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Carol Neves
Publicado em 5 de dezembro de 2025 às 06:02
Zigomar José Albuquerque do Sacramento, 42 anos, operário da Companhia Petroquímica de Camaçari e taxista para complementar a renda, entrou no Motel Vip’s, na Estrada do Coco, em Lauro de Freitas, depois de um dia de praia com a mulher, Edina. Zigomar estava de férias e aproveitou a data, 30 de setembro de 1984, para celebrar seus 20 anos de casamento. A intenção era simples: almoçar e descansar algumas horas antes de voltar para casa. Nada indicava que aquele programa rotineiro terminaria em um dos episódios de violência mais chocantes registrados na região metropolitana de Salvador.>
Dentro do quarto 315, Zigomar repetiu um hábito que já havia praticado outras vezes: rabiscou a inicial do próprio nome na parede. O “Z”, marca pessoal que deixava por onde passava, foi notado pela camareira, que avisou a portaria. O que começou como um registro banal de dano ao patrimônio ganhou proporções descontroladas e terminaria com a morte do operário. >
Sessão de espancamento>
Ao deixar o motel, pouco mais de duas horas depois da chegada, o casal aguardou que a corrente do estacionamento fosse baixada. Nesse instante, o Monza de Zigomar foi fechado por outro veículo idêntico, dirigido por Isauro Pazos Gerpe, 37 anos. Logo depois, surgiu o sócio dele, Francisco Ramiro Ferreiro Espasandin, 26, visivelmente alterado "e com revólver na mão”, relatou uma testemunha à época. Os dois espanhóis eram os sócios no comando do estabelecimento. >
Caso Zigomar chocou a Bahia
Os dois impediram a saída de Zigomar. A esposa saiu do carro e correu para tentar pedir socorro, mas foi rapidamente imobilizada. Uma camareira que presenciou a cena contou que os donos diziam que Zigomar "ia ter que pagar o prejuízo causado nas paredes do apartamento". Marcar letra Z era uma mania de Zigomar e ele já tinha repetido o feito várias vezes no Vip's. “Eu vi dezenas de tapetes marcados com a letra Z inutilizados no depósito”, disse uma testemunha na época. A defesa dos acusados chegou a alegar depois que ele danificou vários apartamentos do motel usando uma tinta spray não lavável em tapetes e paredes.>
Desesperado, Zigomar chegou a oferecer o próprio carro e cheques para cobrir o prejuízo. Não houve negociação. Ele e a mulher foram levados para dentro do estabelecimento, onde Edina foi trancada em um depósito de bebidas e Zigomar foi levado a um quarto, dando início a uma sessão de tortura. "Na realidade sua intenção era mesmo matar o homem na pancada", lembrou uma funcionária, falando de Francisco. "O Isauro era o mais controlado, mas seu Francisco era um autêntico selvagem", contou ao CORREIO na época um garçom que trabalhava no motel. >
Testemunhas contaram que os donos do motel obrigaram Zigomar a se ajoelhar; ouviu-se a justificativa: “um homem não pode morrer sem rezar”. O relato de uma camareira relembrava os momentos de terror: “Eles cometeram uma crueldade com o pobre homem e nós assistimos tudo com receio de que também fôssemos mortos. Seu Francisco estava com um revólver na mão e dizia que mataria qualquer um.” Um garçom contou que se recusou a presenciar as cenas e chegou a ser espancado. >
Enquanto Zigomar era brutalmente espancado, Edina ficou trancada por horas, recebendo algumas bofetadas. Só foi libertada já de noite, informaram os funcionários - e, na delegacia, registrou o caso como sequestro, sem ainda saber o que havia acontecido ao marido.>
Após mais de sete horas de agressões, o espancamento terminou com a morte de Zigomar. Com escoriações por todo o corpo e o crânio partido, ele foi colocado no próprio carro e deixado num terreno baldio atrás de outro motel em Itinga, a cerca de dois quilômetros do Vip’s. Além do homicídio, foram feitas acusações de roubo - itens do carro de Zigomar, como o toca-fitas e cartões, desapareceram.>
Fuga e demora nas diligências>
A investigação inicial foi marcada por falhas e pelo que testemunhas e autoridades mais tarde qualificaram como atraso. A prisão preventiva foi decretada, mas Isauro e Francisco deixaram o país dias depois. A fuga começaria já no dia 1º de outubro, horas após o abandono do corpo de Zigomar. >
Na madrugada de 1º de outubro, poucas horas após o abandono do corpo, Francisco e Isauro ainda estavam escondidos dentro do próprio Vip’s. Policiais chegaram a falar com eles pelo interfone, acreditando que conversavam com alguém do lado de fora, e foram embora sem revistar o estabelecimento. Quando voltaram, na manhã seguinte, “eles já haviam partido”. >
