Vivos para a ciência: cadáveres podem ser doados para simulação de cirurgias

Universidades tentam incentivar doações de corpos, como já acontece em países como os Estados Unidos

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  • Hilza Cordeiro

Publicado em 24 de novembro de 2019 às 06:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Quintino Brito/CORREIO

Decidido a contribuir com o progresso da ciência, David Smith, 45 anos, viajou cerca de 6,2 mil quilômetros da cidade de Miami, nos Estados Unidos, até Salvador. Embora tenha chegado aqui identificado apenas com uma numeração e um prontuário médico, ele ganhou um nome nesta reportagem para humanizar melhor sua história. David é um cadáver. Antes de morrer, no entanto, ele decidiu doar seu corpo para pesquisas. 

Agora, ele ajuda na formação de inúmeros estudantes da área de saúde no Instituto de Treinamento em Cadáveres (ITC) da Faculdade de Ciência e Tecnologia, na Avenida Paralela, na capital baiana.

Mas David não é um cadáver comum, como os que costumam ser embalsamados em formol. Ele é um corpo fresco, congelado logo após a morte e mantido assim até o momento da aula. Essa configuração é determinante para a conservação mais apurada das características anatômicas do corpo humano. Há duas semanas, David emprestou sua cabeça para que 25 profissionais de odontologia aprimorassem suas habilidades em cirurgia ortognática, que corrige deformações do maxilar.

Ministrante do curso, a dentista Vanessa Castro explica que os cadáveres frescos são a forma mais próxima do real para a realização de procedimentos cirúrgicos. Numa realidade um tanto mais rudimentar, os estudantes estariam praticando nos chamados manequins - como são chamados os crânios artificiais. “O que os alunos fazem nesses corpos é idêntico ao que vão realizar no paciente. É diferente de fazer num boneco, que não tem os mesmos tecidos, a mesma estrutura óssea. Aqui, eles veem a dificuldade de serrar um osso, por exemplo”, explica ela, que tem 25 anos de experiência e conheceu o método nos EUA. Aluno do curso, Antônio Irineu Neto, 38, graduado pela Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), buscou a formação como atualização. Ele acrescenta que a mucosa, a pele e o osso não conseguem ser imitadas pelos manequins. “Com os cadáveres, eu consigo refinar as minhas técnicas e incorporo para melhorar meus resultados”, justifica.

Oração ao cadáver desconhecido No mesmo local inaugurado há seis meses, já foram realizados cursos de neurocirurgia, rinoplastia e harmonização facial. Antes de iniciarem qualquer um destes procedimentos, no entanto, os alunos precisam, primeiro, fazer uma oração em homenagem ao cadáver desconhecido, através da leitura de um texto escrito em 1976. 

Grafado na entrada do ITC, lê-se um trecho: “[...] Seu nome, só Deus o sabe, mas o destino inexorável deu-lhe o poder e a grandeza de servir à humanidade que por ele passou indiferente”.

Ao todo, o instituto possui 20 “peças anatômicas” importadas. Diz-se peças porque não é o corpo completo. Cabeça, tronco e membros superiores e inferiores são separados. A separação é melhor para o estudo e também para o acondicionamento contra a decomposição.  Estudantes de universidade no Rio Grande do Sul fazem cerimônias para incentivar doação de corpos (Foto: Divulgação) Legislação brasileira Trazer esses corpos do exterior tornou-se mais conveniente para algumas organizações porque a legislação brasileira determina que os cadáveres só podem ser destinados à escolas de medicina depois de passados 30 dias sem que tenham sido reivindicados pelas famílias. 

Após esse prazo, as entidades interessadas precisam publicar, por pelo menos 10 dias, uma nota nos principais jornais da cidade, informando o falecimento. “Às vezes, fala-se em burocracia de uma maneira pejorativa, mas muitas vezes ela é que dá a segurança nos processos. Nesses casos, há famílias do interior e de outros estados que às vezes não sabem que um determinado parente morreu, então precisa desse tempo para buscar notícias”, explica o médico legista Raul Barreto, ex-diretor geral do Departamento de Polícia Técnica (DPT). 

