Vetores da doença de Chagas, barbeiros tiram sossego de moradores de Alphaville

210 amostras do inseto foram coletadas este ano pelo Centro de Controle de Zoonoses (CCZ)

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  • Hilza Cordeiro

Publicado em 8 de novembro de 2019 às 05:43

- Atualizado há um ano

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. por Betto Jr./CORREIO

Quando levantou de madrugada para beber água, a farmacêutica Lorena Franchi, 37, deparou-se com um ponto preto na cortina. De longe, não reconheceu bem, mas ao se aproximar identificou que era um barbeiro, inseto vetor da Doença de Chagas. Assustada, Lorena imediatamente matou o bicho. O caso ocorreu há mais ou menos um mês, no bairro de Alphaville, onde ela mora. Só este ano, 210 amostras do inseto foram recolhidas para análise pelo Centro de Controle de Zoonoses (CCZ).

Deste total, 70% foi encontrado nos bairros de Alphaville e Le Parc e quase todos estavam contaminados. De acordo com a bióloga Eliaci Costa, subcoordenadora do CCZ, o aparecimento do inseto costuma acontecer a partir de setembro, quando as temperaturas por aqui ficam mais elevadas.

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O surgimento do barbeiro na rotina dos moradores de Alphaville remonta a 2006, quando a área começou a ser desmatada para a construção de empreendimentos. Antigamente, os barbeiros costumavam aparecer somente nas áreas comuns dos imóveis, mas agora eles já vêm sendo encontrados no interior de casas e apartamentos e é nessa situação que os especialistas estão de olho.

Não mate! Preocupada com o filho de dois anos, quando identificou o barbeiro, Lorena tratou logo de esmagá-lo, mas logo depois se informou que a recomendação é pegar o inseto com um saco ou frasco, guardar e acionar o CCZ para fazer a coleta. “Eu só soube depois através do grupo [de WhatsApp] do condomínio porque outras pessoas também encontraram e divulgaram que é possível notificar o órgão”, indicou. Por ser farmacêutica, ela aprendeu a identificar o barbeiro na faculdade, através das imagens nos livros e também da visualização ao vivo do próprio bicho. (Foto: Betto Jr./CORREIO) Diferente dela, a fotógrafa carioca Andresa de Sá, 41, nunca tinha visto um barbeiro até se deparar na semana passada com um na parede de sua casa, também em Alphaville. Quem a ajudou a identificar foi o marido, natural do interior da Bahia. A bióloga do CCZ relata que o barbeiro do tipo triatoma tibiamaculata, o mais comum encontrado por aqui, costuma ser muito confundido com percevejos. Conforme informativo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), esse tipo costuma ter entre 2,9 cm e 3,3 cm.“Meu marido reconheceu na hora, aí colocamos num potinho e entramos em contato com o CCZ. Eu realmente já tinha escutado falar, mas não pensei que ia chegar na minha casa, então não me preocupava porque quando ouvia sobre essas histórias achava que as pessoas encontravam no quintal”, contou  a fotógrafa.Depois que cercou o inseto no vasinho, ela mandou foto no grupo de WhatsApp para alertar os vizinhos. No dia em que o CCZ foi buscar a amostra, Andresa recebeu um panfleto informando para redobrar os cuidados e checar os sapatos antes de calçar e, também, observar os brinquedos das crianças.

Desmatamento

A subcoordenadora do CCZ lembrou que, no ano passado, 224 amostras foram coletadas e que os números eram mais do que o dobro no início da ocupação dos bairros. “Com o desmatamento desses locais, essa espécie ficou desalojada. Antes eles ainda ficavam mais restritos à mata, nossos técnicos faziam avaliação na mata mesmo”, lembrou.

Eliaci descreveu o barbeiro como um animal de hábitos noturnos e não agressivo, com baixa autonomia de voo. Mas, apesar de não voar bem, ele pode facilmente ser atingido por correntes de ar que o leva a alturas maiores. O CCZ encontrou amostras até no 15º andar de um prédio. E é justamente aí que mora o problema. Quando adentra aos apartamentos, o bicho representa risco para os humanos, principalmente crianças e animais de estimação.“Este inseto é silvestre, ele não tem o hábito de sugar sangue de pessoas, mas as crianças, por exemplo, que têm o hábito de levar a mão à boca, se não tiver alguém observando, elas podem se contaminar”, alertou Eliaci.No caso de cães e gatos, é possível que o barbeiro possa sugá-los, mas ainda não há registro desse fenômeno em Salvador pelo CCZ. O órgão pensa, inclusive, em dar início a uma pesquisa mais aprofundada sobre a questão e seus possíveis impactos, já que os insetos têm chegado cada vez mais aos domicílios. Desde 2006, o Centro de Zoonoses monitora Alphaville e, mais recentemente o Le Parc, a partir de 2016.

Baixo risco A capital baiana é considerada município de baixo risco para a Doença de Chagas, segundo a bióloga do CCZ. Em 2006, o Brasil recebeu o certificado internacional de eliminação do Triatoma Infestans, principal espécie de barbeiro responsável pela transmissão domiciliar da infecção. Comparado ao Infestans, o inseto silvestre que os moradores têm visto por aqui é mais preocupante.

Especialista em barbeiros, o pesquisador Cléber Galvão, do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), disse que o controle da espécie silvestre é mais difícil. “Não tem como entrar na mata e sair colocando inseticida. O trabalho de monitoramento dos órgãos tem que ser contínuo e é preciso alertar as pessoas permanentemente sobre isso”, informou Galvão.

