'Xô, pobres': entenda o que é aporofobia, denunciada por padre em Salvador

Caso de restaurante evidenciou discussão sobre aversão a pobres; pessoas em situação de rua denunciam 'construções hostis'

  • Foto do(a) author(a) Thais Borges
  • Thais Borges

Publicado em 22 de janeiro de 2022 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Paula Fróes/CORREIO
Heyder também acredita que os itens de concreto foram colocados para retirar as pessoas do local por Foto: Paula Fróes/CORREIO

As imagens de garras de ferro instaladas no canteiro de um restaurante de alto padrão na Graça, na semana passada, assustaram muita gente. Após a denúncia nas redes sociais do padre Júlio Lancellotti, conhecido por sua atuação pelos direitos humanos, o episódio envolvendo o estabelecimento Mignon, que tem um dos bufês por quilo mais caros de Salvador, foi apontado como um caso de aporofobia - uma aversão a pobres - na cidade. 

Mas, ao mesmo tempo em que essa situação serviu para chamar a atenção para um problema antigo e popularizar o conceito, ela não traz surpresa para quem vive a aporofobia todos os dias. “Colocaram essas coisas para tirar a gente daí”, diz a autônoma Luísa*, 49 anos, apontando intervenções de concreto - bolas e canteiros - instaladas embaixo do viaduto do Politeama, onde fica com a família há anos.  Bolas e canteiros de concreto foram instalados embaixo do viaduto do Politeama, onde Luísa está com a família (Foto: Paula Fróes/CORREIO) Os itens foram colocados há cerca de seis meses no local. São pesados e fixados ao chão. “Disseram que era ponto de droga. Que droga tem aqui?”, diz, ao lado de três filhas com idades entre um e 14 anos. 

Grávida do sétimo filho, Luísa vive com quatro deles e o marido. “Eles vêm e levam tudo. Na semana passada, tiraram tudo da minha bebê”. Natural de Minas Gerais, chegou à Bahia aos oito anos. Há cinco anos, quando a mãe morreu, foi expulsa de casa pelos irmãos. Desde então, está na rua. 

Ela prefere ficar no Politeama do que ir para algum dos Centros POP, os locais de referência para acolher a população em situação de rua oferecidos pela Secretaria Municipal de Promoção Social e Combate à Pobreza (Sempre). 

Isso não quer dizer que Luísa se sinta tranquila na rua. À noite, para que ela possa dormir, alguém tem que ficar acordado. “Se me dessem um (imóvel do) ‘Minha Casa, Minha Vida’, eu iria para onde quer que fosse. Tudo para sair da rua com meus filhos”.

Leia mais: 'A gente banaliza a crueldade, diz padre Júlio Lancellotti, sobre aversão a pobres Luísa está nas ruas de Salvador há cinco anos com a família, incluindo uma criança de um ano (Foto: Paula Fróes/CORREIO) Histórico À primeira vista, aporofobia pode parecer uma coisa nova. De fato, o termo, cunhado pela filósofa espanhola Adela Cortina, professora da Universidade de Valência, existe há pouco mais de 20 anos, mas foi eleito como a palavra do ano em 2017, pela Fundação Espanhol Urgente. 

No Brasil, o conceito tem se tornado mais conhecido desde o ano passado, devido à atuação do padre Júlio Lancellotti, líder da paróquia de São Miguel Arcanjo, em São Paulo, e ativista pelos direitos das pessoas em situação de rua. 

Aporofobia é um termo que vem da junção de duas palavras gregas, segundo a própria Adela Cortina: ‘áporos’, o pobre, e ‘fóbeo’, que refere-se à repulsa, ao ódio, ao medo. Assim, ‘aporofobia’ passou a significar a aversão a pessoas pobres. Daí decorrem estigmas como os de que pessoas pobres são sujas ou perigosas, por exemplo. 

“A gente sabia que existia, mas não tinha o nome”, diz o padre Júlio Lancellotti. “Essa aversão sempre existiu, como existe a aversão a mulher, a negro. Se a mulher é pobre, é uma aversão maior. Se é uma mulher negra pobre, é maior. Se é uma mulher trans, é pior ainda”, acrescenta.

Ainda no período de colonização e de formação da cidade, Salvador já havia expulsado os primeiros trabalhadores negros, pobres e escravizados, para o contexto da rua, como lembra a assistente social Sandra Carvalho, do Núcleo Pop Rua da Defensoria Pública do Estado (DPE). 

