Vaticano baiano: por Irmã Dulce, fiéis fizeram de Salvador sua terra santa

De leste a oeste da Arena Fonte Nova, católicos balançavam lenços brancos com a imagem de Dulce em celebração à santidade da conterrânea

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  • Fernanda Santana

Publicado em 21 de outubro de 2019 às 05:30

- Atualizado há um ano

O caminho foi colorido de branco, azul e preto. As cores do hábito Irmã Dulce, agora Santa Dulce dos Pobres, estavam gravadas nas camisas dos devotos. O rosto da primeira santa brasileira também era visto em lenços, terços e imagens. De leste a oeste na Arena Fonte Nova, neste domingo (20), os fiéis balançavam lenços brancos com a imagem de Dulce em celebração à santidade da conterrânea. Foi a primeira vez que puderam, juntos e depois da canonização da baiana no Vaticano, comemorar. 

Os primeiros fiéis começaram a se acomodar às 12h, quando os portões do estádio foram abertos. Cada um deles, sentados no gramado ou na arquibancada do estádio, guardava histórias de admiração e fé pela Santa Dulce dos Pobres que revelavam seus milagres extraoficiais. A cerimônia começou 30 minutos depois, com o início do espetáculo teatral Império do Amor, que narrou a história da santa com participação de 700 atores, entre crianças e adolescentes. 

Quando o padre Antônio Maria subiu ao palco e cantou "Nossa Senhora", de Roberto Carlos, a emoção transbordou em lágrimas pela primeira vez. “Aqui é o nosso Vaticano”, brincou a aposentada Vera Velame, 85 anos.Na saída para a Ladeira da Fonte, lugar de acesso para o estádio, um grupo de cinco pessoas carregava cartazes em homenagem à santa. Eram os integrantes da Paróquia Santa Dulce dos Pobres, no Saboeiro, a primeira paróquia do mundo com o novo nome santo. O espaço foi inaugurado no dia 13 de outubro, mesmo dia da canonização da freira. Enquanto o Papa Francisco canonizava Irmã Dulce por la, o padre Lafaiete Santana autorizava, oficialmente, a abertura da paróquia por aqui. Nenhum deles pôde ir ao Vaticano. “Ela é uma santa nossa, que a gente teve convivência. Esse é o motivo da nossa emoção aqui, hoje”, celebrou Marinalva Cruz, 62 anos, coordenadora da comunidade religiosa São Tito, responsável pela paróquia.A Arquidiocese de Salvador realizou a distribuição de ingressos nas 100 paróquias locais – cada uma recebeu 200 ingressos, que foram repartidos, geralmente, por sorteio. Já as Obras Sociais Irmã Dulce (Osid) enviaram os bilhetes ao interior e a outros estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Sergipe, Brasília, Pernambuco, Ceará, Paraná e Pará, conforme a demanda. No gramado, oito mil cadeiras foram direcionadas a autoridades, religiosos, funcionários, voluntários da Osid e empresas parceiras da obra criada por Irmã Dulce, em 1959.

Os integrantes da família de Marinalva lembram com proximidade da santa. Na infância, o filho Fred recebia conselhos de Dulce para que fosse aplicado nos estudos. O menino era estudante do Colégio Estadual Luís Tarquínio, a 500 metros de distância da obra da freira, à época já uma senhora debilitada. “Ela tinha essa preocupação com todos”, afirmou Marinalva.

'Tem muitos milagres que muita gente não sabe'  Dentro e fora do estádio, todos lembravam da santa baiana. Até 19h, a estimativa era de que 49 mil pessoas tinham participado do evento. Numa das cadeiras no gramado, a artista plástica e bancária Ivana Leme, 55 anos, trazia duas esculturas em busto e corpo inteiro da santa. No pescoço, ela tinha um terço com a imagem da religiosa. 

