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CORREIO conta a história de outras duas religiosas que podem seguir o mesmo caminho de Irmã Dulce
Thais Borges
Publicado em 21 de outubro de 2019 às 05:45
- Atualizado há um ano
Quando o Vaticano anunciou que Irmã Dulce seria proclamada santa, a rapidez do processo chamou atenção. A canonização apenas 27 anos depois de sua morte foi a terceira mais rápida da história da Igreja Católica – só perde para o Papa João Paulo II (nove anos após sua morte) e para Madre Teresa de Calcutá (19 anos).
O que nem todo mundo sabe é que ela pode não ser a única religiosa baiana – ou radicada na Bahia – a se tornar santa. Separadas por quase 300 anos de existência, outras duas religiosas também estão passando pelo mesmo percurso: Madre Vitória da Encarnação e Irmã Lindalva Justo de Oliveira.
A primeira nasceu e passou toda a vida em Salvador, até morrer, aos 54 anos, em 1715, no Convento de Santa Clara do Desterro. Mais de 300 anos depois, carrega até hoje a fama de santidade. O processo dela foi aberto a pedido do arcebispo de Salvador e primaz do Brasil, dom Murilo Krieger, em 2016. Este ano, a ordem das Clarissas assumiu a causa.
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Irmã Lindalva, por sua vez, morreu em 1993, vítima de um feminicídio – qualificação do crime de homicídio que não existia na época. Nascida em Assu (RN), veio para Salvador trabalhar no Asilo Dom Pedro II. Lá, aos 39 anos, foi morta por um interno que não aceitava ser rejeitado. Desde 2007 – antes, inclusive, de Irmã Dulce – tem o título de beata para a Igreja Católica.
Não se sabe, ao certo, quando os processos de cada uma chegarão ao fim. Mesmo assim, não será como Irmã Dulce.“Cada processo é um processo. O de Irmã Dulce foi um caso todo particular; que ninguém espere a mesma rapidez em outros processos”, enfatiza dom Murilo Krieger. A santa que não queria ser religiosa
Aos 14 anos, adolescente Vitória da Encarnação queria tudo, menos seguir a vontade dos pais. Naquela época, no início da segunda metade do século 17, o desejo da família era apenas um: que a menina seguisse carreira religiosa. Filha de pais fervorosamente católicos, Vitória resistia a ser mandada a um convento na Ilha da Madeira, em Portugal. Do alto da rebeldia da idade, respondia: preferia que lhe cortassem a cabeça.
Àquela altura, era difícil imaginar que aquela adolescente poderia se tornar mais uma santa genuinamente baiana – a segunda soteropolitana. Desde 2016, Vitória – ou melhor, Madre Vitória da Encarnação, porque, anos depois, ela se tornou freira – é alvo de um processo de canonização no Vaticano.
O processo foi aberto pelo arcebispo de Salvador e primaz do Brasil, dom Murilo Krieger. Em 2019, mais de 300 anos após sua morte, em 1715, um importante passo foi dado: as Irmãs Clarissas assumiram a causa de Madre Vitória e um postulador, o frei capuchinho Jociel Gomes, foi escolhido para ‘advogar’ que ela se torne santa.
A fama de santidade é antiga. Começou quando ainda era uma das religiosas do Convento de Santa Clara do Desterro, em Salvador. De fato, Vitória demorou a entrar lá. Na época da vontade dos pais – o pai, o capitão de infantaria Bartolomeu Nabo Correia, chegou a pedir autorização ao Conselho Ultramarino para enviá-la a Portugal – não existiam conventos ou mosteiros aqui.
O de Santa Clara só foi inaugurado em 1677, quando ela tinha 16 anos. Nove anos depois, aos 25, foi ordenada. Era mais velha que a maioria das jovens. Mas a explicação, segundo o seminarista Paulo Thadeu Santos, que estuda a vida de Madre Vitória desde 2007, foi de que ela passou todo o esse período lutando, inclusive, contra sonhos e visões.
A informação, na verdade, é da biografia da religiosa, publicada em 1720, por dom Sebastião Monteiro da Vide, então arcebispo de Salvador. Quando jovem, Madre Vitória se recusava a seguir a vida religiosa (Foto: Marina Silva/CORREIO) “Depois que entrou no convento, ela contou que, dos 16 aos 25 anos, teve sonhos com o Menino Jesus e com Nossa Senhora. Nos sonhos, eles diziam para que ela fosse para o Convento do Desterro”, conta Tadeu.O último – e talvez mais forte – desses sonhos foi o de que estava em uma embarcação onde as pessoas estavam com água na altura da cintura. Ali, um anjo teria dito que aquela embarcação era a o mundo. Para agradar a Deus, tinha que entrar em outra embarcação – a da religião. Resultado: depois de pedir autorização aos pais, no dia 29 de setembro de 1686, Vitória entra no convento, com a irmã mais velha, que viria a ser Madre Maria da Conceição.
