Um bebê na barriga, uma bala no peito

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  • Paulo Sales

Publicado em 14 de junho de 2021 às 05:01

- Atualizado há um ano

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Kathlen Romeu tinha 25 anos e estava grávida. Vinha de uma família de gente batalhadora e parecia uma moça alegre e divertida. Uma pessoa do bem. Na semana passada, Kathlen se converteu em número, tornando-se parte de uma estatística mórbida num estado que se desintegra. Foi abatida com um tiro de fuzil, fruto de mais uma operação criminosa promovida por uma polícia que aperta o gatilho como quem abre latas de cerveja, sob as bênçãos de governantes corruptos, canalhas e incapazes.

O Rio de Janeiro – onde Kathlen vivia – é o microcosmo mais vistoso de um país mutilado, fraturado, com suas vísceras expostas sem pudor, muito mais obscenas que um filme pornográfico. Um país desonrado, indiferente ao sofrimento e refratário à indignação, onde pessoas de pele preta são massacradas quase todos os dias. Um país que não se envergonha da própria desgraça. Não haverá julgamentos, não haverá culpados, não haverá redenção. Como tantas outras mortes, a de Kathlen torna-se ainda mais dilacerante pela certeza de que permanecerá impune.

Numa nação civilizada, esse crime renderia a prisão imediata dos autores, a queda do secretário de segurança e um pronunciamento veemente do governador repudiando o ato dos seus subordinados. Mas não estamos falando de uma nação civilizada. Se uma mulher é morta em consequência de uma ação de funcionários do Estado, esse Estado deveria no mínimo ser obrigado a pagar uma indenização milionária para a sua família. Milionária mesmo. Quando dói no bolso do Estado, deixa de doer apenas em quem perde um parente.

É o básico, o primeiro passo (não o único) para que se comece a repensar o problema da violência urbana no Brasil, que mata todos os anos mais de 50 mil pessoas, maciçamente pobres, pretas e anônimas. Mas não bastam indenizações: é fundamental rever o papel e até mesmo a existência da polícia nos moldes em que existe hoje, com seu treinamento precário e suas táticas brutalizadas. Uma máquina de matar que precisa ser fiscalizada, refreada e, quando for o caso, punida.

Numa outra ponta, é preciso dar fim a essa falácia que atende pelo nome de guerra às drogas. Se o consumo é inevitável, que se permita o consumo então. De maneira organizada, controlada pelo Estado, com a devida atenção à saúde pública. Como já vem acontecendo em países como Portugal, Uruguai e Holanda, entre outros, que estão lidando com a situação de diferentes formas e com resultados positivos.

É curioso como grande parte do mundo civilizado ainda não se deu conta de que a guerra às drogas é absolutamente inútil, dispendiosa e assassina. Não há argumento que justifique o fato de que os efeitos nocivos das drogas ilícitas (e nem vale entrar aqui no mérito das lícitas) são absolutamente insignificantes diante das perdas provocadas por essa guerra. Dá para mensurar quantas mortes ocorrem no Brasil e no mundo hoje só porque traficar e cheirar cocaína é crime?

Quando se lê um livro como Zero Zero Zero, de Roberto Saviano, fica claro o quanto essa escolha equivocada sustenta uma indústria altamente organizada, combatida inutilmente tanto por exércitos poderosos como por equipes policiais precárias, mal treinadas e mal equipadas. Uma indústria que produz, como danos colaterais, corrupção, miséria e carnificina de gente muito nova e muito pobre. Gente como Kathlen, que deixou o mundo cedo demais com um bebê na barriga e uma bala no peito. Isso também pode e deve ser chamado de genocídio – mais um para a nossa conta.