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Fernanda Santana
Publicado em 1 de dezembro de 2019 às 07:00
- Atualizado há 2 anos
O cérebro parou de funcionar às 15h30. Embora o monitor cardíaco ao lado da cama ainda mostre uma boa frequência cardíaca, não há mais possibilidade de vida para o paciente, internado quatro dias antes, depois de uma queda de moto, em Salvador. Os médicos começam a aplicar testes que comprovariam oficialmente, 48 horas depois, a morte cerebral do ex-vendedor Maciel. Agredido fisicamente, o cérebro pode perder as funções aos poucos e morrer.>
Desde o início do ano até setembro, foram 425 notificações de morte encefálica na Bahia, segundo a Secretaria Estadual de Saúde (Sesab). A pasta utiliza o termo “notificar”, pois é possível que outros baianos tenham tido morte cerebral sem que entrassem para a estatística, já que a morte do cérebro pode estar acompanhada da falência total de outros órgãos. >
O caso de Maciel, relatado sem descrições pessoais pelo médico, ilustra como o cérebro pode ser sensível a lesões físicas, seja por meio de agressões violentas, como murros e chutes na cabeça, seja em quedas. No dia 22 de novembro, o apresentador Gugu teve morte cerebral atestada pelos médicos, dois dias depois de bater a cabeça numa queda de quatro metros. O apresentador subiu no forro de casa para tentar trocar o filtro do ar-condicionado. A companheira e o filho de Gugu durante o velório do apresentador, em São Paulo A morte cerebral é sinônimo de morte, explica a neurologista Elza Magalhães. É apenas uma forma de dizer que a “morte começou no cérebro”. Para isso, é necessária uma lesão grave o suficiente para fazer parar de funcionar o órgão de onde partem os comandos de nossas funções nervosas, motoras e de órgãos. Qualquer abalo físico pode ser suficiente para paralisar o cérebro, mas não necessariamente é o que acontece. A maioria das lesões é leve. >
A lesão na cabeça pode levar, por exemplo, a um traumatismo craniano, quando o crânio, que protege o cérebro, é atingido. É possível que, depois do ferimento, haja sangramentos. E qualquer passagem de sangue fora dos vasos, nesse lugar do corpo, pode ser fatal.>
Na Bahia, números da Sesab apontam que, em 2018, houve 5.710 internamentos por traumatismo craniano e, até setembro deste ano, eram 4.224.>
As consequências podem ser imediatas ou aparecer ao longo das horas, em sinais como perda de consciência, dores e desmaios.“O paciente que caiu pode ter uma fratura no crânio e ter um sangramento de uma artéria, uma hemorragia muito intensa a ponto de impedir que o cérebro seja oxigenado. O sangue, fora da artéria, é lesivo. O sangue precisa estar dentro da artéria para alimentar o cérebro”, explica a neurologista. É possível, ainda, que haja inchaço do cérebro, o que indica morte das células – o cérebro pesa em média 1,5 kg, mas o crescimento em caso de lesões depende de cada caso. >
Não há nenhum tipo de queda ou ferimento na cabeça que possa ser diretamente associado a uma futura morte do cérebro. Uma lesão no córtex, responsável por nossa capacidade de pensamento e percepção, pode evoluir para a parte responsável pelos movimentos, e assim por diante. >
A recomendação é que o atendimento seja imediato. A rapidez pode significar ganho de tempo na prevenção de morte dos neurônios, por exemplo, que recebem e transmitem, ao longo do corpo, nossos impulsos. Até porque cada um dos 86 bilhões de neurônios é insubstituível. >
Diagnosticando Do cérebro, partem as coordenadas para os movimentos, as sensações e órgãos como o coração. A morte cerebral ou encefálica é resultado de múltiplas falências no órgão. Desde 1974, uma escala, chamada Escala de Glasgow, passou a ser adotada nos hospitais para medir o grau de comprometimento do cérebro. São observados sintomas e reações, e cada resposta, ou falta de resposta, resulta numa pontuação. Se for menor ou igual a três, como no caso de Gugu, a chance de morte é iminente. >
A partir daí, os médicos começam a trabalhar com a possibilidade real de uma morte cerebral. Em 2017, o Conselho Federal de Medicina passou a exigir a abertura de um protocolo específico quando já não há mais reação aos estímulos. Hoje, na Bahia, segundo a médica Raquel Hermes, as principais causas de morte encefálica são traumas no crânio.>
Por isso, justamente em hospitais como o Geral do Estado e o do Subúrbio, que atendem casos mais traumáticos, estão concentradas as notificações - no primeiro, foram 61; no segundo, 46. >
O paciente já não treme os olhos na presença de uma luz próxima, nem há reflexo de vômito quando a parte de trás da garganta é tocada. É o momento de realizar dois exames clínicos:“Um teste de apneia – ausência de respiração espontânea – e um dos quatro exames, como eletroencefalograma, utilizado para registrar a atividade elétrica do cérebro”. Pelo menos um dos médicos da equipe precisa ser intensivistas, neurologista, neurocirurgião ou emergencista. O resultado positivo dos exames é a prova de que o cérebro deixou de atender aos estímulos. O resultado é definitivo e não há qualquer possibilidade de retomada das atividades. O que se vê nos hospitais, no entanto, é uma expectativa de “ressurreição”. Isso porque, quando o cérebro para de funcionar, o coração e os outros órgãos continuam em atividade. Os parentes relutam em acreditar que, num corpo onde o coração ainda bata, não haja mais vida. >
Aceitação Depois de confirmada a morte cerebral, o protocolo é imediatamente suspenso. É possível que, mesmo uma semana depois, o coração ainda bata, a depender da situação de cada paciente. Em março deste ano, um jovem teve morte cerebral constatada depois de ser atingido por um tiro no peito, no Carnaval. A mãe esperou quatro dias até desligar os aparelhos, por acreditar que o filho reagiria.>
Não há, como explicaram as médicas, nenhum prazo específico para desligar os aparelhos. “O que acontece, na prática, é que respeitamos o sofrimento familiar, pois não há intenção de levar a um luto complicado”, explica Raquel. Para o Conselho Federal da Medicina, o médico tem autoridade ética e legal para suspender qualquer procedimento de suporte terapêutica "e assim deverá proceder". >
A dificuldade de aceitar a morte cerebral, opina Manuele Alencar, médica paliativa, vem de uma dificuldade de entender o real significado da morte que começa no cérebro.“Para quem é leigo, é difícil entender, concatenar uma coisa com a outra. Se o coração está batendo, como não há vida? Traz uma confusão mental”, acredita.O medo e a espera de um milagre dificultam até a doação de órgãos. Hoje, 933 pessoas aguardam a doação de uma fígado, a maior fila de espera por transplante na Bahia, segundo a Sesab. Mesmo entre quatro e seis horas depois da morte cerebral, é possível doar órgãos e salvar vidas.>
A recomendação geral é, principalmente, explicar os significados e razões daquela morte, mas também acolher o sofrimento do outro. >
Possíveis causas de morte craniana>
• Trauma aberto (como em casos de ferimento de tiro), fechado (lesões contundentes) ou anóxia (período sem oxigênio causado por envenenamentos, afogamento, inalação de fumaça, etc.); • AVC (Acidente Vascular Cerebral); • Coma alcoólico ou overdose; • Infarto; • Tumores ou hemorragias cerebrais; • Aneurisma rompido; • Infecção (bacteriana, fúngica ou viral); • Baixos níveis de glicose no sangue.>