Se tornou uma Clarissa, ordem que vive a clausura monástica. Ou seja: não tinha contato físico com as pessoas que viviam fora do convento. Lá, nunca exerceu grandes cargos. Foi faxineira, ‘rodeira’ (a responsável pela roda em que as freiras recebiam doações e onde crianças eram, frequentemente, abandonadas) e mestra de confissões. Antes de morrer, seu último cargo foi o de líder do coro das religiosas.
Sobrenatural Na clausura, vivia em uma ‘cela’, como são chamados os quartos. Por um tempo, teve uma cama improvisada em forma de cavalete. No entanto, doou a um morador de rua. Depois disso – e até o fim da vida – dormia em uma esteira de palha.
As doações eram frequentes. Dava o que tinha e o que não tinha para os necessitados, que vinham pedir ajuda nas grades do convento. “Ela ajudava muitos escravos, muitas pessoas necessitadas. Sempre ajudou muito”, diz a Irmã Maria Lúcia Silva. Desde o início do século XX, são as irmãs Franciscanas do Sagrado Coração que administram o convento. A última das Clarissas, ordem de Madre Vitória, morreu em 1914.
Essa foi uma das atitudes que a levou a ter fama de santa, mas não a única. A dom Sebastião da Vide, quem conviveu com ela dizia que a religiosa tinha dons sobrenaturais. Conseguia saber coisas que ninguém mais sabia. Se alguém perdia uma galinha, ia até ela. Madre Vitória rezava e o animal aparecia.
Às vezes, dizia: ‘vá na rua tal, que estará lá’. Era assim com cachorros, gatos, papagaios, objetos. Por vezes, até com navios inteiro que atrasavam a chegada prevista em Salvador. “Por isso, até hoje, pessoas invocam Madre Vitória para encontrar animais, objetos e pessoas desaparecidas”, explica Tadeu.
Até hoje, o quarto onde Madre Vitória passou a maior parte da vida, no Desterro, permanece lá. No local, ficam objetos que representam suas poucas posses. Uma esteira de palha, uma escrivaninha e uma imagem do Bom Jesus dos Passos, de quem era devota. Em sua cela, Madre Vitória dormia em uma esteira de palha (Foto: Marina Silva/CORREIO) Em cima da mesa, a representação de um crânio: ela costumava guardar o crânio do pai, como era comum entre os religiosos da época. Ali, era uma mistura de metáfora e fé: o de preparação para a morte em uma época em que doenças como a peste bubônica chegavam a devastar boa parte da população. Na cela onde Madre Vitória dormia, no Convento do Desterro, fica uma reprodução do crânio de seu pai, que ela guardava (Foto: Marina Silva/CORREIO) No quarto de sua irmã, para onde foi levada nos últimos dias de vida, já doente, ficam suas relíquias. Além de cartas e objetos recebidos por fiéis de diferentes estados e países, um expositor guarda dois objetos que foram dela: o cilício, um cinto de ferro usado por baixo da roupa como penitência, e um tipo de chicote chamado de disciplina, usado para autoflagelação. Praticada diariamente, a disciplina era uma forma de se reconhecer como pecador.“Ela dormia aqui, com o Menino Jesus, de quem era devota”, explica a auxiliar administrativa Maria Goretti Ferreira, 53 anos, que, antes de trabalhar no convento, viveu lá durante a infância e parte da adolescência.A imagem do Menino Jesus está até hoje no quarto. No Convento do Desterro, ficam o cilício e a disciplina usados por Madre Vitória para autoflagelação (Foto: Marina Silva/CORREIO) No mesmo cômodo, fica uma caixa de madeira com um crânio verdadeiro. “A gente não tem certeza, hoje, se o crânio é dela ou se era do pai dela, já que ela vivia com ele no quarto”, completa Maria Goretti. Um crânio verdadeiro é guardado como relíquia no Desterro - não se sabe, porém, se é dela ou de seu pai (Foto: Marina Silva/CORREIO) Canonização Por muito tempo, difundiu-se que o Vaticano estava para canonizar Madre Vitória. Supostamente, o processo estava parado praticamente desde a sua morte. Ou melhor: tinha parado pouco depois da autobiografia escrita por dom Sebastião, que era uma uma espécie de primeira etapa para o processo.
