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Fernanda Santana
Publicado em 4 de novembro de 2018 às 04:05
- Atualizado há 2 anos
A menos de dez metros de distância, duas pequenas farmácias disputam uma das calçadas da Rua Sérgio de Cabral, no Vale da Muriçoca, com lojas, mercearias, ambulantes. Os medicamentos estão em áreas gradeadas, atrás das quais os funcionários atendem. “Precisa de prescrição, não”, responde um deles ao pedido de uma caixa de Ritalina, remédio de tarja-preta vendido apenas mediante apresentação de receita médica. Os ferros de proteção mascaram o comércio ilegal praticado. A falta do medicamento nas farmácias encontra-se numa berlinda: no mês de agosto, a procura triplicou em Salvador, se comparado com o mês anterior. Enquanto isso, dispara o tráfico do medicamento. Ilustração: Quintino Brito/CORREIO No Vale da Muriçoca, via de ligação entre a Avenida Vasco da Gama e o Engenho da Federação, em Salvador, a venda clandestina de Ritalina, indicado para pessoas com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) e narcolepsia (distúrbio que causa sonolência excessiva), ocorre sem qualquer teatro. A reportagem entra disfarçada e pede a um funcionário o medicamento. O vendedor vai ao estoque, volta já com a caixa do medicamento nas mãos. Recomenda a compra imediata: “Esse tá difícil de achar, é melhor comprar logo”. “Mas não tenho receita”, friso. O funcionário rebate: “Aqui, não precisa”.>
O tráfico opera num cenário de popularização do medicamento, mesmo para quem o composto não é recomendado. De julho a agosto, a Novartis, empresa que detém o registro do medicamento, enviou 20,1 mil caixas de Ritalina para a Bahia. Em dois meses, o salto: no mês de julho, foram 2.960 caixas vendidas; no mês seguinte, 9.790 embalagens. Somente a Pague Menos, uma das três maiores redes farmacêuticas de Salvador, registrou uma procura 229% acima da média em agosto; em setembro, a demanda já foi 182% maior que o habitual. Negócio lucrativo para a ilegalidade.>
As duas drogarias ilegais já são conhecidas por quem busca Ritalina, e outros remédios controlados, sem prescrição. Os consumidores fora-de-bula, como são chamados pela indústria farmacêutica. “Oxe, aí é de tudo. É certo eu vir sempre que preciso de alguma coisa”, comentou um morador do Conjunto Habitacional Santa Madalena, a quatro quilômetros dali. Por uma cartela de Ritalina simples de 10 miligramas, com 30 comprimidos, o consumidor gastaria R$ 70, R$ 32 a mais que o preço geralmente praticado em outras farmácias. É a inflação da ilegalidade aliada à procura. Clique na imagem para ampliar Na vizinha, o valor por uma Ritalina LA de 20 miligramas, cujo efeito é mais duradouro, é de R$ 260, compatível a outras farmácias. A similaridade com o praticado em drogarias legais não a retira da ilegalidade. As duas, na verdade, cometem tráfico de drogas. A lei proíbe a venda de qualquer medicamento que cause dependência física e química, como no caso da Ritalina, sem solicitação médica. O mesmo vale para pessoas físicas. É o que explica o delegado da Polícia Federal Grimaldo Marques “Essas [pessoas, não empresas] não podem, sequer, vender qualquer remédio, o que se configura, também, infração sanitária”.>
O esquema de desvio e venda de remédios controlados é liderado pelos chamados 'cururus'. O nome vem do jeito safo dos traficantes aliado à conveniência de distribuidoras e farmácias: veste a roupa de sapo e dá seus pulos. A suspeita é de que o desvio aconteça diretamente das distribuidoras para os traficantes, dos quais seguem para o abastecimento de farmácias, pacientes ou usuários do remédio. Causa e consequência do desabastecimento de Ritalina, tormento já estendido por quatro meses.>
Por e-mail, sob o nome de Drug Remedies, a Ritalina é oferecida com nota fiscal, envio via Sedex e promoção: “Levando três, consigo mais descontos com Sedex grátis!”. Outro traficante, conhecido como Washington, também oferece entrega a domicílio. “Esse remédio só vende com receita, mas no meu caso consigo sem receita, entendeu?”, provoca o traficante, depois de afirmar que deveria somente esperar o chamado de um funcionário de uma farmácia para buscar o medicamento. Enquanto faltam nas prateleiras, sobram caixas para a clandestinidade.>
