessoas em relação ao que é produzido?

O jornalismo tradicional está sofrendo uma influência negativa do jornalismo online, que, em geral, é pessimamente escrito. Mas ainda é o meio mais confiável em matéria de informação.

Nesse contexto, o que é notícia hoje? É curiosidade por um assunto ou o fato? 

Tudo é notícia hoje. Nada fica escondido, até o que não tem interesse. Mas o pior é a cultura do celebritismo, em que a mídia dedica grande espaço a gente que é famosa apenas por ser famosa. 

E há algo desse Brasil atual que você gostaria de contar? Que personagem tem vontade de contar?

Nenhum. Em matéria de biografia, só gosto de trabalhar com quem já morreu --- ou seja, cuja história já terminou. O Pelé, um dia, dará uma grande biografia --- se for bem feita. Roberto Carlos, Chico Buarque e Caetano Veloso, então, nem se fala! Mas há muita gente que já morreu há tempos e ainda não teve biografia à altura: Roberto Marinho, por exemplo.

O Rio de Janeiro, uma cidade com a qual você desenvolveu uma relação de amor, tem passado por uma avalanche de problemas – a última (mais repercutida) foi a água com esgoto. O que está acontecendo com o Rio de Janeiro?

Está acontecendo com o Rio o mesmo que com o resto do Brasil --- crise, desemprego, corrupção, péssimas administrações ---, só que, aqui, tudo repercute mais. O Rio é tão vítima quanto muitos outros Estados e cidades. Mas uma cidade que sobreviveu à perda da Capital [sem ganhar as compensações devidas a esta perda, como aconteceu com Bonn em relação a Berlim e outras cidades que deixaram de ser capital]; à fusão [sem consulta às populações] com um Estado pobre, como o Estado do Rio; a governos como o de Brizolla, Moreira Franco, os Garotinhos, Benedita da Silva, Sergio Cabtral e Pezão --- e, mesmo assim, continua fascinante a atraindo milhões de visitantes, é porque é invencível. Antes que se espere, o Rio vai dar a volta por cima.

Está trabalhando em algum novo livro? 

Sim. Mas ainda é cedo para falar dele. Só posso adiantar que não é uma biografia nem um livro de reconstituição histórica...

Você já chegou a escrever que direita e esquerda estão muito parecidas hoje em dia. Qual é a semelhança? 

Entre outras coisas, cada qual se julga detentora do monopólio da moral e da virtude. Desde cedo aprendi a desconfiar desses monopólios. Quase sempre, são apenas uma maneira de esconder a canalhice. 

Ao longo do tempo, parece que a história sempre se repete. O que te emociona e o que você gostaria que deixássemos de contar? 

O Brasil tem uma excepcional tendência a ser governado por cretinos ou incompetentes. Em meus 71 anos de vida, peguei Getulio, Café Filho, Juscelino, Jânio, Jango, os cinco milicos, Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma, Temer e, agora, Bolsonaro --- e nunca vi um que eu conseguisse admirar. E, quanto mais aprendo sobre eles, menos ainda...