Vítima que denunciou ginecologista tinha acabado de sofrer aborto; leia depoimentos

CORREIO ouviu mulheres de 19 e 30 anos; polícia investiga o caso

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  • Mario Bitencourt

Publicado em 16 de maio de 2019 às 05:10

- Atualizado há um ano

. Crédito: Mário Bittencourt/CORREIO e Reprodução

Clínica onde pacientes relatam ter sofrido assédio (Foto: Mário Bittencourt/CORREIO) Já são nove as queixas de assédio sexual registradas por mulheres na Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam) em Vitória da Conquista, Sudoeste do estado, contra o médico ginecologista e obstetra Orcione Júnior, desde que os supostos crimes vieram à tona em um perfil nas redes sociais, na sexta-feira passada.

Elas fazem parte de um grupo de 24 mulheres que buscaram apoio jurídico na Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), na segunda-feira passada, e fizeram relatos emocionados diante da delegada titular da Deam, Dercimária Cardoso Gonçalves, que está agendando os depoimentos aos poucos.

O médico, por meio do advogado Paulo de Tarso, nega as acusações e diz estar sendo vítima de calúnia e difamação. Por conta da situação, ele deixou de fazer atendimentos em sua clínica particular, no bairro Brasil (zona oeste da cidade) e nos hospitais onde trabalha.

Nessa quarta-feira (15), o CORREIO conversou com três dessas mulheres que estiveram na delegacia. Duas delas possuem mais de 30 anos e foram atendidas por Orcione Júnior em 2015, e a outra tem 19 anos e diz ter sido atendida no início deste mês. Uma das mulheres de 30 anos diz que, além de assédio, sofreu também abuso sexual.“Fui atendida duas vezes. Na primeira, eu queria orientações porque tive uma gestação muito difícil e estava tentando engravidar  uma segunda vez e queria orientações de medicamento para preparar meu corpo.”Ela disse que, quando entrou na sala, foi recebida na porta: “Ele me abraçou e deu um beijo no rosto próximo da boca, tocou na mão, disse que eu era muito bonita, se tinha namorado, perguntou porque estava ali, e eu disse que queria preparar o meu corpo para uma segunda gestação, então ele ironizou e falou que ‘eu não precisava preparar meu corpo, porque meu corpo era lindo’.”

Ela disse que ficou em choque e só voltou uma segunda vez em uma situação emergencial. “Existia uma suspeita de gestação. Comecei a perder sangue no trabalho e me desloquei até uma emergência de um hospital, só que não tinha obstetra, fui para outro hospital, mas não tinha comprovação de gestação, então fui ao HCC [hospital local, onde o médico atende]”.

A vítima tinha sofrido um aborto espontâneo. Mesmo assim, “ele começou a massagear meus seios, o que não era mais natural numa situação de aborto, já não fazia mais parte do protocolo. Não era uma massagem de um médico, era um toque de homem. E aí desceu por minha barriga, enquanto ele alisava todo o meu corpo, inclusive minha vagina, sem luva”.

Ainda segundo ela, o médico pediu exames, mas, desesperada, ela não voltou mais (veja depoimento abaixo).

A outra mulher com mais de 30 anos diz que, em 2015, também no HCC, buscou o médico para fazer um exame ginecológico. “Quando entrei, estava tudo normal, me troquei e me deitei na maca. Mas, enquanto ele colhia o meu material, ele começou a estimular o meu clitóris com a mão esquerda e sem luva.”

Sem reação “No momento, eu fiquei travada, não tive reação, imaginei que fosse coisa da minha cabeça, ele não falava nada e não perguntava nada também, minhas pernas tremiam, demorou uns 4 a 5 minutos, mas para mim foi uma eternidade”, disse.

O médico, segundo a mulher, falou para levar os resultados dos exames em 30 dias, mas ela não quis voltar. “Na época, não quis comentar com ninguém porque, como disse a colega, imaginei que era só comigo, então por ser algo constrangedor e vergonhoso não quis comentar.”

Ela contou que “achava que as pessoas fossem me julgar ou dizer que dei ousadia a ele, liberdade a ele, então não comentei”. Mas há pouco mais de um ano, ela disse que chegou a fazer um breve relato num grupo de WhatsApp composto por mulheres.

“Uma mulher pediu indicação de ginecologista e alguém colocou o nome dele [do médico Orcione Júnior] e eu dei um relato rápido de que não gostei da postura dele e depois umas três ou quatro mulheres também falaram. A gente pensa que acontece com um grupo restrito, imagina que seria minoria diante de um médico, a gente tem esse receio de denunciar.”

