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Larissa Almeida
Publicado em 8 de novembro de 2025 às 10:00
Em um dos shoppings mais populares de Salvador, uma exposição convida quem passa por um dos corredores mais movimentados a fazer um passeio através da história. O portal para embarcar nessa viagem são retratos, que poderiam facilmente pertencer ao álbum de família de tantos baianos. Nas imagens, no entanto, os rostos revelam apenas uma tentativa de resgate da história dos africanos que chegaram à Bahia em navios negreiros e dos escravizados nascidos nesta terra. Uma reconstituição feita através da tecnologia em prol do direito à memória. >
Dispostos lado a lado no segundo piso do Shopping da Bahia, mas dispensando a simetria, os mais de 15 retratos que integram a exposição Fragmentos da Memória foram produzidos por um conjunto de Inteligências Artificiais a partir de passaportes, cartas de alforria e títulos de residência a africanos libertos. Também foram base para a reconstituição pesquisas acadêmicas e trabalhos visuais, como o de Jean-Baptiste Debret (1816-1831), e as fotografias de Marc Ferrez (1882-1885). >
Veja retratos da exposição "Fragmentos da Memória"
A iniciativa, que integra o projeto Resgate Ancestral, foi idealizada pela Fundação Pedro Calmon (FPC) e executada pelo Arquivo Público do Estado da Bahia (Apeb). Há 135 anos, o Apeb mantém em suas instalações documentos que contam a história da formação sócio-histórica do território baiano. Tais registros, para além de servir como material de estudo de historiadores, arquivistas, antropólogos e tantos outros profissionais, servem para garantir cidadania daquelas pessoas. >
Nos dois anos à frente da instituição, Jorge da Cruz Vieira, primeiro diretor negro do Apeb, conhecido como Jorge X, viu pessoas não-negras solicitarem diversas vezes materiais que pudessem comprovar a ascendência europeia de cada uma delas, uma vez que no Apeb há, em abundância, evidências dos portugueses, holandeses e italianos que vieram e se firmaram no estado. O mesmo, entretanto, não pode ser dito quanto aos povos africanos que aqui viveram. >
“Me chamou a atenção durante a gestão que a população não-negra solicitava muitas questões ao Arquivo Público para fins de garantia de direitos, sendo o mais famoso deles a documentação que dava a chancela ao consulado de um país europeu para dupla cidadania. Eu me perguntava por que a população negra não acessava a sua história. Mas a violência colonial e escravagista foi tamanha que não deixou registro, apenas fragmentos da história”, afirma Jorge X. >
Após a imersão feita nesses fragmentos, Jorge e Adauto Silva, coordenador de Preservação Documental do Apeb, utilizaram mais de 20 inteligências artificiais para conseguir aproximar ao máximo da realidade os traços dos escravizados descritos nos arquivos. Inicialmente, existia a proposta de retratar não só rostos, mas ambientes da época. A ideia, contudo, precisou ser descartada pela limitação das IAs, que replicavam cenário predominantemente norte-americanos. >
No fim do processo, o resultado deu inspiração a mais uma etapa do projeto, que criou, além de rostos, vozes para cada um dos retratados. Essa etapa, no entanto, ainda está em desenvolvimento. No shopping, quem viu os rostos já ficou suficientemente inspirado. “Me deu vontade de ir atrás das minhas origens. Sou do Espírito Santo e, no Arquivo Público de lá, tem muitos registros de italianos, embora o estado tenha sido um dos último a abolir o tráfico de escravizados e ter uma das cidades mais negras do país. Por isso, vejo esse projeto como muito necessário. Eu mesmo quero saber a origem do meu nome”, disse o arquivista Inaldo Nascimento, 44 anos. . >
O historiador Cândido Domingues, 41, que passou um bom tempo analisando os retratos, criticou apenas a falta de mediação na exposição e a ausência de recursos para acessar as informações que baseou a história de cada um dos retratados. >
Para ele, no entanto, essas faltas não diminuem a grandiosidade da iniciativa: “Essa exposição é um ato importante, principalmente, por estar num shopping popular de grande circulação de soteropolitanos e turistas. É uma forma de visibilizar imagens de pessoas que foram escravizadas a partir do século XVIII, o que é uma página fundacional da história do Brasil e do racismo estrutural que ainda vivemos. É um ato que aproximam os arquivos públicos, que precisam de mais incentivos, verbas e trabalhadores, da população, ao mesmo tempo que faz com que ela se reconheça”. >