O medicamento é distribuído, no Brasil, pela Novartis Biociências. O diretor do grupo suíço no país, João Sanches, foi, então, confrontado com os casos e a possível ligação entre o aumento da demanda, a ausência nas prateleiras e o desvio para o mercado ilegal. Uma questão que foge à Novartis, ele acredita. Não houve, no entanto, qualquer roubo de carga ou desvio registrado. “A gente sempre olha para quem estamos trabalhando. Todo o faturamento que a gente faz, a gente segue as normas da Anvisa. Mas, o que podemos dizer é que, a partir do momento que a pessoa compra vários medicamentos, e há falta, ela pode escolher vender ilegalmente”. A Novartis pediu envio do nome das farmácias acusadas para apurar o fornecimento de medicamento. O Conselho Regional de Farmácias do Estado da Bahia também desconhece os casos. Mas o presidente do órgão, Mário Martinelli recomendou: "O CRF-BA não foi notificado sobre a situação, mas recomendamos realizar a denúncia na Polícia Federal e na Anvisa. A Ritalina é um medicamento controlado. Significa dizer que sua comercialização só deve ocorrer em farmácias e através de prescrição".>
Por que vai para o tráfico? Entre o consultório, as salas de aula e as noites de estudo, Roberto* precisa de uma ajuda extra. Dos comprimidos brancos, consegue a concentração necessária. Desde que saiu da graduação em Medicina, na Universidade Federal da Bahia (Ufba), para o mestrado, apela para a Ritalina, conhecida como pílula de inteligência e da concentração. Já Cláudia* recorreu ao tarja-preta em 2016, quando começou a estudar para o concurso da Defensoria Pública do Estado da Bahia. “Comecei a tomar nos dias mais cansativos. Como quando saía do trabalho tarde e estava com estudo acumulado. Me sentia pura atenção”, lembra.>
Histórias como a de Roberto e Cláudia marcam o trajeto de escalada da Ritalina. Processo observado, principalmente, a partir da última década. Em 2005, o psiquiatra e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro Rossano Lima se propôs a estudar o suposto fenômeno da desatenção, suas características e como ele abastece a indústria dos remédios no livro Somos Todos Desatentos? O TDAH e a construção de bioidentidades. Mais de 13 anos depois, o médico voltou a explicar a engrenagem que move o consumo de Ritalina no Brasil. “São cada vez mais pessoas recorrendo a efeitos químicos para aprimoramentos. Hoje em dia, somos mais cobrados, né? Rapidez, foco, concentração, não-procrastinação. É o chamado dopping intelectual, geralmente cometido por pessoas quem tem demandas muito grandes”, explica Rossano. O remédio começa a ser usado, inicialmente, somente em crianças. Era o principal tratamento da desatenção em excesso nas salas de aula, descoberto e aplicado pioneiramente nos Estados Unidos, na década de 50. Somente aprimoradas as potencialidades de duração do remédio – chega a atuar oito horas no corpo do usuário –espalhou-se nos corredores de faculdades e cursos. No mês de junho, a Novartis já não conseguia atender às demandas oficiais e clandestinas.>
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À Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), reportou uma falha na continuidade da produção. Aquela decisão foi tomada quando uma série de problemas somavam-se nas dependências do grupo, num bairro nobre de São Paulo. O diretor João Sanches percorreu a linha dos fatos que levaram ao desabastecimento: atraso para a liberação da importação pela Anvisa, mudança repentina de uma rota de um avião de carga e a alta das compras. A procura estava nas alturas. É a primeira grande crise de fornecimento. “Há até aumento nos diagnósticos de TDHA e um aumento da demanda por produtos desse tipo. Então, eu acho que essas coisas se somam e complicam”, acredita João Sanches.A demanda média do mercado, a Novartis calculou a pedido do CORREIO, é de 150 a 160 mil unidade por ano. Por ano, há crescimento de 15% na procura – sobretudo pelos fora-de-bula.“Sabemos que existem pacientes que usam a Ritalina para manter um alerta maior [...]. E só o médico pode fazer a prescrição. Se o médico prevê três ou mais caixas, não temos como controlar. É uma questão de informação para haver um uso adequado do comércio”, acrescenta Sanchez.Mas, por que logo em agosto o consumo do remédio cresce tanto? A compra do remédio segue tendências. >
