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Da Redação
Publicado em 8 de maio de 2011 às 09:54
- Atualizado há 2 anos
Alexandre Lyrio|Redação CORREIO>
O dia amanheceu com céu escuro e nuvens carregadas, mas um sol do tamanho do amor de Deus parecia brilhar no coração de Irmã Dulce. Era 7 de julho de 1980. Havia meio milhão de pessoas nas ruas de Salvador. O helicóptero vindo da Base Aérea enfrentou vento forte, mas pousou no Centro Administrativo da Bahia (CAB).>
O papa João Paulo II estava aqui, prestes a celebrar uma missa campal. Foi recepcionado com berimbaus, atabaques e agogôs. O livro Irmã Dulce dos Pobres descreve aquela terça-feira como um dia em que “freiras acomodaram-se em galhos de árvores, crianças fantasiaram-se de motivos religiosos, mulheres acenaram lenços brancos e jovens choraram de emoção”. Irmã Dulce alimentava uma paixão cristã pelo coroa de cabelos grisalhos e cheio de carisma. Não perderia o momento por nada. Nem por aconselhamento médico. A religiosa foi alertada em relação aos riscos que corria por conta da chuva. Com problemas no pulmão, a freira estava com a saúde muito fragilizada. >
“Ela tomou uma chuva danada no CAB e acabou contraindo pneumonia. Quem poderia impedir Irmã Dulce de ver o papa?”, questiona, sem ter uma resposta, o cirurgião Taciano Campos, que está nas Obras Sociais Irmã Dulce (Osid) há 39 anos e é o atual diretor médico do Hospital Santo Antônio. Depois do encontro, a freira passaria 20 dias internada numa clínica cardiopulmonar. Mas, para ela, tudo valeria a pena. >
Ovação Além de chamada para subir ao altar e receber a bênção especial do papa, Irmã Dulce foi aclamada pelo povo. Quase levada pela força do vento, mostrou que, em sua terra, era tão pop quanto o papa. Então residente do Hospital Santo Antônio, o anestesista Edmur Agostinho não foi ao evento, mas relata o momento em que ligou a TV para assistir à saudação popular ao papa e, em vez disso, viu o nome da freira baiana ser gritado.>
“Acabei vendo o povo baiano aplaudindo e gritando: ‘Viva Irmã Dulce. Irmã Dulce é nossa mãe’”. Doutor Edmur, porém, não se contentou e, à noite, ligou para a religiosa. Ela era a modéstia em pessoa. >
- Doutor Edmur, fiquei tão envergonhada... Aquele povo todo gritando o meu nome...>
No rápido encontro, sem imaginar que um dia se tornariam beatos aos olhos da Igreja, o papa e a freira pouco conversaram. Ela ouviu de sua santidade uma mensagem de incentivo e ganhou um presente. João Paulo tirou do bolso um objeto. Era um terço. Entregou-lhe e disse:>
- Continue, Irmã Dulce. Continue...>
No relato da própria freira à sobrinha, Maria Rita, Irmã Dulce ficou muda de emoção, mas não houve mais diálogo.Aeroporto Ir ao CAB não foi a única peripécia da freira pelo papa. Tomando vento e friagem, ela havia ido logo cedo ao então Aeroporto Internacional Dois de Julho. Quando o santo padre pisou em solo baiano, a freira tentou um primeiro contato.>
Como não foi colocada na lista de autoridades que cumprimentariam sua santidade na chegada, contou com a ajuda de um dos muitos “padrinhos”. No caso, o general Gustavo Moraes Rego. Mas, uma vez na fila, a freira não só cumprimentou o papa como lhe deu um abraço.>
Irmã Dulce sabia que teria de se esforçar para chegar perto do líder da Igreja. O cerimonial do papa não previa visita às obras da freira. Ele apenas passou bem perto, pela Avenida Bonfim, conhecida como Dendezeiros, em direção à comunidade dos Alagados, onde o papa rezaria missa.>
Para se despedir, Irmã Dulce ainda iria novamente ao aeroporto. No último encontro, o sumo pontífice pareceu antever o problema que o médico já havia alertado. E, dessa vez, o “continue, Irmã Dulce” veio acompanhado:>
- Continue, mas cuidado com sua saúde. Você precisa olhar um pouco mais para você...>
João Paulo II fez questão de ir visitar Irmã Dulce no leito de morte em 1991 >
Freira recebeu visita do papa no leito de morteTalvez nem João Paulo II soubesse, mas o seu alerta em relação à saúde de Irmã Dulce era profético. Os pulmões frágeis não só se tornariam um problema grave para a freira, como fariam com que o próprio pontífice a reencontrasse, depois de 11 anos, no leito de morte. >
Segundo a biografia escrita pelo italiano Gaetano Passareli (Irmã Dulce – O Anjo Bom da Bahia), na segunda vez que veio ao Brasil, o papa fez questão de oferecer a Irmã Dulce uma bênção particular. Em 20 de outubro de 1991, com o então arcebispo primaz dom Lucas Moreira Neves, entrou no quarto transformado em UTI e apertou sua mão, mais magra do que nunca. >
Por ter sido submetida a uma traqueotomia, onde foi acoplado o aparelho de respiração artificial, Irmã Dulce teve dificuldades para falar. O papa deu-lhe a benção apostólica e, antes de ir embora, virou-se para o arcebispo. Disse-lhe uma frase de resignação, publicada no dia 15 de outubro, na mensagem dominical que dom Lucas escrevia no Jornal A Tarde. - Este é o sofrimento do inocente. Igual àquele de Jesus...>
Duas servas da caridadeEm julho de 1979, Madre Teresa de Calcutá recebeu convite de dom Avelar para vir a Salvador fundar uma casa da Ordem Missionária da Caridade, no bairro de Alagados. Irmã Dulce quis conhecer a famosa religiosa, que receberia o Prêmio Nobel da Paz naquele ano. Com dificuldades para manter as obras, Irmã Dulce chegou a oferecê-la para a colega, que, de acordo com o que publicou o Jornal Tribuna da Imprensa (RJ), recusou.>
- Eu desejo trabalhar para os pobres, mas sem a responsabilidade financeira. >
Dulce ofereceu a gestão de suas obras para Madre Teresa de Calcutá, que não aceitou>
Na ocasião da vinda de Madre Teresa, uma declaração do então arcebispo dom Avelar causou certo mal-estar na cidade, quando ele disse: “Não conheço testemunho maior de amor aos humildes”, referindo-se a Madre Teresa. Sem tirar os méritos da freira estrangeira, um forte protesto do povo e da imprensa se seguiu. “E o Anjo Bom da Bahia?”. >
O Globo chegou a ponto de denunciar que autoridades civis e religiosas doaram dinheiro e terrenos para a freira indiana, enquanto durante 40 anos Irmã Dulce “mendigava pela sua obra”. Sem graça, dom Avelar se explicou aos jornais. “São estilos diferentes, embora servas da mesma caridade”. >
Madre Teresa de Calcutá seria beatificada 18 anos depois de encontrar com Irmã Dulce. Morta em 5 de setembro de 1997, seu processo de beatificação foi concluído em 2003 e tornou-se o mais rápido da história. O próprio papa João Paulo II foi o responsável pela rapidez do processo.>