A moça de 19 anos disse ter sido atendida no consultório do profissional. “Ele tocava meu clitóris de forma sensual, massageando, como se estivesse me estimulando para o sexo”, afirmou.

“Na hora de tirar a pressão, eu ainda deitada na maca, ele encostou o pênis dele na minha mão, senti que estava ereto e tirei, fiquei assustada e não consegui falar mais nada”, disse a jovem.   Depoimentos foram colhidos na Deam de Conquista (Foto: Mário Bittencourt/CORREIO) Busca por apoio Os depoimentos das mulheres estão recebendo o acompanhamento da advogada Andressa Gusmão, membro da Comissão da Mulher Advogada da Subseção da OAB local. Para ela, “as pessoas estão muito revoltadas por amor ao próximo”.

“Poderia ser algo com qualquer mulher, não é um caso isolado. É um tipo de crime que, em muitas vezes, a vítima é silenciada, se acha pequena diante de um profissional reconhecido, ou por não ter provas, acha que a palavra dela não vai ter validade na palavra do médico, mas está havendo uma adesão muito grande da população”.

A advogada contou que dos relatos que ouviu deu para perceber que “isso afetou a vida de muitas delas, não conseguiram se relacionar com seus parceiros, com seus maridos, e não conseguiram seguir o ritmo normal da vida”.

“A reunião da OAB foi comovente, e a gente percebe uma identidade nos depoimentos e que elas não têm dúvida do que ocorreu, que se sentiram violadas, constrangidas, todas têm muita certeza”, completou.

A delegada Dercimária Cardoso Gonçalves informou que está agendando os depoimentos das demais mulheres que foram à OAB. As mulheres que prestaram queixa na terça-feira, segundo a delegada, disseram que o médico acariciava o clitóris das pacientes, de forma a estimular o sexo, e fazia elogios às partes íntimas.

As mulheres contaram que se sentiram incomodadas com massagens nos seios por parte do médico, durante os exames. A forma como o médico as tocava, segundo disseram, tinha conotação sexual.“O que elas relatam são casos de assédio sexual e pode ser enquadrado até como abuso sexual, mas vamos analisar os casos para ver em que tipo de crime podemos tipificar os relatos”, disse a delegada, que preferiu não dar outros detalhes sobre os depoimentos.A OAB informou que, além de apoio jurídico, as mulheres vão receber assistência psicológica no Centro de Referência Albertina Vasconcelos, pertencente à rede pública de saúde municipal.

De acordo com a OAB, outras mulheres, além das 24 que estiveram na reunião na segunda, entraram em contato com a Ordem para relatar terem sido assediadas e manifestar interesse em prestar queixa contra o médico na delegacia, mas não soube precisar quantas mais. Elas são de outras cidades da Bahia, Salvador e de fora do Brasil.   Advogada Andressa Gusmão acompanha o caso (Foto: Mário Bittencourt/CORREIO) Outro lado O advogado Paulo de Tarso, que defende o médico Orcione Júnior, disse que “o que está ocorrendo é um linchamento virtual contra o médico Orcione Júnior, vítima de calúnia e difamação”.

Paulo de Tarso disse que já havia identificado a autoria da mulher que criou o perfil “diganaovca” e fez o primeiro relato contra o médico, contudo a pessoa indicada afirmou que nunca foi atendida pelo médico e que apenas compartilhou a informação recebida sobre a denúncia: “Eu nem conheço a autora da denúncia, só achei o caso absurdo”, declarou a moça.

Segundo o advogado Paulo de Tarso, o médico Orcione Júnior prefere não dar entrevista sobre o caso por enquanto, pois “está com o psicológico muito abalado”. Contudo, afirmou que nesta sexta-feira (17) será data entrevista pelo médico, que, ainda conforme o advogado, planeja deixar a Bahia, devido a repercussão do caso.

Sobre as queixas na delegacia, ele disse: “Fazer o quê? Isso começou com uma notícia falsa, mas as pessoas foram lá. Vai ver se realmente fez, se não fez, o que estou combatendo e estou indignado é que independente do resultado de um processo desse, o fato é que ele já foi condenado, já estão chamando ele até de estuprador”.

“Se as pessoas tivessem ido à delegacia, houvesse um processo, depois da condenação fizessem a divulgação, aí poderia até ser. Mas não pode condenar um cara antes para depois apurar. A Justiça vai apurar, e o médico nega que tenha assediado as mulheres”, declarou o advogado.