Desde que se tornou arcebispo de Salvador, dom Murilo Krieger escutava falar sobre Madre Vitória. Diziam que o processo já estava na Congregação para as Causas dos Santos. No entanto, ele não encontrava nada sobre isso nos arquivos da arquiocese. “Escrevi, então, em 2015, para o Vaticano, comentando que estávamos celebrando os 300 anos do falecimento de Madre Vitória, que aqui faleceu com fama de santidade”, afirma o arcebispo de Salvador.Dom Murilo queria saber se realmente a causa existia e o que era preciso fazer para reativá-la ou, em caso negativo, para dar início ao processo. A resposta do Cardeal Angelo Amato, prefeito da tal congregação, veio em outubro daquele ano. Não havia nada por lá.
Mas, como era uma religiosa Clarissa, recomendou que buscasse o Postulador Geral da Ordem Franciscanos dos Frades Menores. Em fevereiro de 2016, mais uma negativa: nenhum arquivo dizia nada sobre a madre. Por isso, em março, dom Murilo voltou ao cardeal Amato: queria dar início ao processo. Em julho, a Santa Sé autorizou.
Frei Jociel, um capuchinho pernambucano que também é o postulador da causa de canonização de Frei Damião de Bozzano, deu início à fase de constituição da comissão histórica. No caso, historiadores e arquivistas são escolhidos para fazer um relatório da vida de Madre Vitória. Ele também começou a buscar pessoas para constituir o chamado Tribunal Eclesiástico, um grupo que tem a missão de acompanhar a causa.
“A previsão é de que ainda esse ano aconteça, em Salvador, a sessão de abertura oficial do processo, iniciando oficialmente os trabalhos da causa. Muitas pessoas dizem ter alcançado graças por intercessão dela e estamos recolhendo esses testemunhos para começar a analisá-los. Quem sabe dentre eles vamos encontrar um possível milagre”, diz o postulador. Devota do Menino Jesus, ela passou os últimos dias com uma imagem no quarto onde morreu (Foto: Marina Silva/CORREIO) Hoje, Madre Vitória já tem uma oração própria. Desde junho deste ano, o arcebispo autorizou que as Irmãs Clarissas do Brasil assumissem a causa da religiosa. Em Salvador, não há mais casas de Irmãs Clarissas desde a mudança no Convento do Desterro. Por isso, quem está à frente do processo são as religiosas do mosteiro de Feira de Santana, que já deram início à preparação do percurso, de acordo com abadessa do convento, Madre Maria Ielma da Eucaristia. “A gente já sabia da fama de santidade dela. Ainda não começamos a receber relatos de milagres, mas estamos nos organizando para criar um email próprio e abrir uma conta bancária, porque uma causa tem seus gastos, como viagens e impressão de panfletos para fazê-la conhecida”, diz a abadessa. Ela acredita que a divulgação da história de vida da Madre pode ajudar o processo de canonização. Para se tornar beata, o primeiro passo, é preciso que o Vaticano reconheça um milagre atribuído a ela. Para ser proclamada santa, um segundo milagre deve ser reconhecido.
Madre Vitória foi, para ela, a responsável por um milagre no próprio mosteiro. Em agosto, uma das irmãs foi diagnosticada com acidose diabética. Ficou em estado gravíssimo. Após uma corrente de oração e uma novena com as Clarissas em todo o Brasil para Madre Vitória, a irmã teria ficado curada.
No próprio Convento do Desterro, há relatos de milagres que remontam à década de 1970. A própria Maria Goretti Ferreira tem o seu: há seis anos, o filho adolescente passava por um problema no intestino. Estava prestes a perder o órgão. Maria Goretti acredita que Madre Vitória, assim como Irmã Dulce, tenha intercedido por seu filho (Foto: Marina Silva/CORREIO) Foi levado para fazer tratamento nas Obras Sociais Irmã Dulce (Osid) e, lá, Maria Goretti pediu para que Irmã Dulce o curasse. Só que, ao mesmo tempo, as irmãs do convento pediam a Madre Vitória. “Ele ficou curado e, 28 dias depois, teve alta sem cirurgia. No meu coração de mãe, eu agradeço às duas”.