Torre de Babel da vacina: com doses em falta, funil para fila tem critérios pouco claros

Para especialistas, foco deveria ser em grupos sob risco e exposição elevados

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  • Da Redação

Publicado em 24 de abril de 2021 às 05:20

- Atualizado há um ano

. Crédito: Ilustração: Morgana Miranda/CORREIO

Quando perguntado o motivo de ter sido vacinado mesmo sem estar na linha de frente no combate da covid-19, um fisioterapeuta de 24 anos gaguejou, admitiu que não precisaria estar no grupo prioritário, mas se defendeu. “Minha profissão está dentro do grupo com prioridade e sou um profissional de saúde. Você, no meu lugar, não se vacinaria?”, questionou o cidadão, que preferiu o anonimato. De fato, é uma tentação em tempos de pandemia. Errado, não está. Porém, é justo? 

Organizar o grupo prioritário para a vacinação da covid-19 é como construir uma Torre de Babel. Um brega. Nem todo mundo fala a mesma língua e cada seguimento constrói suas próprias argumentações para chegar até o céu, neste caso na agulhada imunizadora. É como o ditado popular: farinha pouca, meu pirão primeiro. A Organização Mundial de Saúde (OMS) orienta que profissionais da saúde sejam prioridades, divididos em risco alto, médio e baixo.  É justamente esta divisão que deixa brechas, pois a OMS não especifica as ocupações, deixando isso para as particularidades de cada país, estado ou município. 

Na Bahia, os coveiros foram vacinados no primeiro grupo, pois foi entendido que o seguimento faz  parte dos profissionais de saúde com risco alto, já que enterram vítimas da covid-19. Até aí, tudo bem. Contudo, outras ocupações foram beneficiadas pelo plano de vacinação, principalmente os autônomos que não estão necessariamente no combate ao coronavírus. Dentistas,  farmacêuticos, doulas, nutricionistas, fonoaudiólogos e psicólogos foram algumas profissões que entraram nesta fila de agentes de saúde, não necessariamente expostos diretamente ao coronavírus. O fisioterapeuta citado no início da reportagem recebeu a dose da vacina no dia 13 de março, bem antes de pessoas com comorbidade grave, como pacientes com HIV, que ainda não foram imunizados no país.  

Os soropositivos  fazem parte do grupo de risco e comorbidade da OMS, mas ainda esperam sua vez na fila. “O Plano Nacional de Imunização prevê que as pessoas com HIV e Aids sejam vacinadas na Fase 1. Agora, acredito que a partir de maio, por determinação da CIB (Comissão Intergestores Bipartite), seja iniciada a vacinação de pessoas com HIV e Aids acima de 18 anos”, prevê a coordenadora do Grupo de Apoio à Prevenção à Aids da Bahia (GAPA), Gladys Almeida.

Segundo o plano nacional de vacinação, estima-se que 77,2 milhões de pessoas estejam inseridos nos grupos prioritários. Ultrapassa um terço da população brasileira (210 milhões). A escolha dos primeiros da fila da vacinação tem suas particularidades em cada país, mas segue as orientações da OMS, que possui três pilares: reduzir a carga de mortalidade e morbidade causada pela covid-19, reduzir o transtorno social e econômico, além de proteger o funcionamento contínuo dos serviços essenciais. 

Pronto. A partir daí, e por meio de pesquisas e quadros de mortalidade/exposição, foi criado o grupo prioritário na vacinação contra a covid-19. Os primeiros são profissionais de saúde, idosos e pessoas com comorbidades. É cláusula pétrea. Na teoria, só poderia vacinar outras pessoas depois que este seleto grupo fosse totalmente imunizado.

O governo federal adotou a orientação da OMS quanto ao início da fila de vacinação. A confusão começa na escolha dos grupos inseridos na vulnerabilidade social, como índios e pessoas em situação de rua, além das ocupações. No plano nacional, foram contemplados as forças nacionais de segurança e salvamento, trabalhadores da educação, transporte coletivo, portuário, industrial e caminhoneiros. Os demais, que corram atrás.   O governo estadual e municípios podem administrar esta equação prioritária.“Com a lógica tripartite do Sistema Único de Saúde (SUS), estados e municípios têm autonomia para montar seu próprio esquema de vacinação e dar vazão à fila de acordo com as características de sua população, demandas específicas de cada região e doses disponibilizadas”, explicou o Ministério da Saúde, em nota.Resumindo: no final das contas, os municípios podem definir como será a ordem prioritária e quem pode ser inserido na fila. É aí que entra a CIB.  CIB  A CIB é a dona da caneta moralizadora  que determina quem merece ou não pertencer ao grupo prioritário, além da ordem da vacinação. Ela reúne representantes de 417 municípios do estado, que recebem o pedido de novos grupos ocupacionais e avaliam. 

Criada em 2003, a Comissão Intergestora Bipartite da Bahia é vinculada à Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (Sesab) e SUS. Ela tem o papel de organizar o funcionamento das ações e serviços de saúde, como organizar distribuição e públicos alvos de vacinas e distribuição de ambulâncias do Samu, por exemplo. Sua composição é feita por membros da Sesab e do Conselho Estadual dos Secretários Municipais de Saúde da Bahia (Cosems). O coordenador atual é o secretário estadual da saúde, Fábio Vilas-Boas. Cada estado tem uma CIB para chamar de sua.