Ainda jovem, Ivana assistia admirada, pela televisão, a ação de Irmã Dulce nos Alagados. A vontade de homenagear aquela que viria a ser santa permaneceu até o ano passado, quando começou a trabalhar para transformar a ideia em escultura. A essa altura, a filha enfermeira, Letícia, nascida no mesmo 1992 em que morreu Irmã Dulce, já havia começado a trabalhar nas Obras Sociais. Além disso, o primo da artista plástica, Antônio Marques, também atribuiu a Dulce a chance de ter retomado a consciência depois do coma. O homem lembra de sempre de ter visto, em sua frente, o rosto da santa durante os dois dias de internação. Ivana e o primo, Antônio, levaram esculturas de Irmã Dulce para a celebração (Foto: Tiago Caldas/CORREIO) A vontade de Ivana em ir ao Vaticano existia, mas a dupla jornada de trabalho não permitiu. Queria levar sua obra ao outro lado do oceano Atlântico e agradecer, de perto, às intercessões da santa em sua vida.“Minha relação com Irmã Dulce é forte. Digo que minha filha é presente de Irmã Dulce, a criei sozinha, com ajuda dos familiares...Irmã Dulce é um próprio milagre, seu nascimento é o milagre. Tem muitos milagres que a gente ainda não conhece”, falou a artista plástica. Fora do estádio, um grupo também celebrava a nova santa e os milagres que dizem ter vivido. Aproximadamente 50 pessoas da Paróquia de Pau da Lima acompanharam uma imagem de Dulce de quase dois metros de altura, levada no fundo de um carro. A ideia foi reunir os fiéis, da paróquia ou não, que não puderam entrar no estádio por falta de ingresso, explicou o padre Jorge Brito. Quem não conseguiu entrar, rezou do lado de fora em frente a uma imagem da santa levada no fundo de um carro (Foto: Tiago Caldas/CORREIO) Até poucos minutos antes de encontrar a reportagem, Adelinda Fernandes, 48 anos, não tinha mais esperanças de conseguir um ingresso. “Consegui agorinha. Só pode ser mais uma graça dela”, afirmou a serviços gerais. A católica acredita que Santa Dulce sempre operou milagres em sua vida. O maior deles, no ano passado, quando o irmão Edson, diagnosticado com câncer no sangue, tipo raro da neoplasia, foi curado sem explicação médica.“Ele ficou internado na Osid e eu já rezava para Irmã Dulce, que me atendeu. Agora, ela voltou a interceder por minha irmã, que parece que também foi curada de um câncer”, disparou Adelinda.Milagre da vida De braços dados, os irmãos Marieta e Juvenal Morais caminharam na direção leste do estádio. Os cantores Saulo Fernandes, Margareth Menezes e Waldonys haviam acabado de apresentar, no palco, a música Doce Luz, composição de Chico Gomes e Léo Passos que foi escolhida como a canção oficial da canonização. Na última semana, os dois irmãos, moradores de Urandi, no sudoeste da Bahia, enviaram um ofício à Osid em que solicitavam ingressos. Na sexta (18), veio a confirmação.“Ela fez muitos milagres, milagres com as ações, milagres de vida com as crianças que atendeu”, opinou Juvenal, 43 anos.Os irmãos são cegos e têm mais quatro pessoas da família com deficiências visuais. “O que mais me admira é que ela é a santa que superou tudo, fez tudo sempre com dificuldade”, falou Marieta, 46 anos, que conheceu o trabalho da Freira por meio de um amigo de Vitória da Conquista, que já alardeava as boas ações da nova santa. O Vaticano reconheceu como um dos dois milagres da santa, no dia 14 de maio, a cura de José Maurício Moreira, baiano que foi cego por 14 anos e voltou a enxergar permanentemente em 2014, depois de apelar para Irmã Dulce.  

Numa cadeira de rodas, diagnosticada com uma patologia congênita que impede os movimentos, Amanda Brito agradeceu a Dulce pelo milagre da vida. Depois do nascimento, os médicos asseguravam que a menina de Catu não viveria mais de 20 dias. A avó Teresinha recorreu à fé para pedir que a neta saísse ilesa de todas as oito cirurgias. “A fé é valiosa. Irmã Dulce nos mostra que somos capazes de superar todas as dificuldades, essa sempre foi a essência de tudo”, avaliou Amanda, hoje moradora do Rio de Janeiro. No início da noite, as lanternas ligadas pelos fiéis começaram a iluminar a Arena Fonte Nova. Por pelo menos oito horas, e em nome de Dulce, todos transformaram Salvador em sua terra santa. 

Nova santa no altar Ao lado de São Francisco de Assis, Santo Antônio e Nossa Senhora, está Santa Dulce dos Pobres. A imagem da santa chegou à casa de Neilton na última semana, embora a devoção tenha surgido lentamente, ao longo dos anos e dos exemplos. Uma das quatro filhas do contador já acompanhava o avô à Osid nos últimos momentos de vida e a obra da freira era observada de longe por Neilton Galvão, 51 anos, ilheense que descobriu a história de Dulce apenas em 1985.“Era uma mulher muito forte, que transformou a vida de muita gente”, afirmou, vestido de blusa preta com a imagem do rosto da santa. A devoção na nova santa ganha cada vez mais espaço na casa e na vida dos católicos que já reconheciam Dulce como o “anjo bom da Bahia”. A imagem da santa sumiu das prataleiras, tamanha demanda, como mostrou reportagem do CORREIO na última sexta.

No pescoço, a aposentada Vera Velame, 85 anos, carregava as imagens de São Francisco de Assis, Santo Antônio e Nossa Senhora. A admiração por Dulce, que agora se converteu em fé, surgiu quando Vera era jovem e visitava conhecidas que eram pacientes na Osid. Um dia, depois de entrar no Hospital Santo Antônio, avistou a figura da freira.“Frágil e dócil ao mesmo tempo. Temos que agradecer muito a Deus por ela. Era doce, mas também austera, como toda santa deve ser”, recordou a aposentada. Desde os primeiros anos no antigo trabalho, um escritório de contabilidade na Avenida Djalma Dultra, Alzenete acompanhou a saga de Irmã Dulce. Da sala, avistava a freira pedindo dinheiro e doações para seus meninos e meninas."Falavam dela como 'uma velha' pidona. Eu ficava admirada. Agora sou devota também. Nas minhas rezas, ela já está", contou Alzenete Guedes, 70 anos, que conseguiu ingresso com a filha que é enfermeira da Osid.No mês passado, a aposentada comprou a primeira imagem da Santa Dulce dos Pobres. Pelo estádio, fieís seguravam pequenas e grandes esculturas, posteres e folhetos da nova santa. A santa que, agora, os baianos podem chamar de sua. 

*Com supervisão da chefe de reportagem Perla Ribeiro. 

**O projeto Pelos Olhos de Dulce tem o oferecimento do Jornal CORREIO e patrocínio do Hapvida.