Uma carta, uma brasa, através*

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  • D
  • Da Redação

Publicado em 23 de maio de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Já viajamos muito. Do Ponto Zero a Veneza. De Boninal a Paris. É como Leminski diz no poema: “uma eternidade, eu e você, caminhando junto”. Mas, de todas as nossas viagens, a que mais recordo é aquela em que enfrentamos a estrada pela primeira vez, tarde da noite, sem ter rumo. Porque fechamos ali, naquela pequena errância romântica na BR-101, tudo que se agiganta em meu espírito de Cronópio.

Esse lance de Cortázar é engraçado, é que nem saber o que se foi em outra encarnação. Parafraseando Pessoa, nunca conheci quem tem tivesse levado porrada. Todos os meus amigos têm sido campeões em tudo. Ninguém quer ser Fama ou Esperança, porque ser Cronópio alcança um nível heroico de resistência. Então, drummondianamente, aceitei essa sina desde cedo: vai, Kátia Bê, ser Cronópio na vida.

E, olha, que nem disse naquela noite, para não soar estranho, mas lembrei tanto de Gina Lollobrigida numa película em preto e branco cujo nome não recordo. Só sei que esse filme me remete a uma canção cantada por Ângela Maria, uma canção de Dick Farney: “alguém como tu, assim como tu, eu preciso encontrar”. Dessas relações malucas e aleatórias que acendo como um fósforo entre literatura, cinema e música.

Também assim, aleatoriamente, eu desenhei um paralelo imaginário entre a canção de Fito Páez e o romance de John Fante. Porque há um trecho exato na letra de Un Vestido y Un Amor onde consigo enxergar nitidamente a melancolia furiosa do meu personagem predileto desde sempre: o Arturo Bandini de Pergunte ao Pó. Para conversar sobre certas coisas, nunca se é íntimo ou Cronópio o suficiente.

Eu e você naquele carro, a noite inteira, a vida inteira, pela frente. Do lado de fora e monstruosamente escura, a BR-101, vestígios de mar. E uma miríade de insetos estilhaçando-se de encontro aos vidros. Tocava uma música no rádio e eu sentia tanta ternura pelo fato de não termos rumo. Porque estávamos de férias e nossas mães ainda estavam vivas. E você ali ao meu lado era, de longe, a benção mais preciosa.

Você ao meu lado, a nossa guia, muitos risos, aquele jeito engraçado de piscar os olhos o tempo todo. E uma primeira frase ou duas que se desprendiam de repente do silêncio. A gente nem sabia. Eram como fragmentos de um imenso iceberg que se derretia, dando espaço à formação de um oceano. Esses mares agitados que hoje atravessamos. “Uma eternidade, eu e você, caminhando junto’.

*Paulo Leminski