Nos dias que se seguiram, a dupla chegou a prometer se entregar, mas isso nunca aconteceu. Os dois cruzaram cidades do interior baiano: passaram por Ilhéus, onde alugaram um carro, e por Ubaíra, onde visitaram conhecidos. Rumores de que teriam sido vistos também em Cruz das Almas levaram o delegado da cidade a mobilizar diligências, mas “não havia sequer vestígio dos criminosos”. A sensação geral era de que os dois se moviam sempre à frente das equipes de busca.>
No dia 6 de outubro, já longe da Região Metropolitana, a presença deles foi confirmada em Ilhéus, de onde seguiram para o Rio de Janeiro em um carro fretado pela locadora Locar. De lá, embarcaram para a Europa utilizando nomes fictícios, numa viagem que a imprensa da época descreveu com indignação: “Viajaram para Portugal, utilizando nomes fictícios, e protegidos pelos chefões da máfia dos motéis”. Em 16 de outubro, a polícia baiana confirmou oficialmente que Francisco e Isauro já estavam em Portugal, de onde retornaram rapidamente à Espanha, amparados por uma rede de conterrâneos.>
A população questionava se houve conivência e suborno e se a fuga teve ajuda da polícia. “O que houve, e todo mundo sabe disso, foi o atraso imperdoável no início das investigações e o poderio econômico facilitando a fuga dos assassinos”, avaliou falando ao CORREIO, 15 anos depois do crime, a delegada que conduziu parte do inquérito, Lindaiá Mustafá, negando que houve alguma conspiração policial para salvar os espanhóis. >
Rumores e acusações>
Ainda durante as primeiras semanas após o crime, a imprensa passou a registrar uma série de rumores que circulavam entre funcionários, ex-empregados e moradores da região, ampliando a sensação de que a dupla não era composta apenas de “sócios de motel”, mas de homens com histórico nebuloso. Surgiram relatos de que Francisco e Isauro fariam parte de uma organização mafiosa com ramificações no Rio de Janeiro, ligada não apenas à exploração de motéis, mas também ao tráfico de cocaína e maconha. >
A Delegacia de Tóxicos chegou a investigar a possível atuação de um relojoeiro de São Cristóvão como intermediário na entrega de drogas aos espanhóis. Nos corredores da polícia, comentava-se inclusive a suspeita de que os pais de Francisco teriam sido assassinados décadas antes, possivelmente por integrantes da mesma quadrilha para a qual ele trabalharia, boato que jamais foi confirmado oficialmente, mas alimentou o imaginário popular e reforçou a narrativa de que os dois faziam parte de um círculo criminoso maior. Também não foram confirmadas denúncia de que eles espancaram outros clientes. Francisco, contudo, chegou a ser processado por lesões corporais contra um funcionário.>
Mais real era a denúncia de que os espanhóis praticavam fraude trabalhista. No cofre do estabelecimento, a polícia encontrou cheques, rescisões em branco e documentos que ligavam os sócios a práticas de exploração dos empregados. Isauro chegou a ser autuado em novembro de 1980 por crime contra a economia popular, por obrigar os funcionários a assinarem vales e rescisões de contrato em branco.>
Julgamento>
O caso chegou aos tribunais em 2011, quando Francisco Ramiro Ferreiro Espasandin, preso no aeroporto do Rio de Janeiro em 2008, finalmente enfrentou o júri. Durante a sessão de dez horas no Fórum Ruy Barbosa, em Salvador, promotores reconstruíram a tortura praticada no quarto 315, apresentando depoimentos, fotos e o material coletado no inquérito. O júri reconheceu motivo torpe, meio cruel e impossibilidade de defesa da vítima, condenando o espanhol, então com 52 anos, a 30 anos de prisão.>
A Justiça também julgou, no mesmo ano, o comparsa Isauro Pazos Gerpe, 63, que permanecia na Espanha desde 1984. Mesmo ausente e sem apresentar advogado - razão pela qual o tribunal nomeou um defensor público - ele foi condenado com base em mais de 20 testemunhos. O resultado refletiu a primeira sentença: 30 anos de prisão. Francisco iniciou o cumprimento da pena no Brasil até ser transferido para o sistema penal espanhol em 2015; Isauro, por sua vez, continuou foragido.>
Dias antes de ser julgado à distância, Isauro falou por telefone com o CORREIO, numa rara entrevista após quase três décadas em fuga. Alarmado com a possibilidade de extradição, questionou: “Como a polícia brasileira quer vir me buscar?”, e alegou ter deixado o Brasil em 1980, negando estar no motel na noite do crime, apesar das provas apresentadas. Não há informações sobre onde ele, que estaria com 78 anos, se encontra atualmente.>
A viúva Edina recebeu assistência jurídica e, mais tarde, uma indenização através de acordo com a empresa administradora do motel. A família de Zigomar sempre procurou manter distância da imprensa, temendo represálias. Um dos filhos, ainda criança na época, ficou marcado pela visão da foto do pai no jornal: “Meu filho mais novo, com oito anos, está sem se alimentar desde segunda-feira, depois que viu a foto do meu marido no jornal, com o rosto todo deformado”, contou Edina à polícia, dias depois do crime. >