Um encargo fora do lugar

'No âmbito da segurança pública ao município cabe contribuir de forma indireta, com o chamado ‘urbanismo social’

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  • Waldeck Ornelas

Publicado em 22 de novembro de 2020 às 16:00

- Atualizado há um ano

Definitivamente a questão da segurança pública ganhou uma dimensão e uma escala extremamente preocupante em nosso país, com o avanço do crime organizado, o crescimento do tráfico de drogas e de armas, amedrontando a população. Neste contexto, é fora de qualquer propósito colocar o Município nesse jogo.

A Constituição Federal (Art. 144, §8º) apenas autoriza que os municípios possam constituir guardas municipais e destinadas tão somente à proteção de seus bens, serviços e instalações. Não tem qualquer cabimento querer transforma-la numa força policial, ainda por cima armada. É, no entanto, o que foi autorizado pelo Estatuto do Desarmamento, nos municípios a partir de 50.000 habitantes. Ou seja, as guardas municipais já tinham direito a porte de arma antes mesmo que houvessem sido regulamentadas, o que só veio a ocorrer em 2014. A CF não atribui função de segurança pública à guarda municipal, o que foi, no entanto, indevidamente estendido na regulação. A isto o STF devia prestar atenção.

Situado na base da pirâmide federativa, não deve caber ao município qualquer responsabilidade na área da segurança pública. Não devem os municípios aventurarem-se nesta seara, nem pode a União empurrá-los para este ringue. Se os estados não estão dando conta das ações de segurança pública – até porque nunca se prepararam adequadamente para a missão – não é ao Município que se deve recorrer com o pedido de socorro, mas à União.

A presença da guarda municipal neste cenário mais confunde do que esclarece, levando a população a imaginar que com sua existência está mais protegida. No momento em que a vigilância patrimonial pode tornar-se eletrônica, ganhar eficiência e reduzir custos, fomenta-se  a criação de um novo encargo para os municípios – a guarda municipal. Um nome pomposo, para uma pseudo tropa, que adota cada vez mais os sinais exteriores de força pública – uniformes, insígnias, hierarquia, rotina de trabalho – mas que não segura absolutamente nada. Além disto, ainda tem controladoria e ouvidoria próprias, embora seja apenas uma agência administrativa. Para os fins efetivos a que se destinam, custavam menos e tinham mais eficiência os bons e velhos vigilantes e mensageiros.

Aliás, a guarda municipal de hoje não substitui nem a antiga vigilância noturna – que tomava conta do quarteirão fazendo soar o seu apito na calada da noite – nem a velha guarda civil estadual – que desfilava com seus cassetetes na cintura, inibindo as malandragens. Eram outros os  tempos, que não voltam mais. Quais indicadores de segurança melhoram ante a existência de uma guarda municipal?

Do ponto de vista da gestão pública, a criação de guardas municipais é uma inciativa desnecessária, em um cenário institucional onde os gastos com pessoal e previdência constituem o nó górdio das administrações municipais. A não ser que o objetivo seja apenas o de criar um cabide de empregos de baixa produtividade, sem função social definida.        

No âmbito da segurança pública ao município cabe contribuir de forma indireta, com o chamado “urbanismo social”. Colabora – e aí precisa fazer bem feito – urbanizando os espaços públicos – ruas, praças, parques; dotando os ambientes públicos de iluminação de qualidade; evitando a formação de favelas, com sua natural desorganização urbana; implantando equipamentos sociais nas existentes; fiscalizando corretamente as atividades potencialmente suspeitas, para evitar desvios de finalidade; gerando oportunidades de estudo, trabalho e lazer para os jovens, entre outras ações que são capazes de, indo na mão certa, evitar que o crime encontre ambiente fértil em sua cidade ou em seu território. 

Não fazendo o menor sentido a participação dos municípios na política de segurança pública, a criação de uma guarda municipal é, decididamente, um luxo desnecessário. Mais apropriado é cobrar dos estados que cumpram o seu papel.

Waldeck Ornélas é especialista em planejamento urbano-regional.