Um furo historiográfico sobre Maria Quitéria ou um boato machista para queimá-la?

‘Sósia’ e descendente, Gabriella Esmeralda descobriu versão enviesada sobre alistamento da heroína: contam que foi à guerra por amor a soldado

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  • Da Redação

Publicado em 5 de maio de 2019 às 21:30

- Atualizado há um ano

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Pedro Aquino (centro) com a secretária Glória Marluce Lima da Silva (Educação e Cultura) e Jeferson, servidor municipal por Foto: Pedro Calmon Aquino/Cortesia

Maria Quitéria, Paladina da Independência, e sua descendente, a professora Gabriella Esmeralda (Créditos: Domenico Failutti e Acervo pessoal) Na bucólica e merencória Tanquinho, os anos correm mais lentos, e nem parece fazer tanto tempo que as batalhas pela Independência do Brasil na Bahia acabaram. Digo isso porque parte dos moradores ainda tem fresca na memória a explicação para Maria Quitéria de Jesus, então com 30 aninhos, ter deixado a região, sem consentimento do painho rico e autoritário, com o intuito de lutar contra as tropas lusitanas, em 1822: “foi pra guerra atrás de um homem”, cravam alguns conterrâneos, em desfeitas dos correntes anos.

Disseminadores da versão -- classificada, embora o teor, como “furo historiográfico” pelo mestre em História Fábio Batista Pereira (converso com ele lá embaixo) -- foram encontrados por um sobrinho (distante) da heroína e por sua sobrinha, também descendente da guerreira.

Moradores do Jardim Cruzeiro, em Salvador, eles se embrenharam na cidade vizinha a Feira de Santana, no mês passado, em busca de informações sobre as próprias origens e, claro, da parente notável.

Na parte esquerda da dupla, com postura e semelhança física de Quitéria, temos a estudante de Filosofia e professora Gabriella Esmeralda Aquino Silva, 23 anos; na direita, seu tio, o astrônomo, fotógrafo e escritor Pedro Calmon Aquino, 61 anos. Juntos, desembarcaram no dia 17 em Tanquinho -- de onde Quitéria partiu pra briga --, e fizeram uma rápida expedição em “busca da história familiar”, como ele definiu.  Placa comemorativa colocada em Tanquinho, em 1973, 150º aniversário da Independência (Foto: Pedro Calmon Aquino/Cortesia) Se você não sabe nada sobre Quitéria, o Fantástico fez o favor de resumir a trajetória (de modo bem resumido, claro), no quadro Mulheres Fantásticas, exibido na semana retrasada. Se não der pra assistir, a transcrição vai no rodapé. 

A pé, Pedro e Gabriella passearam por Tanquinho atrás de pistas e histórias da antepassada. Os momentos mais bacanas da viagem, no entanto, ficaram apenas no relato dele.

“Encantados com o exuberante e famoso Morro de Tanquinho, nos deparamos com uma cidadezinha de modo simples, bela e povo hospitaleiro. Buscando informações sobre a família, conversando com os mais antigos, fomos informados que a fazenda Olhos D'Água foi propriedade do meu tio Abílio Santa Fé Aquino [morto há pouco mais de uma década, com quase 100 anos], onde morou Maria Quitéria”, explicou.

Daí, viro a chave e trago relatos menos animados da incursão, feitos por Gabriella. Num primeiro momento, ela critica a falta de atenção, ou orgulho, em Tanquinho, pela história da 'filha' ilustre. Num segundo instante, lamenta as tentativas renitentes de parte dos locais em atribuir a ida de Quitéria à guerra ao amor por um soldado desconhecido, as quais teriam o objetivo de diminuir o papel da heroína na campanha libertadora.

“Não senti da cidade um interesse muito grande de usar desse fato pra levar informação aos moradores, o que é muito triste porque a gente já sabe que a história é tratada com tanto descaso, e quando se trata de uma mulher, parece que as pessoas fazem questão de apagar da história”, observa, ao lembrar de algo próximo da vergonha em parte dos relatos.