No habitat natural, a principal vítima dos barbeiros costuma ser o sariguê (gambá) e outros marsupiais, como o morcego. Estes insetos costumam ficar escondidos em plantas, sobretudo nas folhas de palmeiras para aproveitar-se de vertebrados que buscam frutos. Pelo fato de o inseto ser silvestre, o Centro de Zoonoses não tem intenção de eliminá-los e o trabalho é concentrado no monitoramento da espécie.“A situação de chegar a fazer um controle químico [dedetização] só pode ser determinada se fossem encontrados ovos do inseto nas casas”, explicou a bióloga, acrescentando que só a partir disso poderia ser comprovada a domiciliação do vetor.Procurada, a Associação Alphaville Salvador Residencial, que administra condomínios na região afetada, não se manifestou sobre o protocolo adotado nos prédios quando os insetos são identificados.

O que fazer ao encontrar um possível barbeiro? Se você encontrou um inseto que suspeita ser um barbeiro, não o mate. A recomendação do Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) é que a pessoa pegue o besouro com uma luva ou saco plástico. Em seguida, pode-se colocar o bicho num recipiente onde ele possa respirar e então acionar o CCZ para fazer a coleta ou levá-lo a um Posto de Informação de Triatomíneos (PIT), onde os técnicos irão conferir se o exemplar capturado está infectado ou não. Confira aqui a lista de locais.

Os triatomíneos são uma família de insetos de várias espécies que se alimentam de sangue e atuam como vetores da Doença de Chagas. Eles são possíveis hospedeiros do Trypanosoma Cruzi, protozoário causador da enfermidade. 

Para notificar o CCZ sobre a aparição de barbeiros basta entrar em contato através do telefone 3611-7354.  Aparência do barbeiro Triatoma tibiamaculata (Foto: Fiocruz/Reprodução) Como evitar que o barbeiro entre em casa? Os barbeiros são insetos que voam atraídos pela luminosidade, então a primeira dica dos especialistas ouvidos pela reportagem é evitar deixar luzes acesas e fechar bem as janelas antes de dormir. De acordo com o pesquisador Cléber Galvão, da Fiocruz, essa espécie não vive nas casas e apartamentos e apenas invade residências esporadicamente. “Eles não criam colônias porque não são adaptados ainda, mas são perigosos e as pessoas correm risco de transmissão da doença”, afirmou. 

Então, para conter essas entradinhas eventuais e incômodas, a principal dica de Galvão é a adoção de barreiras físicas contra o inseto, como a instalação de telas. Além disso, também é importante manter sempre limpos os locais de preparo e manipulação de comidas já que existe uma via comum de contaminação através de alimentos. “O inseto voa, cai no alimento e a pessoa não vê”, alertou ele. É necessário ainda que as pessoas aprendam a identificar o barbeiro de forma voluntária e também através de esclarecimentos e campanhas públicas.

O que é e como se manifesta a Doença de Chagas? A Doença de Chagas é descrita pelo Ministério da Saúde como uma infecção causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi. A doença apresenta uma fase aguda, que pode ter sintomas ou não, e uma fase crônica. Na fase aguda, mais leve, a pessoa pode manifestar sinais como febre por mais de sete dias, dor de cabeça, fraqueza intensa, inchaço no rosto e pernas. Na fase crônica da doença, a maioria dos casos também costuma não apresentar sintomas, mas há relatos de problemas como insuficiência cardíaca, complicações digestivas como megacólon e megaesôfago.

As principais formas de transmissão da doença são: a vetorial, através do contato com fezes contaminadas dos barbeiros ou de picada de outros insetos transmissores; oral, pela ingestão de alimentos contaminados com parasitas; vertical, pela passagem do parasita da mãe gestante infectada para o bebê; transfusão de sangue ou transplante de órgãos de doadores infectados a receptores sadios; e acidental, pelo contato da pele ferida ou de mucosas com material contaminado durante manipulação em laboratório.

A depender dessas formas de transmissão, o período de incubação da doença  — intervalo entre a infecção e a manifestação de sintomas  — pode ser de 4 a 40 dias. O tratamento da Doença de Chagas deve ser indicado por um médico, após a confirmação de que o paciente foi infectado. O remédio de para controle, o benznidazol, é fornecido gratuitamente pelo Ministério da Saúde.

A prevenção da doença está interligada com a forma de transmissão. Ou seja, é preciso barrar o inseto. O Ministério da Saúde recomenda ainda o uso de proteção individual com roupas de mangas longas e repelentes, principalmente se for realizar atividades em áreas de mata. 

De acordo com o último boletim epidemiólogico de Doença de Chagas, emitido pela Secretaria de Saúde da Bahia (Sesab) em junho deste ano, a enfermidade é bastante expressiva no estado, com média anual de 624 mortes nos últimos dez anos (2008 a 2017). A Bahia possui a quarta maior taxa entre os estados, ficando atrás somente de Goiás, Distrito Federal e Minas Gerais. A proporção de morte revela que há um grande número de óbitos de pessoas negras (77%), fato que a secretaria atribui como resultado de injustos processos socioeconômicos e culturais. 

As cidades com risco mais elevado de taxa de mortalidade - calculada por 100 mil habitantes - para a doença são Santo Antônio de Jesus (16,4), Cruz das Almas (13,5), Jacobina (12,8), Itaberaba (10,3), Guanambi (9,5) e Barreiras (9,0). Os valores são referentes ao ano de 2017, período em que Salvador registrou 5 casos a cada 100 mil habitantes.

Considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma doença negligenciada, ela atinge 6 milhões de pessoas em 21 países da América Latina, conforme dados da ONG Drugs for Neglected Diseases Initiative (Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas). A instituição calcula que a infecção causa 14 mil mortes por ano nesta região.