Entre algumas ocupações que querem entrar na fila da CIB está a Associação das Profissionais do Sexo da Bahia (Aprosba) que solicitou diversas reuniões com o governo do estado para que garotas de programa entrem neste funil, mas não foram atendidas.

“A gente trabalha com o corpo, grudado, não tem distanciamento pra gente. Somos prioridades, mas acho difícil essa possibilidade de sermos incluídas”, analisa a coordenadora da Aprosba, Fátima Medeiros. De fato, a fila parece não andar para quem não tem representatividade. Quer um exemplo? Segundo o plano de imunização federal, após a vacinação do grupo com comorbidade, os próximos da fila deveriam ser pessoas em situação de rua e presidiários.  

A Sesab estipulou que o estado tenha cerca de 2.556 pessoas em situação de rua. No plano estadual de vacinação, este grupo deveria estar na frente da força de segurança e profissionais da educação, que estão sendo vacinados desde o dia 1º e 16 de abril, respectivamente.

Mas quem representa estas pessoas com vulnerabilidade social? A fila andou para policiais e professores, mas para moradores de rua, não. Já os 14.380 presos foram para o final da fila da quarta fase.    

Antes de começarem a distribuir juízo de valor nas redes sociais, avaliando que prostitutas, mendigos ou presos não merecem a vacina, sobrando até para o CORREIO, leia com atenção: os critérios internacionais para a formulação do grupo prioritário não avaliam índole, crime ou profissão. O foco é no risco e exposição eminente.

Justamente por isso os presos estão entre as prioridades. Num sistema prisional superlotado como o nosso, não é possível fazer qualquer distanciamento social. A não ser que solte todo mundo. Então, para evitar que este grupo prisional sofra com consideradas mortes por conta da covid-19, entra na prioridade, independentemente dos crimes cometidos.

“É preciso pensar em salvar vidas, primeiramente. Não é de cada pessoa, mas de grupos populacionais mais expostos”, explica a epidemiologista Glória Teixeira, professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Ela defende a obrigação de ter uma fórmula justa de prioritários, diminuindo as mortes e grupos que podem desenvolver um quadro grave da doença. O problema é que não tem vacina para todo mundo.

“Toda categoria tem que fazer suas pressões para serem vacinados. Todos nós queremos a vacina. Infelizmente, nosso governo não adquiriu o quantitativo suficiente. Poderíamos estar hoje vacinando muito mais pessoas, abrindo possibilidade de novos grupos. Porém, não temos vacina!”, completa Glória. 

Lili Fonseca, por exemplo, é cuidadora de idosos. Porém, não está trabalhando na área e não conseguiu a vacina. Este grupo precisa estar com a carteira de trabalho assinada comprovando a função, seja em lares para idosos ou de forma autônoma. Na CT de Lili consta caixa de supermercado,  sua atual profissão, também exposta, mas fora da lista de prioridades. “Não consegui pela cuidadora, será que consigo por aqui? Acho que estou mais exposta no mercado do que cuidando de idosos”, fala a soteropolitana de 28 anos. 

Segundo o governo do estado, a escolha de entrada ou não de grupos depende da chegada de novas remessas da vacina ou a aprovação de 9,7 milhões de doses da Sputnik V adquiridas pela Bahia, mas que ainda não foi liberada pela Anvisa. “Infelizmente, o governo federal não tem enviado vacinas suficientes para sequer atender o público-alvo prioritário estimado no início da vacinação, que era de 5 milhões de baianos. Quanto à inclusão de novos grupos no estado, a decisão precisa ser aprovada em reunião da CIB”, explica a Sesab, em nota. 

Há 10 dias o CORREIO tenta conversar com a CIB, mas sem sucesso.   Autonomia Cada município também tem o poder de administrar suas doses, como já foi explicado. Se tem vacina, abre-se vacinação para outros grupos prioritários, como ocorreu em Salvador, com a imunização dos primeiros grupos com comorbidade: renais crônicos e Síndrome de Down. Ambos começaram a imunização no último dia 16 e 22 de abril, respectivamente. O problema é justamente a falta de vacina fornecida pelo governo federal, que deixa a fila do plano de imunização mais lenta que a do ferry em dia de feriado. O próprio Ministério da Saúde esticou o prazo de imunização do grupo prioritário para setembro (antes era maio). 

Pelo menos para a turma que conseguiu entrar no funil da imunização, os resultados começam a aparecer. Em estudo preliminar, o Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgou uma diminuição de 83% das mortes de profissionais de saúde após o início da vacinação. Em janeiro, 59 agentes de saúde morreram de covid-19. Em março, foram 10.  Até a sexta-feira (23), 2.451,72 milhões de pessoas foram vacinadas na Bahia, com a 1ª dose (15,24% da população no estado). Curiosamente, 383.424 pessoas vacinadas na Bahia estão entre os profissionais da saúde. São 9.056 a mais do que o esperado pelo estado, que pode ser a turma que não está exposta, mas foi enquadrado no grupo prioritário. Está na hora de dar lugar na fila para quem precisa mais, né?