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'Baiano' e 'Baiana', por João Filho

No dia do aniversário da capital baiana, o CORREIO convidou artistas para escrever sobre a cidade

  • D
  • Da Redação

Publicado em 29 de março de 2014 às 14:07

 - Atualizado há 2 anos

Na comemoração pelos 465 anos de fundação da cidade, o jornal convidou artistas para escrever sobre a aniversariante. As cantoras Ivete Sangalo, Claudia Leitte e Rosa Passos, os compositores e músicos Carlinhos Brown, Manno Góes, Saulo Fernandes e Marcela Bellas, os diretores teatrais Marcio Meirelles e Fernando Guerreiro, o artista plástico Bel Borba,  o poeta Nelson Macca, os escritores João Filho, Alexis Leila e Mãe Stella de Oxóssi e o produtor cultural Andrezão Gomes atenderam ao convite e produziram os textos para o CORREIO celebrar Salvador neste 29 de março. Confira ao longo do dia, no Correio24horas, todas as produções.Por João Filho, escritor*BaianoO baiano é uma entidade. Quer dizer, pode-se até tentar depreendê-lo em estudos sistemáticos em várias áreas do saber humano, como antropologia, sociologia, filosofia e outras vias, mas ele permanecerá inapreensível. Sua personalidade percorre, sem perder a unidade nem descambar para a esquizofrenia, todas as letras do alfabeto. Se há baianos que são gregos clássicos comendo vatapá — não me deixam mentir os grandes poetas daqui que possuem essa índole — há outros que preferem o escracho do verbo solto no boteco ou na fila da lotérica. Há o baiano barroco, literalmente falando. São aqueles que são o paradoxo encarnado, respiram as contradições do menos e do mais, do alto e do baixo, do silêncio e da eloquência, do gelo e do fogo etc. num só conjunto e na maior tranquilidade.Um amigo meu é um místico, uma vida toda voltada para orações, meditação, jejuns, contemplação do mundo criado etc. Outro é a gandaia em pessoa. Um carnaval ambulante. Com eles aprendi que o baiano é um acontecimento distinto e independente. Eu sei, eu sei, soa a regionalismo exacerbado e barato, mas conviva e comprove. O fato de ter sido Salvador a primeira capital do Brasil não passaria ileso pela psique do baiano. Daí seu nascimento em forma de inauguração. E tal fato, convenhamos, marca definitivamente todo um povo. Nós baianos temos o carma da primogenitura. E, em termos, trocado por um prato de lentinhas não diminui em nada essa condição. Como bem diz mestre Gilberto Freyre, o termo baiano traz em si a marca da ambiguidade: por um lado, foi a representação maior de civilidade e polidez aristocrática; por outro, a inépcia para a ação viril e militar.O baiano vive a existência à revelia com sua filosofia do cacete armado. Ele prefere o desconcerto ao redor de um eixo mais ou menos fixo e, se possível, histórico. Explico. Palacetes, casarões coloniais, monumentos centenários e outras edificações mais ou menos suntuosas, são os eixos com alguma fixidez para que ele, o baiano, desenvolva, quer dizer, edifique seu cacete armado. Estes são as construções improvisadas de qualquer espécie: casa, barraco, bar, boteco etc. Se o exterior é reflexo do interior, logo, ser baiano é uma experiência aberta, um arranjo que se molda ao instante e dele equilibra ou desequilibra a vida inteira. Baiano não morre de depressão, mata de pirraça.Como atestar a autenticidade de um baiano? Há uma prova gastronômica simples, esta: rejeitou farinha, acarajé ou pimenta não é baiano. E se for, nasceu com defeito. Pois todo baiano tem um pé no dendê. Ele é uma entidade. BaianaDesconfiem de certas qualidades erotizadas que tentam qualificar ou desqualificar esse compêndio de antagonismos que é a mulher baiana. Comumente redutoras. A lenda existe, mas não da forma rasteira que muitos não baianos apregoam.Vinicius de Moraes (1913-1980) enxergou em uma a “graça de pantera/no andar bem-comportado de menina”.  Procede, mas é apenas um dos aspectos a ser considerado. Há uma delicadeza não ferina, um tipo de suavidade acolhedora, percebida não no olhar, mas no sorriso. Sol de um dia ameno que aquece e restaura o indivíduo.A rua é um ponto neutro de observação. O bom observador não interfere fisicamente no que observa, mas se deixa influenciar. A intimidade na relação se dá somente no espaço mental. Assim atuando, atente para a leveza do passo coadunada com a decisão ao caminhar, a cor da pele que sugere a sinuosidade de seda marrom e outras delicadezas, o feitio do corpo inteiro que deslumbra e desperta ao se deslocar por entre a multidão. E ela vai numa beleza concentrada que se autoignora, daí mais admirável. Sua passagem deixa um rastro de força e claridade. Mesmo aquelas baianas monumentais — e falo em proporção, em todos os sentidos, tão altas e lindas que doem, mas não machucam —, mesmo essas possuem sua parcela de suavidade.Estou num ponto de ônibus lotado, às seis da tarde, o calor da estação humilha a todos. Jovens senhoras, tão cansadas que não sei como se aguentam, pesadonas andam com dificuldade, madrugaram e, inescrupulosamente, de sol a lua, labutam; em casa, as espera um deserto doméstico que atravessarão à força; praticamente todas são mães, e de mais de um. Guerreiras? Mulheres lendárias como Joana D’Arc, Judite, Artemísia? Qualquer epíteto que eu empregue soará antinatural. Contudo, são mulheres admiráveis. Como suportam? Ninhas, Lucienes, Neides anônimas. Muitas boterianas, outras longilíneas feito figuras de Giacometti. Suportam. Dito isso, é preciso acrescentar que a mãe baiana possui algo do protecionismo exacerbado da mãe judia.O dito anedótico de que a baiana não nasce, acontece, e não morre, sai de cena, é um problema e uma solução que andam de mãos dadas. Em Salvador, a criação de mitos é feita a toque de caixa — rápida e ensurdecedora. O problema: o amor-próprio demasiado é, na maioria das vezes, depreciativo. A solução: ninguém pode com uma baiana.Rainhas negras, loiras nórdicas, asiáticas apuradas, galegas, espanholas, belgas, francesas, todas, todas mestiças sem igual. Se o baiano é uma entidade, a baiana é uma autarquia.*Os dois verbetes são inéditos para o CORREIO e fazem parte do livro que será lançado agora em abril, Dicionário Amoroso de Salvador