“Conversamos com professores, com o pessoal da prefeitura, e apesar de simpáticos, houve uma resistência muito grande de falar coisas novas, de mostrar o conteúdo, o acervo que tinha. Parecia que Quitéria tinha feito uma coisa ruim. Que ao invés de ter sido a figura importante que ela foi, de combater, de lutar pelo Brasil; de uma mulher, naquela época, lutar com arma de fogo, liderar grupo de mulheres, parece que ela fez algo de errado”, emendou.

Tentei falar com a prefeitura da cidade, por meio de e-mail, mensagens e ligações, para comentar o assunto, mas sem sucesso.

Ódio de classe Antes de abrir as críticas de Gabriella ao segundo ponto (Quitéria apaixonada), devolvo a palavra a Pedro para, na perspectiva dele, justificar o fato da nossa heroína, mesmo sendo de uma família rica, ter morrido pobre de marré deci, esquecida, em algum lugar do Lanat, em Salvador.“Na minha visão, a família não aceitou que ela tenha ido morar com um soldado. E quando ela tentou voltar, o pai e os outros parentes não aceitaram a situação e ela deve ter ficado chateada e veio embora pra Salvador. Até hoje é assim: se você é de uma classe muito boa e se casa com alguém muito pobre, tem família que não aceita”, comenta ele, direto da parte menos abastada dos Aquino. “A família original mesmo de Quitéria, que é minha prima direta, não quer saber da história. A cidade toda sabe que ela [citou o nome de uma descendente direta] se enclausurou desse caso; não sai, não fala. Meu tio [Abílio] morreu e a gente ficou sem esse contato”, explica ele, que junto com Gabriella tentou, sem sucesso, contato com a tal “família original”. 

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Consenso histórico Pra situar melhor as coisas, Quitéria nasceu em São José das Itapororocas [hoje distrito de Maria Quitéria, em Feira de Santana], provavelmente em 1792. A menina cresceu na roça, sob a proteção (ou o jugo?) do pai, o fazendeiro escravista Gonçalo Alves de Almeida, que ficou viúvo e, ao voltar a se casar, mudou-se para a propriedade na Serra da Agulha, hoje Tanquinho, onde o astrônomo Pedro nasceu.

Solteira e trintando, Quitéria ouve uma conversa do pai com representantes dos revolucionários de Cachoeira, que buscavam doações para a causa e combatentes na região, e é quando decide ir à luta.

Na versão consagrada da história, citada, por exemplo, na biografia “Maria Quitéria”, de Pereira Reis Júnior, ela acaba "tocada pelo desejo de liberdade" e, ignorando a opção do pai em não colaborar, segue escondida para integrar, como Soldado Medeiros, o Batalhão dos Periquitos, em Cachoeira.

Seria descoberta duas semanas depois, pelo velho, que ainda tentou resgatá-la, mas sem sucesso, pois o major não dispensou os préstimos da soldado por ser, por exemplo, uma sniper com olhos de raio laser. Casada de guerra A biografia, lançada em 1953, no centenário da morte da heroína, também menciona que, durante a guerra, Quitéria se casa com o furriel [uma graduação militar superior a cabo e inferior a sargento] João José Luís. O casório ocorre em menos de um ano já que, em 31 de março de 1823, o Conselho Interino do Governo da Província publica portaria para que seja entregue um fardamento militar a João José e sua mulher, Maria Quitéria, a essa altura já usando o saiote que a diferenciava dos demais soldadinhos. 

Acabada a guerra, Quitéria volta a ficar solteira, ou viúva, já que JJ parece ter morrido no campo de batalha. Divórcio era algo incomum, mas como Quitéria não era muito de ligar pra convenções, também é possível que tenha mandado o marido partir a milhão. Não há registros oficiais sobre isso.

Enfim, o certo é que, findadas as batalhas, Quitéria busca a reconciliação com o velho Gonça. Um mês após a conquista da Independência, no Dois de Julho, ela vai ao Rio de Janeiro, onde é recebida por Dom Pedro I para uma homenagem.Acaba condecorada, tendo o imperador largado a seguinte delimitação: “Querendo conceder a D. Maria Quitéria de Jesus o distintivo que assinala os Serviços Militares que com denodo raro, entre as mais do seu sexo, prestara à Causa da Independência deste Império, na porfiosa restauração da Capital da Bahia, hei de permitir-lhe o uso da insígnia de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro.”Aproveitando a oportunidade, Quitéria, promovida a Alferes de Linha, pede ao imperador que escreva uma carta ao seu pai, para que ele a perdoe pela desobediência de ter fugido para o Exército, o que Dom Pedro faz, de boas.