A OAB informou que já oficiou o Ministério Público da Bahia sobre o caso, mas o órgão prefere não se pronunciar por enquanto. Questionado se há alguma investigação contra o médico Orciole Júnior, o Cremeb informou que “não pode compartilhar informações sobre denúncias e processos que tramitam no Tribunal de Ética Médica, pois estes conteúdos estão sob sigilo processual”.

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Relato de uma das mulheres de 30 anos:

"Fui atendida duas vezes, na primeira eu queria orientações porque tive uma gestação muito difícil e estava tentando engravidar por uma segunda vez e queria orientações de medicamento para preparar meu corpo.

Quando entrei na sala dele, me recebeu na porta, ele me abraçou e deu um beijo no rosto próximo da boca, tocou na mão, disse que eu era muito bonita, se tinha namorado, perguntou porque estava ali, e eu disse que queria preparar o meu corpo para uma segunda gestação, então ele ironizou e falou que ‘eu não precisava preparar meu corpo, porque meu corpo era lindo’.

Nesse momento, eu fiquei em choque, não soube como reagir. Ele pediu uns exames e não voltei lá. Na segunda vez, foi uma situação emergencial, existia uma suspeita de gestação, só que não estava comprovado.”

A mulher disse que estava com algumas semanas de gravidez, mas que ainda só tinha suspeitas por conta do atraso no ciclo mestrual:

"Comecei a perder sangue no trabalho e me desloquei até uma emergência de um hospital, só que não tinha obstetra, fui para outro hospital, mas não tinha comprovação de gestação, então fui ao HCC [hospital local], as meninas conseguiram um encache, me passaram à frente de outras pacientes.

Ele me pediu pra ir ao banheiro trocar de roupa, e, quando voltei, ele já estava perto da maca; ele meio que me ajudou a subir na maca, segurando na minha cintura. Eu já achei aquilo muito estranho, estava muito abalada, sentindo dor. Eu pensei que era por conta da minha situação em si.

Relatei o sangramento e disse que poderia ser uma gestação. Ele me fez o toque intravaginal e constatou que o útero apresentava características de aborto espontâneo.”

Massagem sem luvas

“Quando terminou, ele tirou as luvas e começou a massagear meus seios, o que não era mais natural numa situação de aborto, já não fazia mais parte do protocolo, começou a massagear, não era uma massagem de um médico, era um toque de homem.

E aí desceu por minha barriga, enquanto ele alisava todo o meu corpo, inclusive minha vagina, sem luva. Ele me elogiava e dizia que eu não ficasse preocupada, que eu tinha condições de engravidar novamente, que aquilo era natural [a mulher chora e pausa a fala nesse momento], por ser nas primeiras semanas de gestações.Ele acariciava todo o meu corpo, dizia que era uma criança em má formação, que eu poderia ter outras gestações, pediu exames e que eu retornasse, eu não voltei. Preferi arcar com as consequências físicas para mim.Eu saí dali muito desesperada, meu noivo na época estava do lado de fora. Eu chorava muito, e ele entendia que era por conta do aborto, mas não era só por isso. Eu estava abortando um filho que eu não tinha nem certeza que estava esperando e ao mesmo tempo tinha acabado de sofrer um abuso.

Naquele momento não tive coragem de conversar com ninguém. Eu achava que só tinha acontecido comigo, eu achava que eu estava ficando louca, que estava fantasiando coisas.

E quando vi o relato no Instagram voltei a viver tudo que tinha vivido em 2015. Era como se estivesse vivendo aquele momento. Desde então [da publicação no Instagram], não consigo me alimentar direito, estou dormindo à base de remédio.

Depois do fato, eu fiz uma ultrassonografia com outro médico, e ele me informou que estava tudo tranquilo, o útero estava limpo. E toquei minha vida, preferi bloquear aquele momento.

Foram os relatos no Instagram que me fizeram vir aqui na delegacia, a gente acha que só aconteceu com a gente. Nossa sociedade é muito baseada no status. A gente acha que a voz de um não vai ter valor nenhum diante de um médico que até então tem a sua reputação intocada.

A gente tem medo disso ter acontecido só com a gente e ninguém acreditar. Quando eu vi que outras pessoa tinham passado por aquilo, vi que não era a única e que tinham relatos mais doloridos.

Tenho uma filha de 10 anos, da primeira gestação, e é muito mais por ela que estou aqui, para que ela nunca passe a dor que passei. Eu fiquei um tempo sem ir ao ginecologista, coloquei na cabeça que não queria mais engravidar. Mas voltei para ginecologista mulher.”