Neste intervalo de pelo menos 40 dias no IML, o corpo pode perder algumas das condições naturais dos tecidos. “No Instituto Médico Legal (IML), os indivíduos ficam num freezer a -10°C, empedrados mesmo. Enquanto está congelado, o corpo não decompõe. O problema é quando o corpo já chega em início de decomposição”, descreve. 

Os indivíduos que tiveram morte violenta ou por doença infecciosa não podem ter os corpos doados. O primeiro porque, se a justiça tiver dúvidas sobre o processo, terá que exumá-lo. E o segundo porque há riscos de contágio.

De acordo com os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Bahia teve em 2017 mais de 87 mil mortes — uma média 238 por dia. Desse total, foram quase 71 mil mortes naturais e 10,5 mil violentas.

Incentivo No caso dos cadáveres frescos importados, eles são congelados logo após a morte. Isso só é possível porque, nos EUIA, as famílias são mais incentivadas a doar os corpos.

André Nazar, coordenador geral dos cursos de Medicina da FTC, explica que, quando uma pessoa decide ceder, já que não é necessário fazer sepultamento, a família fica dispensada dos custos de velórios, que chegam a custar 7 mil dólares (R$ 28 mil) por lá. As empresas que assumem os cadáveres selam um compromisso de cremá-los e devolver as cinzas para as famílias após o fim das pesquisas. 

A permissão para importação de amostras biológicas destinadas à pesquisa tem um controle especial feito pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por meio de uma resolução de 2017. De acordo com o órgão, estabelece-se que a autorização não é imediata e cada caso depende de aval da agência. A solicitação para importação deve ser avaliada no prazo de até 48h após a chegada do produto em território nacional.

Corrida pelos cadáveres Por ter menos burocracia para a compra, as faculdades particulares acabam saindo na frente na corrida pelos cadáveres, uma vez que as instituições  públicas precisam licitar quase todos os tipos de produtos e têm restrições financeiras para anúncios em jornais. A aquisição de cadáveres pela maioria das instituições de ensino brasileiras é feita através de convênio com a Secretaria de Segurança Pública. 

De acordo com a professora Telma Masuko, do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Bahia (ICS-Ufba), com o aumento do número de faculdades no país e a diminuição de corpos não reclamados, a solução para a escassez de cadáveres foi promover a conscientização para a doação de corpo, intensificada nesta última década. 

É que, mesmo com todo o avanço da tecnologia, o corpo humano é insubstituível. Masuko classifica o cadáver como o primeiro paciente e resume a importância de estudar por meio deles numa pergunta: “Em qual cirurgião um cidadão gostaria de ser operado? Em um que estudou o corpo humano em cadáver ou em um que estudou em modelos artificiais?”. Telma Masuko é pesquisadora e professora do Instituto de Ciências da Saúde da Ufba (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Conservação Por causa da dificuldade em adquirir cadáveres, os alunos de todas as disciplinas de anatomia da Ufba costumam estudar em peças já dissecadas. O Departamento de Biomorfologia da universidade não utiliza cadáveres frescos e faz atividades com peças anatômicas fixadas, ou seja, que levam conservantes contra a decomposição e que Masuko considera ser mais vantajoso economicamente, já que podem ser usados mais vezes.

O Departamento, inclusive, está desenvolvendo uma nova forma de conservar os corpos que recebe. Telma Masuko conseguiu produzir uma solução em que o corpo fica mais maleável e não precisa ficar mergulhado num tanque de formol, sendo possível mantê-lo em temperatura ambiente dentro de um saco de óbito. Os testes já foram feitos em um cadáver doado.

Ufba cria programa para incentivar doações Há dois anos, a Universidade Federal da Bahia (Ufba) iniciou um programa de doação de corpo chamado “Vida Além da Vida” para desenvolver uma campanha de informação para a população geral e a comunidade acadêmica sobre a possibilidade de doação voluntária de corpos em vida ou de um ente querido. Foi depois do lançamento que a instituição passou a receber um cadáver por ano.

