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Da Redação
Publicado em 23 de novembro de 2008 às 16:28
- Atualizado há 3 anos
Quando, no ano de 2005, a dona de casa M.* foi flagrada levando drogas para o companheiro que estava recolhido no Presídio de Salvador, no Complexo Penitenciário do Estado, bairro de MataEscura, não pensou de imediato no que iria lhe acontecer. Naquele momento, ela só teve um pensamento: quem tomaria conta da filha de 3 anos, que deixara momentaneamente com uma vizinha?>
Somente alguns dias depois, ela viria a descobrir que não havia motivo para tanta inquietação. Pelo menos enquanto estivesse ali, a criança estaria em boas mãos, aos cuidados do Centro Nova Semente, projeto mantido pela Igreja Católica, através da Pastoral Carcerária, com o objetivo de acolher menores cujos pais estão presos e não têm parentes próximos. >
Após certificar-se de que M. não contava com familiares para cuidar da menina, o Juizado da Infância e da Juventude contatou a Pastoral Carcerária, que a encaminhou ao Centro Nova Semente. Acolhida pela instituição, a criança se juntou aos mais de 30 filhos de outros detentos que fazem dali um lar temporário até que os pais possam resgatá-los.>
M. encontrou conforto no Centro Nova Semente>
Decorridos três anos, a garota permanece na instituição, enquanto a mãe goza de liberdade condicional, mas não está ainda em condições de prover seu sustento. Somente quando houver reestruturado a vida, M. poderá ter a pequena filha de volta ao seu convívio. Ocupando uma área de 9,2 mil metros quadrados, desmembrada do complexo penitenciário, o Centro Nova Semente é uma casa-abrigo. >
O prazo de permanência pode oscilar entre poucos dias e vários anos. Há registros de uma criança que ficou apenas uma semana e de um adolescente que está por lá há mais de cinco anos. 'O que determina o tempo é a necessidade', esclarece a irmã Adele Pezone, 69 anos, missionária da Ordem de Jesus Redentor, diretora e fundadora da instituição.>
Natural de Nápoles, cidade ao sul da Itália, a religiosa é de poucas palavras, mas de muita ação. Foi essa determinação que a levou a investir energia e esforços na criação da casa. >
Um teto com proteção e carinho >
Meio arredia, só após se sentir acolhida é que M*., 4 anos, há um e meio na Nova Semente, fica à vontade com estranhos. Aí, ela se aconchega, abraça e beija com a maior facilidade. Não é muito de conversar, mas acompanha tudo com atenção. Ri pouco, mas quando o faz, exibe um riso cativante. >
A relação entre M. e a mãe (egressa da Penitenciária Feminina) não é das mais estreitas. Embora em liberdade condicional, a ex-detenta vai pouco ao centro. Talvez por ter sofrido uma experiência traumatizante: alega ter sido presa e condenada injustamente. E garante que sofreu violência policial. Na terça-feira (18), quando o CORREIO esteve no centro, M. não havia ido à creche, onde passa os dias. Estava tossindo muito e a irmã Adele resolveu mantê-la em observação, ao alcance dos seus olhos.>
Centro funciona há 9anos >
Embora avessa a entrevistas e de temperamento irrequieto, a religiosa concorda em parar um pouco sua labuta para contar a história do centro. Tudo começou em 1999, quando o Juizado da Infância e da Adolescência limitou a permanência de crianças na cadeia. Até então, algumas presas costumavam manter as crias junto a si, durante a estada na prisão. >
Uma rebelião no complexo penitenciário alertou as autoridades quanto à inconveniência de meninos e meninas crescerem em ambiente tão insalubre. No início, o projeto ocupava uma casa no Loteamento Imbassahy, também na Mata Escura. Mas o espaço era insuficiente para atender à demanda. >
Em 2002, o governo estadual doou o terreno. Em2005, a nova sede era inaugurada. Hoje, o centro abriga 37 assistidos, entre crianças e adolescentes. A proximidade com a cadeia não é casual. Segundoa irmã Adele, as mães ficam mais confortáveis por saberem que os filhos estão perto, embora os contatos sejam restritos aos dias de visita –quartas e sábados, a cada 15 dias. >
Enquanto permanecem no centro, as crianças recebem educação formal em escolas convencionais ou freqüentam a creche vinculada ao projeto, mas aberta à comunidade. 'É uma forma de propiciar o contato deles com outros meninos, para não ficarem segregados', explica a psicóloga Vanessa Pires, 29. >
Além de psicóloga, o centro mantém assistente social, mais pediatra e profissional de pedagogia –as duas últimas como voluntárias. Com uma despesa mensal da ordem de R$60mil, a instituição é mantida por convênios nas esferas municipal, estadual e federal, além de contar com doações.>
Histórias de êxito e fracassoEm nove anos de funcionamento, pelo menos 70 assistidos já passaram pelo Nova Semente. Com maior ou menor intensidade, a irmã Adele se lembra de todos. Nesses momentos, é como se ela baixasse as defesas e se deixasse levar pela emoção das lembranças. >
Como quando conta a história de F.*, filho de uma francesa, que atuava como 'mula' (contratada por traficantes para transportar drogas) e foi presa ao tentar deixar Salvador com cocaína no estômago. Grávida de F., a jovem passou mal no aeroporto e quase morre. >
O parto foi antecipado e o garoto nasceu em solo baiano. Condenada por tráfico internacional de drogas, a moça cumpriu pena na Penitenciária Feminina e ficou com o bebê até os seis meses. A criança foi transferida para o centro, onde ficou até os 2 anos, quando a mãe foi libertada e extraditada de volta à França. >
Hoje, aos 5 anos, o francesinho ainda mantém contato com o projeto. Às vezes liga para irmã Adele e fala com ela em francês, que terminou aprendendo. 'É bom saber que ele está bem e que a experiência parece não ter deixado marcas', diz a religiosa. >
Mas nem sempre as histórias são bem-sucedidas. É o caso de T.*, cuja mãe foi presa por tráfico quando ela tinha 8 anos. Encarregado de cuidar da menina, o pai abusava sexualmente e foi parar na cadeia. A garota foi para o centro, onde ficou por dois anos, até a mãe sair da penitenciária. >
Durante o período em que esteve presa, a mãe de T. manteve um relacionamento amoroso com um homem e fez um pacto estranho com ele: quando saísse da cadeia ela e a filha seriam suas amantes. Mas a ex-detenta sobreviveu pouco tempo após ser libertada. No leito de morte, contou à garota que lhe havia prometido ao padrasto. T. desapareceu e a irmã Adele não tem notícias dela, já há mais de dois anos.>
*Nomes e alguns detalhes alterados para preservar a identidade das crianças.>
(Reportagem publicada na edição de 23/11/2008 do jornal CORREIO)>