Consta que recebeu o perdão do pai, mediante a majestosa cartinha, mas, mesmo com a pompa e circunstância de heroína, rhycaaa que também continuava, se casou com um lavrador, Gabriel Pereira de Brito, com quem teve uma filha, Luísa. 

Se a família, na novíssima versão da história, não aprovava a relação com um soldado, a situação não seria diferente com um lavrador, o que, para o sobrinho Pedro, justifica o fato de ela ter morrido pobrinha, depois das sucessivas tentativas de herdar o que lhe era de direito. 

Com a morte, em 1834, de seu Gonça (então, um dos maiores criadores de gado e produtores de algodão da Bahia), Quitéria passa a travar na Justiça uma luta com a madrasta.

Em Feira, os pedidos de inventário dela, para receber sua parte do espólio, perecem por mais de uma década nos cartórios. Desiludida, desiste das terras e passa a morar na capital, onde morre esquecida, desassistida e cega, em 1853.

Um final pra lá de injusto para nossa heroína-mor, a qual, supõe Pedro, tanto amou, quanto brigou por nós. “Nesse espírito de amor, ela também lutou, pra defender ela e o namorado. E lutou mesmo, de verdade”, comenta ele, tentando não relativizar tais honras e méritos.

Símbolo feminino Feminista até o último fio dos cabelos curtinhos, Gabriella Esmeralda confessa que essas informações não lhe agradaram, especialmente pelo uso distorcido que pode ser feito da coisa, visando diminuir o papel de Quitéria como símbolo feminino. “Sempre que a gente fala da mulher e da luta feminina ou de alguma conquista individual de uma mulher, vem um discurso por trás que tenta desmerecer essa conquista. Algum discurso que tenta dizer 'não foi bem assim', 'ela não fez por isso'. E não é nenhuma novidade tentar dizer que quando uma mulher fez alguma coisa, mesmo sendo tão grandiosa quanto o que Quitéria foi, é sempre por causa de um homem. Isso é muito feio! Empobrece a figura da mulher e coloca ela sempre em relação a um homem, como se ela só pudesse existir por e para a figura masculina”, critica a jovem.Ela pondera, no entanto, não enxergar problema em sua 'tia' ter ido à guerra também por causa de alguém por quem se apaixonou. “Se fosse verdade, não desmerece o esforço dela, porque ela ainda lutou, deu a cara a tapa, colocou a vida em risco, comandou um grupo de mulheres. (...) Eu não concordo com essa ideia [do soldado] e acredito, sim, que ela fez isso por um ideal e que o mérito é todo dela, não de um homem por trás”, complementou a aguerrida Gabriella, com o discurso afiado de quem atua como professora nas trincheiras da escola pública. 

Na sala de aula, tenta proteger novos baianos de ideias e discursos misóginos, machistas e preconceituosos, e julga, com razão, ser uma guerreira tanto quanto Quitéria, ainda que usem armas diferentes. Maria Quitéria reencarna no espírito inconformado, combativo, contestador de Gabriella Esmeralda (Foto: Pedro Aquino/Cortesia)  O sangue da heroína que corre nas veias de Gabriella tem no meio Manoel Cordeiro de Almeida Pinto, que é sobrinho direto de Quitéria e pai de Áurea Cordeiro da Silva Pinto e Aquino; Áurea, que dá nome a uma escola da cidade, era mulher de Abílio Santa Fé Aquino (ele, portanto, genro de Manoel Cordeiro). Este, por sua vez, era tio-avô de Pedro Aquino, o qual, tio de nossa futura filósofa que continuará lutando pela memória de Quitéria e pela garantia de que os atos de coragem, patriotismo e bravura de sua antepassada permanecerão intactos: já avisa que pretende, em breve, desenvolver artigos, pesquisas e outros trabalhos sobre a heroína.

