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Ivan Dias Marques
Publicado em 29 de março de 2017 às 06:00
- Atualizado há 2 anos
O baiano é um povo alegre cumazorra. Mas pense numa felicidade é quando o cara tá lá nos canfundós do mundo, todo embalado igual a um chokito, passando frio e ouve um ‘oxe’. Rapaz, o cidadão levanta parecendo touro quando vê vermelho. Porque encontrar outro baiano, ainda mais longe dessa terra lambuzada de dendê até as ventas, não é só uma questão de conterraneidade. É de necessidade.>
Um baiano sozinho é um cidadão perdido no mundo. Dois baianos - ou mais - já dá para organizar uma festa, perturbar uns e outros e, melhor, se sentir livre para se expressar do jeito que a pessoa realmente é. Até porque o baianês não dá pra copiar - e não por falta de tentativa.>
“Tem que viver aqui, conviver com nosso tipo de humor, um espírito moleque, de gozar com a cara dos outros. O baianês é usado para isso e as pessoas de fora não conseguem contextualizar”, diz o escritor Nivaldo Lariú (ives), autor do famoso Dicionário de Baianês, lançado em 1993 e já na 6ª edição.>
E vivendo aqui é que se conhece que, às vezes, não se sabe mais o que é gíria e o que não é. O baianês se confunde com o português, são indissociáveis. De tão comuns, expressões típicas dos baianos ou dos que adotaram a Bahia acabam usadas no cotidiano como se fossem ‘oficialmente’ da nossa língua, como ‘lamentável’ no sentido de ‘deprimente’. A pessoa nem sente. Lá ele. O dia tá nublado... mas e quem disse que baiano liga? Todo mundo metendo dança!(Foto: Arisson Marinho/Arquivo CORREIO)NovidadeEm cada beco, viela, gueto e favela, principalmente, as expressões novas do baianês se proliferam. No Carnaval, então... a gíria pega e pode ser exportada. “As expressões ficam por algum tempo e são incorporadas ou caem em desuso. Eu anoto, espero para ver se escuto novamente. Consulto vários amigos pela periferia, vejo se pegou ou não. E só assim eu incorporo ao dicionário”, conta Lariú, que tem como principal técnica ‘ouvir a conversa duzôto’.>
E desde o fim de 2016, passando pelo Carnaval, a moda é meter dança. Se você não ouviu a expressão ainda, se acostume. A princípio, a origem é musical, de dançar e dançar bem, o famoso ‘botar pra f****’, mas a gíria já ganhou até um significado aprofundado (lá ele) para ser usada em qualquer momento que a pessoa se saia bem, inclusive sem música.>
O Carnaval talvez seja o maior momento de expressividade do baianês porque é o encontro real e claro de todos os povos da cidade e onde o canto (e o grito) da periferia é amplificado nas letras de bandas e grupos ali originados.>
“(O baianês) tem como características a musicalidade e a vivacidade expressiva, um abundante uso de metáforas. É um dialeto rico, criador verbal”, diz o antropólogo Ordep Serra. “Muitas dessas criações verbais, além da musicalidade natural desse falar da Bahia, que é muito apreciada, é, sobretudo, do falar dos negros dos bairros populares”.>
É de lá que vêm expressões como ‘apertar a mente’ (encher o saco, ficar no pé), ‘comediar’ (fazendo de besta), ‘vá botar a boca na maré da vazante’ (‘vire esse olho gordo pra lá’), ‘dar a ideia’ (falar), ‘barril’ (algo explosivo, que pode ser num sentido bom ou ruim, a depender do uso) ou ‘quem vai lá é coelho’ (lugar ou situação arriscada). Outras surgiram ou foram popularizadas a partir de canções, como Pegue sua Visão (A Bronkka) e Cole na Corda (Psirico). >
Serra defende que o baianês tem uma origem muito mais complexa e uma denominação mais acadêmica do que somente uma coleção de gírias. “O dialeto pode ser uma variedade linguística mutuamente inteligível ou ininteligível. A gente pode chamar de um dialeto regional, no caso, inteligível. É muito rico e muito bonito. Reflete um modo de pensar, um estilo de vida. É muito interessante”, opina.>
Dialeto De acordo com Serra, o nosso dialeto é o que é devido a uma confluência de línguas e de cultura: “Aconteceu uma coisa chamada koiné cultural. Negros de diferentes origens, da África Subequatoriana, basicamente falante de língua bantu, e gente do oeste da África, de língua jêje, aqui se misturaram bastante. O português que veio pra cá já era muito variado, além das línguas indígenas. O preponderante, pra mim, são as línguas negras, que sobreviveram em textos cristalizados, como orações, cantos e recitais”.>
Se já há estudos sobre o vocabulário desses textos, ainda falta os linguistas descobrirem de que forma os escritos em iorubá, fon, kimbundu, kicongo e jêje serviram de substrato fonético para a semântica e a sintaxe do português falado na Bahia e no desenvolvimento isolado dele como dialeto. >
É desse caldeirão que surge tanta musicalidade e criatividade. Para Serra, a tendência é que o baianês siga crescendo e se renovando nos guetos. “A segregação na Bahia tem aumentado brutalmente. Então, as pessoas criam linguajares próprios, nos seus guetos, nos seus nichos. E, às vezes, essa criatividade é estimulada pela necessidade de se defender dos outros”, entende.>
Já Lariú acredita que as novas palavras vêm diminuindo. “Acho que a violência e a televisão têm isolado as pessoas em casa, dificultando o surgimento de expressões novas. A produção tá diminuindo. É uma cultura típica nossa, é preciso preservar”, crê.>
Assim ou assado, é fato que ninguém constrói ou descontrói o português, uma língua teoricamente dura (lá ele), cheia de travas e erres, numa língua mais doce e fácil de ser ouvida. Talvez esteja aí o segredo da nossa malemolência e ‘ozadia’. Ou não. >
Leitores dão a ideiaO CORREIO fez duas perguntas a seus leitores sobre o baianês no Instagram e no Facebook. A primeira era ‘Quais as expressões novas do baianês?’. No Facebook, a leitora Érica Araújo sugeriu duas: ‘de boa’ e ‘dar um esquente’. Já Wellington Sales mandou logo uma fila de expressões: ‘qual foi, pivete? Aqui é barril! É tudo nosso, nada deles’, escreveu, citando a música do cantor Igor Kannário.>
No Instagram, @laarimachado também opinou com duas (‘desarme’ e ‘deixe de marmota’), assim como @lyu_santos09 (‘meteu dança’ e ‘pare de armar’). Já @liahsant lembrou de ‘Para que tá feio’. Para @rogeldo, uma nova expressão do baianês é ‘fazendo pala de banana da terra’ (seja lá o que isso signifique).>
Depois, o CORREIO perguntou aos leitores qual era a expressão em baianês que as pessoas mais respeitavam. Aí, não teve muita surpresa. Nosso ‘oxe’, assim simples ou na versão turbinada (‘oxe, oxe, oxe’) teve a preferência da maioria dos leitores. Mas outras foram citadas, como ‘Me deixe, viu?’ (por Sônia Rodrigues do Santos), ‘pegue a visão’ (Thalita Teixeira Santigo), ‘ó paí, ó’ (Ângela Ars) e o famosíssimo ‘lá ele’ (Neymisson Costa).>