“Desde o século 19, já tinha a lei da vadiagem, que, se as pessoas estivessem na rua e não comprovassem que trabalhavam, podiam cumprir até 30 dias de prisão. Essa população tem cor, é uma população preta, e é necessário que a gente leve em consideração esses contextos”, reforça.   Sem estatísticas oficiais, percepção de órgãos é que a população em situação de rua aumentou na pandemia (Foto: Paula Fróes/CORREIO) É difícil ter estatísticas, mas há indícios de que o número de pessoas em situação de rua aumentou. Essa é a percepção diária de quem trabalha diretamente com essa população, segundo Sandra. Com isso, as situações aporofóbicas têm ficado mais gritantes, em alguns contextos.“Existe um imaginário que as pessoas vão para a rua porque querem. Mas existem questões estruturais relacionadas ao desemprego. Estamos vivendo uma crise econômica com outras crises”.‘Desprezo’ Há oito anos nas ruas de Salvador, o autônomo Heyder Santos, 38, ficou calejado com abordagens agressivas - de outros moradores da cidade até violência institucional. Há poucos meses, na Sete Portas, foram instalados os mesmos equipamentos de concreto do Politeama. A leitura de Heyder é a mesma de Luísa: foi uma tentativa de tirá-los do local. Heyder está nas ruas de Salvador há oito anos; na Sete Portas, já viu todo tipo de abordagem (Foto: Paula Fróes/CORREIO) Heyder tem parentes que vivem na região do Matatu de Brotas. A convivência foi afetada por ‘brigas e drogas’, em suas palavras e, desde então, está na rua.“Eles querem mostrar para o público que está melhor, mas o trabalho tem que ser de ajudar o outro. Não é porque a gente é pobre que deve ser desprezado, nem jogado na boca do leão”, lamenta. [[galeria]]

Entre as ações aporofóbicas mais comuns em Salvador, há diferentes níveis. Segundo a assistente social da DPE, Sandra Carvalho, há desde as casas de programas sociais que são ofertados em locais distantes - onde essas pessoas tiram sustento - até obras. Ela cita também o fato de que algumas das principais praças da cidade, como a da Piedade e do Campo Grande, ficarem fechadas à noite. “O cercamento é para impedir que as pessoas em situação de rua durmam nas praças".

Outro exemplo comum em Salvador é a plantação de cactos embaixo, por exemplo, de prédios particulares, como na Rua Banco dos Ingleses, no Campo Grande. O objetivo é impedir que a população em situação de rua durma nesses locais. 

Em estabelecimentos privados, são comuns as denúncias que chegam à DPE de intervenções através de profissionais de segurança. É o caso dos mercados, que têm funcionários para proibir que pessoas peçam esmola. “Mulheres com filhos ficam nas portas usando a mendicância, que é uma estratégia de sobrevivência. Mas elas são expulsas dos locais”, diz Sandra. 

Há, ainda, movimentos contra esmolas. Em 2014, um desses chamou atenção. A Paróquia Nossa Senhora da Luz, na Pituba, lançou uma campanha chamada ‘Pituba sem Esmolas’ e, na época, a justificativa foi de que era uma tentativa de estimular doações ao trabalho desenvolvido pela igreja com essa população. Plantar cactos também é uma estratégia de aporofobia (Foto: Paula Fróes/CORREIO) Legislação Em novembro, a Comissão de Desenvolvimento Urbano da Câmara dos Deputados aprovou a proposta da lei nomeada ‘Padre Júlio Lancelotti’, que proíbe técnicas de construção hostis ao uso de pessoas em situação de rua nos espaços públicos. O projeto altera um item do Estatuto da Cidade e foi proposto pelo senador Fabiano Contarato (PT-ES). No Senado, foi aprovado em abril do ano passado. 

Na Câmara, o relator da proposta foi o deputado federal baiano Joseildo Ramos (PT-BA), que deu o parecer para aprovação. Segundo o parlamentar, o Estatuto da Cidade não trata diretamente das pessoas em situação de rua. “É preciso que a lei exista, mas é preciso que não pare só na lei. Precisamos ter políticas públicas. A pobreza, a marginalização e a exclusão social devem ser combatidas pelo poder público”, reforça. 

Atualmente, o projeto está na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, antes de seguir para votação no plenário. Ainda assim, o deputado acredita que deve haver dificuldades para a aprovação do texto. “Porém, a simplicidade do caso e a vacância no artigo do Estatuto da Cidade chamam atenção. Existem leis estaduais e municipais, efetivamente, mas (no âmbito) federal havia essa lacuna”, defende. 

O caso do restaurante Mignon, em Salvador, tinha sido denunciado também pela vereadora Maria Marighella (PT-BA), que protocolou um projeto de lei contra técnicos de construção hostis na Câmara Municipal de Salvador, na última quinta-feira (20). Segundo a assessoria da vereadora, a proposta só deve aparecer no sistema da Casa com o retorno das atividades parlamentares, a partir do dia 2 de fevereiro. O texto propõe uma alteração no Código de Polícia Administrativa de Salvador. "Num Brasil onde crescem a fome, a miséria e o desemprego, famílias inteiras foram morar nas ruas. As cidades precisam ser lugares de acolhimento", diz a vereadora, no projeto.

As situações de aporofobia, inclusive, violam os direitos humanos, como explica a advogada Márcia Cavalcante, doutoranda em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Goiás e professora da PUC-GO. “Muitas vezes temos políticas públicas omissas ou ausência de políticas públicas de acolhimento, de repúdio à aporofobia”, diz. 

Para ela, porém, não adianta que existam leis ou políticas públicas se as pessoas em geral repudiam a cidadania e a dignidade humana. Assim, o primeiro passo para uma mudança de cenário seria uma conscientização da sociedade. 

