Viagem à semente

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  • Paulo Sales

Publicado em 7 de dezembro de 2020 às 09:13

- Atualizado há um ano

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Um grande amigo me mandou uma frase de Louise Glück, poeta norte-americana que ganhou o último Nobel de Literatura: “Olhamos para o mundo uma vez, na infância. O resto é memória”. É como se o único olhar despido de passado fosse o da nossa aurora. Um olhar límpido, não maculado pela enorme carga de sofrimento, perda e frustração que o ser humano carrega a partir do momento em que avança – primeiro engatinhando, depois dando os primeiros passos – rumo à construção da própria história.

A frase de Glück me fez relembrar do meu primeiro olhar para o mundo: a imagem do meu irmão recém-nascido na cama dos meus pais. Recordo a madeira clara da cabeceira e a roupinha branca que ele usava. Pela nossa diferença de idade, eu devia ter dois anos. Guardo também imagens enevoadas da primeira escola e da cama de ferro, dessas de hospital, na qual minha avó materna passou seus últimos dias, embora não consiga lembrar dela. A partir daí, começam a aparecer filmes curtos com começo, meio e fim, e não apenas flashes isolados e sem sentido.

Fico intrigado com o fato de não lembrar de nada antes dos dois anos de vida, muito menos dos nove meses em que permaneci imerso numa caverna escura e aconchegante. É um período relativamente longo, sobre o qual paira apenas breu. Mas, por menos que lembremos de quem fomos quando bebês, há muito da nossa infância mais remota nos adultos em que nos convertemos. Carregamos centelhas sensoriais que dizem muito do ambiente em que vivíamos, do amor que recebemos (ou não) e da avalanche de sentimentos passada via cordão umbilical por nossas mães. Muitas dessas centelhas permanecem, mesmo que nossa consciência seja incapaz de traduzi-las.

Avanço trinta anos. Agora quem eu vejo é minha filha bebê, e essas são as memórias dela: sua primeira recordação sou eu trocando sua fralda, talvez porque tenha feito isso raras vezes quando era recém-nascida. Minha filha lembra também dos meus pais fazendo com ela uma brincadeira chamada Maria Cadeira, possivelmente a única imagem que guarda com alguma nitidez do avô paterno, morto quando ela tinha três anos.

Minha filha não lembra, portanto, da primeira vez em que a aninhei nos meus braços com todo cuidado, para que parasse de chorar, e ela adormeceu quase de imediato. Ou da noite em que assistimos juntos ao filme Procurando Nemo. Desta vez fui eu que chorei, sentindo a falta do meu pai que morrera pouco antes, e ela me abraçou distraída, como se me acalentasse, dizendo: “Papai, eu te amo”. Isso diz muito sobre minha filha e talvez mais ainda sobre mim, já que a primeira infância dos filhos é antes de tudo território dos pais.

Recentemente, a cantora e escritora Patti Smith confessou, numa bonita entrevista ao El País: “Vivo no passado e no presente. Na minha cabeça e na rua. Às vezes, olhar para trás é doloroso. Perdi tanta gente: meu marido, Robert, Sam, meus pais, meu cachorro, meu irmão... Mas outras vezes uma fotografia ou um livro te permitem trazê-los até o presente e te devolvem essa pessoa por um momento. A imaginação serve para viajar para o desconhecido ou para o conhecido. Tem essa força.”

Sou assim também. Tateio no escuro, em busca do que existe de mais remoto em mim, para compreender os sentimentos que me atravessam desde o momento em que me percebi como gente. Ou quem sabe é só uma necessidade de entender o meu assombro diante do absurdo da existência, não apenas a minha, mas a de todos nós. Tão ou mais assustadora que a morte é a criação de uma nova vida. Uma célula que se multiplica ao infinito dentro de outro corpo até se expandir e ganhar o mundo com lágrimas, gritos, espanto e uma absoluta incompreensão de si mesma e de tudo que está ao redor.