Furo historiográfico Perguntei a muitas pessoas -- incluindo estudantes e professores(as) de História -- se já ouviram falar dessa versão sobre a participação de Maria Quitéria na guerra, e todos disseram desconhecer, ou estranharam ou, claro, consideraram suspeita. 

O professor Fábio Batista Pereira, mestre em História pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), em Cachoeira, e que, portanto, sabe muito sobre Quitéria, é um dos que ignoravam.“O que você tem, certamente, é um furo historiográfico, em função dessas narrativas”, comentou, de cara.Mas tem validade histórica esse tipo de coisa, professor? “Trabalhar essa memória, contada a partir dos moradores, constitui, por si só, um dos elementos comprobatórios, do ponto de vista da memória. É como os grupos sociais vivenciam o passado que, em certa medida, tensiona a própria narrativa histórica dos fatos. E é um contraponto interessante pra lançar luzes sobre a biografia de Maria Quitéria”, comenta ele, que reivindica para sua Cachoeira a maternidade de Quitéria.

“Feira de Santana, à época do nascimento dela, fazia parte da Comarca de Cachoeira. Então, desse ponto de vista, ela seria cachoeirana, assim como Castro Alves, por ter nascido em Cabaceiras do Paraguassu, que também fazia parte da comarca”, brinca ele. 

Por sinal, foi o avô de Castro Alves, major José Antônio da Silva Castro, que segurou Soldado Medeiros no Batalhão dos Periquitos, ajudando Quitéria [libere essa, Gabriella] a sair debaixo das asas do pai e poder alçar voos tão altos. 

Registro local Voltando a Tanquinho, durante a apuração do caso, lembrei de um ex-colega de trabalho que é de lá. Meu bróder Uedson Lima, gestor público com pós na Unicamp, sem titubear, confirmou a boataria geracional.

Ele não quis se estender sobre o assunto, mas me indicou aquele que seria a pessoa ideal para tratar do tema: o contador, músico e escritor (feirense de nascimento e tanquinhense de coração) Bruno Silva. Brunão é outro que ouve essa história de Quitéria e o soldado há tempos, mas só começou a pensar mais seriamente sobre isso depois que lançou 'Viveiro Fecundo', livro que conta a história de Tanquinho (também usado como referência neste texto) e que reserva, obviamente, um capítulo inteiro para a heroína local -- foi morar na cidade antes de completar 10 anos.

“É verdade que essas histórias continuam sendo contadas em Tanquinho, mas algumas coisas são contadas de forma popular e às vezes foge à realidade dos fatos. (...) Depois que escrevi o livro, fiquei com a pulga atrás da orelha sobre essa questão. O que é que tinha de verdade nisso”, comentou Bruno, que não menciona o boato histórico em sua obra, feita com base em pesquisa bibliográfica e em uma incursão semelhante à de Gabriella e Pedro pelos locais que a heroína amou, lutou e nos libertou.

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Transcrição do vídeo*: “Era uma vez uma baianinha chamada Maria Quitéria, que costumava enfrentar monstros perigosos, caçar e pescar. Mas não achava tão legal costurar ou cozinhar. Em 1822, na Guerra da Independência do Brasil, seu pai não quis servir o Exército. Já ela... "Ei! Eu quero!" Mas naquela época, mulheres não podiam se alistar. Sua irmã teve uma ideia genial: vestir Maria Quitéria como um soldado e fazer se passar por um homem. Disfarçada de Soldado Medeiros, se juntou às tropas brasileiras e ganhou várias batalhas. Ela era invencível. E aí seu pai a encontrou e revelou seu segredo. Mas o major não queria perder seu melhor soldado, mesmo ele sendo mulher. Então as mulheres conquistaram o direito de guerrear. Com um novo uniforme, criado por ela, Quitéria expulsou os portugueses da Bahia, que era o último estado que faltava para o Brasil se tornar independente. Ela recebeu uma medalha das mãos do próprio imperador por sua força e bravura. Fez as pazes com a família e, vitoriosa, entrou para a História. Lute como uma garota!”