As políticas públicas seriam a segunda etapa. “A aprovação dessa lei não vai ter eficácia enquanto a sociedade não se conscientizar de que nós mesmos temos que ter políticas civilizatórias. Não adianta ter só a lei criminalizando. Se fosse assim, não existiriam homicídios, não existiriam feminicídios”, acrescenta.

Abordagens Através da assessoria, a Secretaria Municipal de Promoção Social e Combate à Pobreza (Sempre) informou que “as estruturas de concreto não foram colocadas com o objetivo de retirar as pessoas em situação de rua de nenhum local”. A pasta relatou que o mesmo conceito de intervenção é adotado em parques, praças e outros locais da cidade. A Sempre diz que a equipe do Serviço Especializado de Abordagem percorre diariamente a cidade para oferecer acolhimento e serviços à população em vulnerabilidade social. 

“Após abordagens sociais, as pessoas identificadas em situação de vulnerabilidade são acolhidas em unidades institucionais, que contam com assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros, educadores sociais e suporte jurídico, estrutura de lazer, quarto individualizado e cinco refeições para que os assistidos superem definitivamente a situação de vulnerabilidade social”, explica a pasta, em nota. 

Ainda de acordo com a Sempre, são 1.080 vagas para acolhimento em unidades que ficam, nos locais onde a população em situação de rua se concentra. “Toda e qualquer ação da Sempre é precedida pelo diálogo com a população em situação de rua e o acolhimento não é coercitivo”, acrescentam. 

Já a Guarda Civil Municipal (GCM) informou que não tem contato direto com pessoas em situação de vulnerabilidade. Esse atendimento costuma ser feito pela Sempre e a GCM acompanha as operações para garantir a segurança dos servidores. Como responsável pelas praças municipais, a GCM foi quem determinou o fechamento dos espaços à noite. De acordo com a assessoria da corporação, nos locais, foram identificados altos índices de vandalismo, que incluíam de pichação à depredação. Assim, o objetivo do fechamento é a preservação dos locais, já que as ações de vandalismo aumentam durante a madrugada.

No caso do restaurante Mignon, que havia instalado ponteiras de metal nos canteiros, a justificativa do estabelecimento foi de que existe uma caixa d’água no local cuja tampa teria sido roubada “diversas vezes”. 

Em nota divulgada nas redes sociais, o restaurante informou que, “depois de diversos questionamentos sobre o material escolhido e consultoria com arquitetos, a empresa decidiu substituir as ponteiras por outro sistema de proteção”. O restaurante pediu desculpas e agradeceu aos que “colaboraram para a criação de uma solução mais eficaz”. 

Pessoas em situação de rua reclamam também da abordagem de servidores públicos (Foto: Paula Fróes/CORREIO)

Após repercussão, restaurante retirou garras de ferro (Foto: Paula Fróes/CORREIO) É possível pensar uma cidade sem intervenções hostis, diz pesquisador O caso das garras de ferro no restaurante Mignon não é incomum. Segundo o arquiteto e urbanista Tarcísio Gontijo Cunha, doutorando na Universidade Federal de Minas Gerais, dispositivos como fincos metálicos, pedras, holofotes, aspersores de água, bancos segmentados, plantas pontiagudas e grades têm se proliferado nas cidades com um discurso de segurança. Isso tem acontecido tanto em espaços públicos quanto em estabelecimentos privados. 

"Todos esses dispositivos objetivam, na verdade, dificultar ou desestimular a permanência de pessoas e têm sido uma face cruel da aporofobia, uma vez que interferem diretamente na relação da cidade com as pessoas", diz Cunha. "Cair sobre um finco metálico, uma pedra ou uma planta pontiaguda pode trazer riscos sérios à saúde de qualquer pessoa, independente de idade e condição social; mas, mais do que isso, deparar-se com um dispositivo desses é ter restringido seu direito de uso do espaço público", acrescenta. 

Nos espaços urbanos, ele aponta que a aporofobia está presente em aspectos que vão desde a supressão histórica de moradias precárias nas áreas centrais de grandes cidades à construção de conjuntos habitacionais afastados das ofertas de comércio, serviços e transportes, assim como a distribuição desigual dos recursos financeiros entre as regiões das cidades. 

"Infelizmente o problema da aporofobia não é apenas de (re)desenho dos espaços. É possível pensar uma cidade em que estejam proibidas essas intervenções hostis e onde os espaços públicos sejam seguros não porque contam com câmeras e cercas elétricas mas porque são bem iluminados, ambientalmente confortáveis e contam com pessoas interagindo de forma a explorar todas as possibilidades inscritas nesses espaços", exemplifica o pesquisador, citando a possibilidade de descanso em áreas de sombra, pontos de encontro, prática de exercícios físicos em áreas planas e até dormir em áreas tranquilas. 

Para Cunha, o espaço urbano reflete a sociedade. "A sociedade civil é parte essencial nesse processo, através do compromisso em não normalizar situações que contrariem a dignidade humana e através da formação de cidadãos que busquem assumir a perspectiva dos que sofrem. Enfim, trabalhar para a construção de uma eticidade - uma ética incorporada à vida", acrescenta.