Cerca de 85% dos adolescentes apreendidos em Salvador abandonaram a escola

Eles não tiveram acesso a saúde básica, estavam subempregados e 24% já são pais

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  • Gil Santos

Publicado em 4 de março de 2020 às 17:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Gil Santos/ CORREIO

O abandono escolar gera sérios impactos na vida dos jovens. Isso ficou ainda mais evidente após a publicação dos resultados de uma pesquisa realizada nas Comunidades de Atendimento Socioeducativo (Case) de Salvador.

O levantamento, que faz parte de um relatório realizado pela Defensoria Pública do Estado (DPE), foi divulgado nesta quarta-feira (4) e aponta que 85% dos jovens internados não chegaram a ser alfabetizados ou abandonaram os estudos antes de serem apreendidos.

Em outubro do ano passado, os defensores estiveram nas três Case de Salvador, duas masculinas e uma feminina, e entrevistaram 187 jovens entre 14 e 20 anos. A pesquisa revelou também que 71% dos meninos sequer estavam matriculados em escolas. Entre as meninas, o percentual foi de 70%. Nenhum dos entrevistados concluiu o Ensino Médio.

Para o defensor público geral, Rafson Saraiva Ximenes, o relatório aponta a nítida existência de um racismo estrutural. Ele contou que, quando os jovens foram questionados se foram agredidos durante a apreensão, 75% dos meninos e 67,9% das meninas não quiseram responder à pergunta. Todos que aceitaram responder, disseram que sim.

“A gente percebeu nessa pesquisa, e ela corrobora dados que vimos na pesquisa de audiência de custódia, que aproximadamente 97% dos adolescentes são negros. E todos os que relataram terem sido agredidos no momento da apreensão são negros também”, afirmou.

A realidade familiar dos internos também se assemelha. Cerca de 59% deles trabalhavam como ajudantes de pedreiro, em lava-jatos, vendendo água ou carregando compras quando foram apreendidos. Entre os meninos, 55% não tinham nem CPF nem Carteira de Trabalho. Entre as meninas, 67% não tinha documento. O acesso à saúde também era raro.

“A gente começa a naturalizar, mesmo sem perceber, que um determinado adolescente não esteja na escola, mas esteja trabalhando. Ou que não tenha serviço médico quando deveria ter, ou que não tenha documentos, pai e a presença da família. Se não enfrentarmos esse problema, que é o racismo estrutural, qualquer política social vai estar fadada ao fracasso. Não adianta tentar fingir que o racismo não existe. Ele existe e não é um problema individual nem de uma determinada instituição. Ele passa por todas as instituições e todas devem trabalhar para reverter esse quadro”, afirmou Ximenes.

Cerca de 46% dos meninos cresceram sem a presença do pai. No caso das meninas, 28,6% delas moravam com companheiro ou companheira quando foram apreendidas e 35,3% conhecem o pai, apesar de não manter contato. Cerca de 10% dos jovens que estão internados em Salvador não tem o nome do genitor no registro.

Crimes Os crimes que mais levaram os adolescentes para a internação foram roubo (51%) e homicídio (31%), sendo que em 50,3% dos casos havia pelo menos um adulto envolvido na ação. Segundo os defensores, a necessidade de comer e pagar as contas foi o que mais levou esses adolescentes para a criminalidade. Cerca de 18% deles são reincidentes.

Ao todo, 58% dos internos disseram usar maconha e outros 13% afirmaram já ter feito uso de cocaína. Apenas 1% disse usar crack. Para a coordenadora da Defensoria Pública Especializada da Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, Gisele Aguiar, a pesquisa formalizou o que os defensores já sabiam.

“Pela minha experiência como defensora pública, os dados não surpreenderam. A gente sabe que esses meninos estão fora da escola, que eles não têm acesso à saúde básica e que a maioria massiva é de negros. Existe o mito que que eles cometem mais homicídios, mas na verdade eles são os que mais morrem. A gente já sabia, agora, temos dados que comprovam isso”, afirmou.

A situação é ainda mais preocupante quando a pesquisa revela que 24% desses jovens de 14 a 20 anos já são pais ou mães. Em 16 casos, eles apresentavam problemas mentais e em 15% moraram ou estavam morando na rua quando foram apreendidos.

Família O afastamento entre jovens e familiares é outro problema - e ocorre com maior frequência quando há apreensão. Quem explica é o defensor público Bruno Moura. Ele contou que a Bahia tem seis unidades da Case – além das três de Salvador, uma em Camaçari e duas em Feira de Santana -, mas a realidade é que 55% dos internos da capital são naturais do interior.  

“Cerca de 97% desses adolescentes são assistidos pela Defensoria Pública. Eles vivem em uma condição socioeconômica vulnerável e só têm a Defensoria para receber assistência jurídica. Como mais da metade dos que cumprem medida em Salvador são oriundos do interior do estado, isso faz com que as famílias tenham enormes dificuldades de acompanhar o processo socioeducativo desses jovens. São famílias que não têm renda e condições de pagar uma passagem para fazer essas visitas”, afirmou.

Nas Case os internos têm acesso à saúde e conseguem estudar. Muitos dos jovens contaram para os defensores que essa foi uma das poucas vezes em que conseguiram fazer valer esses direitos. O relatório está disponível no site da DPE e a intensão é que ele sirva de base para estudos e ações de política pública.