Para esclarecer o que é e como proceder com relação a isso, os pesquisadores realizarão a I Cerimônia de Homenagem ao Corpo, marcada para acontecer amanhã, às 18h, no auditório do PAF 1 da universidade. É possível inscrever-se neste link. Após o evento, o programa de doação estará disponível online no site do Instituto de Ciências da Saúde.“Eu sempre quis doar o meu corpo para uma instituição de ensino, mas não podia fazê-lo antes porque minha mãe não aceitava. Após o seu falecimento, foi mais fácil convencer a família. Hoje sou também doadora de corpo para a Ufba”, conta a professora Masuko, que descreve o corpo humano como o “melhor livro que o aluno pode estudar”, afirma.Criadora do programa de doação de corpos da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), a médica cirurgiã Andréa Oxley conta que a universidade foi uma das pioneiras do país, em 2008, e que, de lá para cá, descobriu que as pessoas não têm preconceitos e nem resistência em ceder o corpo às pesquisas.

“O que vimos é que elas sequer sabiam sobre a possibilidade de doar”, revela ela, que é vice-presidente da Sociedade Brasileira de Anatomia (SBA). Atualmente, a UFCSPA possui um banco de dados com 700 pessoas cadastradas.

Enterros fazem parte da cultura brasileira A doação de corpo às universidades é uma alternativa a mais, entre enterro e cremação, para o destino do cadáver. O presidente da Sociedade Brasileira de Anatomia (SBA), Célio Fernando Rodrigues, lembra que é parte da cultura brasileira enterrar os entes e visitar suas ossadas no dia de Finados, mas que haveria muito mais benefício social na doação para a ciência.“O corpo poderia estar servindo à sociedade, como um ato de amor ao próximo. Acho que, se existem anjos, para quem acredita, eles são essas pessoas que fazem bem ao outro”, argumenta Rodrigues.Para a psicóloga baiana Catarine Reis, a morte coloca as pessoas diante da finitude do corpo, da impotência e da irreversibilidade sobre a vida. O sepultamento, segundo ela, é uma representação social simbólica da experiência de despedida que ajuda as pessoas a suportar a morte como algo natural.

“Mesmo que vivas, não são as memórias que mantêm a imagem concreta de quem se foi. O corpo representa essa possibilidade, o palpável, um símbolo da existência da pessoa”, explica a psicóloga.

Atualmente, Salvador possui 10 cemitérios públicos que totalizam 15 mil vagas. O número já é insuficiente e a prefeitura autorizou, neste ano, uma expansão com mais de mil novas gavetas. De acordo com estimativa da Secretaria Municipal de Obras Públicas (Semop), a administração gasta cerca de R$ 800 mil ao ano com a mão de obra de 25 sepultadores que trabalham nas unidades cemiteriais. 

A secretaria não fornece o caixão e nem arca com os custos funerários. A realização do rito feito pelo município tem uma taxa única - R$ 33,42 para adulto, R$ 16,71 para criança e R$ 113,26 para o enterro em gavetas.

Saiba como doar seu corpo à ciência A Sociedade Brasileira de Anatomia (SBA) argumenta que a doação permite que médicos possam desenvolver novos procedimentos cirúrgicos, cada vez menos agressivos e eficientes. Além disso, defende que a contribuição permite enxergar as variações de indivíduos e possibilita uma formação mais humanística dos estudantes. Outro benefício listado pela organização é de que isso ajuda no desenvolvimento das pesquisas médico-científicas que, no futuro, poderão beneficiar toda a humanidade.

1. Escolher uma instituição de ensino na área da saúde para doar o corpo

2. Entrar em contato com o responsável da instituição para manifestar sua intenção e verificar eventuais orientações

3. Imprimir e preencher o Termo de Intenção de Doação para fins de ensino e pesquisa

4. Assinar o termo, juntamente com 2 testemunhas que podem ser parentes de primeiro grau (pais, filhos, irmãos, cônjuge), de preferência, ou outras pessoas

5. Reconhecer a firma da assinatura do doador no cartório

6. Se quiser, poderá registrar o termo no cartório. O registro é opcional

7. Deve-se enviar para a instituição de ensino o termo de doação original e manter pelo menos 1 cópia autenticada em família