No ano de 2015, o Fórum sobre medicalização da educação e da sociedade elaborou uma nota técnica em que avaliava as oscilações de compra de Ritalina. E os possíveis porquês. O grupo analisou sete anos de consumo - 2007 a 2014 – para tentar encontrá-los. Enquanto há aumento em agosto, a queda começa a ocorrer no mês de novembro. >
Hoje integrante do Fórum, Maria Fernanda Barros,do Centro de Informações sobre Medicamentos do Conselho Regional de Farmácia, explica os números.“É justamente em agosto que os estudantes precisam correr atrás, por ser fim de semestre, por exemplo. Há também a questão do uso entre crianças. Em agosto, costuma ser o retorno às aulas, quando elas precisariam estar mais concentradas. Em novembro, são as férias”, justifica.Os caminhos para o tráfico A Ritalina, explica a psiquiatra Paola Robatto, aumenta a capacidade de concentração por uma razão: libera neurotransmissores como a dopamina e a noradrenalina, qua atuam em partes do cérebro responsáveis pelo foco. A medicação pode ser usada até o fim da vida, com pausas ou sem, a depender do tratamento e do quadro clínico. É o caso da estudante de Direito Júlia Serafini, 22, há três anos usuária do medicamento. Numa das raras pausas, restaram duas caixas de Ritalina. Então, começou o aliciamento. A Ritalina virou moeda de troca. >
Um colega estava na casa de Júlia e viu as sobras dos medicamentos. Perguntou: “Por que você não dá pra mim pra eu vender? Dá para fazer um dinheiro com isso”. O negócio foi negado por Júlia. A ideia, ela lembra, era vender cada comprimido por R$ 15 ou, quem sabe, repassar para farmácias. “Era uma caixa com 60 comprimidos. O pior é que essa venda ilegal acontece muito... Falei para ele: a gente faz Direito para fazer essas coisas erradas?”, lembra ela. >
A negociata da Ritalina, de tão fácil, não parece ter as consequências consideradas por quem usa sem prescrição. Sem determinação médica adequada, as consequências da ingestão do remédio variam de simples dores de cabeça até a possibilidade de um ataque cardíaco, explica a psiquiatra Paola Robatto. O problema é que o próprio diagnóstico de TDHA, por exemplo, pode ser incorreto. Não há exames específicos para determinar a doença. Então, os próprios pacientes começaram a simular quadros similares aos de portadores da deficiência.“A pessoa já vai com um discurso todo preparado para o médico. De que sente isso e aquilo. Não necessariamente é com intenção de enganar. A pessoa realmente acha que tem aquele problema e que precisa do medicamento”, diz a psiquiatra.Diariamente, alguns dos mais 100 agentes da Vigilância Sanitária Municipal saem às farmácias para apurar as condições de funcionamento e a rotina de venda para coibir o tráfico e evitar o uso indevido. Os proprietários das farmácias precisam de notas fiscais e prescrições às mãos, quando são questionados sobre a venda de medicamentos controlados. Precisam, ainda, atestar que a venda do produto foi lançada ao Sistema Nacional de Gerenciamento de Remédios Controlados, no máximo sete dias após a venda. >
Mas, do raio de ação, fogem algumas farmácias, reconhece a Vigilância. Assim como ocorre na região do Vale da Muriçoca, acontece em endereços mais afastados. “De certa forma, temos dificuldade até em entrar em certos bairros, porque os comandos [referência ao crime] não deixam. Tudo isso a gente tem que prestar atenção”, diz Ioni Pimentel, fiscal de Controle Sanitário. Ela, então, pede que aconteçam denúncias. “Aí, a gente pede que haja denúncia à Vigilância em casos que os moradores descobrirem algum esquema”, continua. >
O problema, muitas vezes, é dar materialidade à denúncia de tráfico, diz o delegado Grimaldo. Principalmente quando a venda ocorre de maneira ambulante, em corredores de faculdade, salas de cursinhos. “O comércio é ambulante. Não tem uma sede, por exemplo, aí fica mais complicado”. Assim, enquanto não houver descoberta de novas estratégias de controle, a popularização da Ritalina tende a ser capitalizada pela clandestinidade.>