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Rodrigo Daniel Silva
Publicado em 4 de setembro de 2025 às 05:30
Pouca gente sabe, mas Antonio Carlos Magalhães, o ex-senador baiano que hoje completaria 98 anos se estivesse vivo, tinha uma paixão que fugia completamente da política: era um verdadeiro noveleiro. Amava as tramas da televisão, em especial a “novela das oito”, da TV Globo, e não perdia um capítulo. O detalhe curioso é que seu repertório novelesco não ficava restrito à sala de casa. ACM levava referências das novelas até para os palanques. >
Um dos episódios mais saborosos dessa faceta aconteceu no início dos anos 2000, quando o líder político foi a Paramirim, no sudoeste da Bahia, ao lado do então governador César Borges e do senador Paulo Souto. No microfone, diante da plateia, resolveu apimentar o discurso misturando política e teledramaturgia.>
Naquele período, o Brasil inteiro estava vidrado em O Clone, de Glória Perez, com a marroquina Jade (Giovanna Antonelli) e os gêmeos Diogo e Lucas (Murilo Benício). Foi aí que ACM, com seu jeito mordaz, disparou: “Enquanto nós estamos aqui com vocês, trabalhando, inaugurando obras, vocês sabem onde estão os deputados da oposição? No Marrocos! E sabem fazendo o quê? Foram assistir ao casamento da Jade”.>
A anedota virou risada geral. Paulo Souto, ex-governador e companheiro de décadas de ACM, recorda o episódio até hoje com humor. “Ele falava que em comício ‘tem que ter frases de efeito e pancadas no adversários’”, diz. Assim, entre obras inauguradas e ironias afiadas, ACM provava que até a ficção podia ser convertida em arma política. Aliás, o improviso nos discursos era uma das marcas mais fortes de sua trajetória política, relembram amigos próximos.>
O jornalista e amigo de ACM ao longo de 17 anos, Demóstenes Teixeira, lembra que, quando governador, Antonio Carlos era convidado para abrir inúmeros eventos e congressos, especialmente na área médica, que reuniam especialistas como cardiologistas, pediatras e ortopedistas. Nessas ocasiões, bastava dar uma rápida olhada na programação para construir um discurso de improviso. >
Demóstenes Teixeira
JornalistaAos cardiologistas, falava sobre os avanços da tecnologia em cirurgias cardíacas e a importância dos exames preventivos. Aos pediatras, ressaltava a necessidade de o Estado oferecer assistência à primeira infância. Fazia o mesmo em encontros sobre agricultura, comércio, indústria, energia ou tecnologia, sempre encontrando um gancho capaz de impressionar a audiência.>
“Sempre tinha um mote e impressionava a audiência. Tinha essa facilidade porque era bem informado, lia todas as seções de inúmeros jornais, diariamente. Lia até, dizia ele, a coluna de ‘falecimentos’, onde, de vez em quando - contava - encontrava boas notícias”, recorda Demóstenes.>
O empresário Antonio Carlos Júnior, filho do ex-senador, conta que o pai sempre demonstrou prazer em falar para o público. Foi, inclusive, orador da turma quando se formou em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (Ufba) em 1952. Ele fazia questão de que os discursos fossem breves, para não cansar a plateia. O tempo ideal, dizia, era de cerca de sete minutos. “Ele realmente gostava de discursar, fosse em comícios, eventos ou festas. Tinha uma facilidade absurda para improvisar e empolgava porque falava muito com o coração”, recorda.>
ACM Júnior
Empresário e ex-senadorA oratória de Antonio Carlos Magalhães foi tão marcante que acabou conquistando admiradores - entre eles, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Em sua autobiografia “A Arte da Política – A História que Vivi”, FHC revela que aprendeu a discursar observando ACM, a quem descrevia como “um peixe n’água nos comícios”.>
Fernando Henrique Cardoso, então candidato à Presidência, recorda que, durante um comício em Canudos, ouviu atentamente os discursos do deputado federal Luís Eduardo Magalhães, de Paulo Souto e, por fim, de ACM. Quando chegou sua vez de falar à multidão, fez sua intervenção. >
Ao final do evento, Fernando Henrique ouviu de ACM um comentário direto, sem rodeios: “Ah, o senhor está melhorando…”. Mais tarde, o ex-presidente relataria em suas memórias: “(Percebi) que uma coisa é um comício no interior de São Paulo, outra, no sertão do Bahia ou, mais diferente ainda, na Amazônia”.>
ACM Neto
