Transformar a cidade

'Nada de conjuntos habitacionais jogados nas periferias distantes, desprovidos de infraestruturas e serviços'

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  • Waldeck Ornelas

Publicado em 16 de agosto de 2020 às 11:30

- Atualizado há um ano

A mais visível das atividades da Prefeitura é a gestão da Cidade. São as obras de urbanização – designação genérica sob a qual se incluem todas as obras de infraestrutura realizadas no ambiente urbano – as que mais marcam a passagem de um Prefeito e que mais se refletem na sua avaliação como administrador. Apesar disto, como tem sido pobre a gestão das cidades brasileiras! 

Desde pelo menos a metade do século passado, as cidades têm sido preparadas para os carros, não para as pessoas. Acontece que nós nascemos com cabeça-tronco-e-membros, não cabeça-tronco-e-rodas. Isto faz toda a diferença, porque o natural é andar a pé, não de carro. A necessidade do carro vem de uma deformação adquirida pelas nossas cidades. 

O desenho urbano foi atropelado pela implantação de um sistema viário parametrizado para o automóvel. Com essa deformação, o asfalto ganhou o status de bem de primeira necessidade e deixou para trás outros efetivamente essenciais. Com frequência, o cidadão não tem água encanada, não tem esgotamento sanitário, não tem transporte, não tem serviço de limpeza pública, às vezes não tem sequer iluminação, a casa é um barraco, mas o que recebe de presente é o asfalto. 

Esta é uma realidade que começa a mudar a partir do próprio carro, hoje tornando-se autônomo, compartilhado ou se oferecendo via aplicativos de transporte. Às mudanças tecnológicas se somam os novos valores da sociedade, requerendo, em conjunto, um novo padrão de cidade. Com o carro as cidades foram espraiadas e expandidas horizontalmente, as funções urbanas separadas. O lugar de morar foi afastado do lugar de trabalhar. Ainda hoje muitos códigos de urbanismo e tributários impedem que profissionais tenham como endereço de trabalho a sua própria residência, em uma época em que o home office torna-se a prática das empresas, processo que a pandemia do coronavírus veio tornar acelerado e irreversível. Agora, é tocar reunir outra vez, integrar as funções, densificar, compactar a cidade. Nada de conjuntos habitacionais jogados nas periferias distantes, desprovidos de infraestruturas e serviços. Uso misto, fachada ativa, quadras pequenas, ruas de pedestres ou compartilhadas, ciclovias, valorização das praças e parques públicos, acessibilidade, arborização, transporte complementar, energias limpas, geração distribuída, reuso de água, resiliência são conceitos que passam a dominar o receituário urbano de cidades com qualidade de vida para os seus habitantes.  

Isto muda o perfil e a natureza dos investimentos municipais, perdendo espaço a construção de avenidas, viadutos, túneis e elevados. Os prefeitos precisam começar a rezar por uma nova cartilha; é indispensável que os técnicos passem a refletir esses novos valores da sociedade na revisão decenal dos planos diretores.  

Esta mudança de valores precisa chegar também às cidades de menor porte, para que se desenvolvam – o que não é sinônimo de se tornar grande – com um padrão urbanístico adequado à vida humana. Têm até mais facilidade para isto do que as metrópoles e grandes cidades, onde a reconversão tem custo elevado.   

Geralmente as prefeituras pavimentam as ruas, com asfalto ou paralelepípedo tanto faz, mas deixam as calçadas para os proprietários dos imóveis fazerem, isto é, cuida dos carros e abandona os pedestres. Sobretudo nos bairros pobres, as calçadas não serão feitas. É preciso que as prefeituras chamem a si a tarefa de cuida-las, independente até da rua ter ou não pavimentação, para garantir uma largura mínima, acessibilidade, arborização, mobiliário urbano e todas as demais caraterísticas necessárias. Se a rua for estreita, restrinja-se o acesso dos carros. O tempo é de resgatar as cidades que temos, para torna-las melhores, mais habitáveis, mais vinculadas ao homem – em detrimento da máquina, que foi criada para nos servir, não para nos subordinar.Waldeck Ornélas é especialista em planejamento urbano-regional.