Prefeito de SalvadorÉ justamente essa habilidade de adaptação que o ex-prefeito de Salvador, ACM Neto, recorda do avô. “Ele sempre procurava sentir o ambiente, o clima. Ajustava as palavras, a entonação e até o gestual conforme cada momento. Tinha uma forma muito própria de se dirigir às pessoas e sabia prender a atenção de quem o ouvia. O discurso era um dos pontos mais fortes da sua atuação política”, afirma Neto, hoje vice-presidente nacional do União Brasil.>
Antonio Carlos pertenceu a uma geração de políticos que dominava a arte do discurso nos palanques, ao lado de nomes como Carlos Lacerda e Tancredo Neves. Amigos lembram que, entre todos, era justamente Lacerda - ex-governador da Guanabara e proprietário do jornal Tribuna da Imprensa - quem ACM mais admirava quando discursava. “Quando ACM era deputado federal, Carlos Lacerda era o centro de todas as atenções na Câmara dos Deputados. Era o grande orador”, diz Demóstenes Teixeira.>
O jornalista relembra que, para eventos oficiais - como cerimônias de posse ou solenidades de Estado -, ACM dedicava-se à preparação de seus discursos, ansioso por exibir não apenas autoridade, mas também erudição. >
Dois de seus principais ‘ghostwriters’ eram o próprio Demóstenes Teixeira e o advogado Barbosa Romeo, homem de perfil discreto e inteligência afiada, que também trilhou carreira política como vereador, deputado e secretário.>
Aos finais de semana, os três costumavam se encontrar na orla de Salvador para praticar cooper. Enquanto corriam à beira-mar, as conversas iam muito além da política: mergulhavam em discussões literárias. “Não se engane: (ACM) era um homem que tinha leitura, culto, de bom gosto. Tinha uma biblioteca maravilhosa. Entendia não apenas de arte sacra, mas também de artes plásticas, esculturas, música, literatura e - o que pode ser surpresa para muitos - de poesia”, afirma Demóstenes.>
Demóstenes Teixeira rememora a preparação de Antonio Carlos para a posse de Dom Frei Lucas Moreira Neves na Academia de Letras da Bahia (ALB) em 2000. A elaboração daquele discurso consumiu pelo menos dois meses de trabalho intenso de Barbosa Romeo e Demóstenes. ACM queria impressionar o religioso, por quem não nutria grande simpatia. “Ele o achava muito posudo, metido a intelectual”, revela o jornalista.>
A dupla de ‘ghostwriters’ mergulhou em uma pesquisa minuciosa. Eles leram todos os livros publicados por Dom Lucas em busca de citações e inspiração. O trabalho foi tão a fundo que incluiu a consulta a encíclicas papais. >
ACM leu o discurso pronto no próprio dia do evento. Após a leitura, solicitou alterações de última hora. A versão final só foi entregue já dentro da sede da ABL, momentos antes da cerimônia começar.>
“Antonio Carlos leu, foi muito aplaudido, e Dom Lucas ficou surpreso e emocionado. Esperava uma saudação rápida, de improviso. E se desculpou por não ter - por questões de saúde - preparado uma peça de oratória à altura do evento e do orador que o saudou. ACM gostou tanto do constrangimento de Dom Lucas que, ao final, me cumprimentou e disse: ‘Demóstenes, vamos comemorar!’”, recorda o jornalista.>
Foi no Senado que ACM fez os discursos mais combativos. “Ele assumiu posições políticas mais bravas”, diz o jornalista e ex-conselheiro do Tribunal de Contas dos Municípios (TCM), Fernando Vita. >
Além de ter sido prefeito de Salvador e governador da Bahia, Antonio Carlos exerceu dois mandatos como senador (1995-2001 e 2003-2007). Nesse período, protagonizou discursos que ficaram marcados na história política, como o “Não queremos chavismo no Brasil”, proferido no plenário do Senado em 8 de fevereiro de 2007, e o “Não foi para protelar, para não decidir, que o povo baiano me fez senador”, dito dois dias antes. Ambos estão preservados no acervo do Instituto ACM.>
“Quando ele subia para falar na tribuna do Senado, as pessoas já pensavam: ‘o que ACM vai dizer hoje, o que vai falar’. Sempre a fala dele vinha acompanhada de uma mensagem que impactava. Isso é fundamental para quem faz discursos”, ressalta ACM Neto.>
Um dos discursos mais emblemáticos de Antonio Carlos ganhou repercussão na internet em tempos em que o termo “viralizar” sequer era usado. >
Durante a crise do mensalão, que abalou o primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o baiano subiu à tribuna do Senado para condenar o escândalo. O vídeo acumula hoje quase 90 mil visualizações no YouTube.>
“Estou cumprindo o meu dever. Venho à tribuna com as forças que ainda tenho para lutar e defender a Bahia e o Brasil”, afirmou Antonio Carlos, na ocasião.>